Nas sociedades democráticas que caracterizam o século XXI, a resolução de disputas é tradicionalmente objeto da prestação jurisdicional do Estado, através do Poder Judiciário, que aplica o Estado de Direito às situações específicas e individuais. No Ocidente, em particular, tem havido, nas últimas décadas, um aumento enorme dos casos conflitivos sejam na área pessoal, social ou econômica, tendo em vista a virtual inexistência de mecanismos culturais visando à prevenção de disputas. Ao contrário, no Oriente, a sedimentação do confucionismo havida já há aproximadamente 2.500 anos, tem evitado até agora um crescimento do recurso ao Poder Judiciário no mesmo diapasão que no Ocidente. De fato, o confucionismo ensina um código de ética humana (jen), regras de comportamento estratificadas (li) e a forma, o Caminho (tao) de aplicar a ambos nas estruturas sociais da ordem social, adotando as virtudes apropriadas de pai/mãe, marido/mulher, filho/filha, do mais novo face ao mais velho, etc.
Esta dicotomia resulta no fato de que, enquanto os Estados Unidos da América (EUA) têm aproximadamente 1 milhão de advogados para uma população de quase 300 milhões de habitantes e o Brasil cerca de meio milhão de advogados para 170 milhões de habitantes, o Japão tem apenas 20 mil para uma população de 130 milhões. A China, por sua vez, tem somente 100 mil advogados para uma população de 1 bilhão e trezentos milhões de pessoas. Mais importantemente, o fator cultural tem impedido, no Oriente, a banalização do recurso ao Judiciário para questões frívolas e desnecessárias, bem como o abuso do processo legal.
Todavia, dentre nós, no Ocidente, a situação é exatamente a oposta. O crescimento ensandecido das disputas apresentadas ao Poder Judiciário tem sido tal que a eficiência do sistema institucional tem sofrido fortes abalos no mundo todo. O debate para se dotar o sistema judiciário de melhor eficácia é hoje um debate universal. Muitas vezes, tal debate é estéril por não atacar as profundas causas sociais e políticas da crise do estado na prestação do poder jurisdicional. No Brasil, por exemplo, a chamada crise do Poder Judiciário é em grande parte o reflexo de graves problemas do… Poder Executivo, responsável por cerca de 70% dos casos judiciais no país, em grande parte dos quais litigando de má-fé. De qualquer forma, uma solução que tem sido posta em prática internacionalmente para minorar os problemas decorrentes de tal crise é precisamente a resolução alternativa de conflitos, ou a arbitragem. A arbitragem traz três vantagens básicas com relação ao Poder Judiciário: em primeiro lugar, a especialização dos árbitros; em segundo lugar, a celeridade do processo; e por último, o menor custo.
Para melhor entendimento, esta apresentação foi dividida da seguinte forma:
1. Introdução
2. Breve histórico
3. A implementação da arbitragem no Brasil
4. O advento da Lei 9.307/96 – Lei de Arbitragem
6. Questionamento sobre a inconstitucionalidade da Lei 9.307/96
7. Adesão do Brasil à Convenção de Nova Iorque
9. Conclusão
A história da arbitragem comercial é substancialmente mais longa e tradicional do que aquela dos sistemas jurisdicionais dos Estados. Na realidade, a arbitragem é uma modalidade simples e natural para a resolução de uma disputa mediante a intervenção de uma pessoa credível, próxima das partes em questão.
Originalmente, os árbitros eram escolhidos entre os comerciantes mais experientes e de maior reputação. Eles então ofereciam sugestões práticas e habilidosas para a resolução de uma disputa[1] .
O marco formal inicial da arbitragem no Brasil é datado de 1824. Já na Constituição Política do Império era prevista a possibilidade de solução de conflitos entre nacionais e estrangeiros através de juízes-árbitros, sendo possível, inclusive, decretar-se a irrecorribilidade do laudo. Ainda, o artigo 217 do Código Comercial Brasileiro de 1850, ainda em vigor, determina que “os vícios e diferenças de qualidade das mercadorias vendidas serão determinados por arbitradores. Mais tarde, foram inseridas disposições sobre a arbitragem no Código Civil, e no Código de Processo Civil.
Quanto à arbitragem comercial internacional, é importante mencionar a Convenção de Genebra, assinada em 1927, a qual prevaleceu como principal instrumento jurídico sobre arbitragem comercial internacional até o fim dos anos 50, quando, por iniciativa do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, foi proposto projeto para aprimoramento de suas disposições os termos da Convenção de Genebra. O texto foi aprovado em conferência realizada em Nova Iorque em 1958, na sede da ONU e substituiu a Convenção de Genebra. Desde 1975, o Brasil é signatário da Convenção Inter-americana para a Arbitragem Comercial Internacional.Apesar da longa tradição histórica da arbitragem entre nós, até 1996, não obstante a adoção do referido instituto como forma de resolução de disputas ser plenamente possível no Brasil, alguns obstáculos prejudicavam a sua viabilização prática.
Anteriormente ao advento da lei 9.307/96 era pacífico o entendimento relativo à obrigatoriedade da cláusula compromissória, dispositivo contratual através do qual as partes convencionam a obrigatoriedade da via arbitral, a exigibilidade de assinatura do compromisso arbitral, documento que especificava as condições gerais da arbitragem, pelas partes envolvidas, e a necessidade de homologação da decisão arbitral, ou seja, para que o laudo arbitral tivesse os mesmos efeitos da sentença judicial, deveria ser homologado pelo Poder Judiciário.
Na esfera internacional, a questão era ainda mais problemática. A homologação do laudo arbitral proferido no exterior deveria ser homologada no Supremo Tribunal Federal, sendo que para tanto, o laudo deveria ser previamente homologado pelo órgão judiciário da localidade em que se proferiu a sentença.
A partir de 1996, três fatos, que serão comentados mais detalhadamente a seguir, mudaram o rumo da arbitragem no Brasil, (i) o advento da Lei 9.307 de 23 de setembro de 1996; (ii) o questionamento sobre a inconstitucionalidade da referida Lei, resolvido em acórdão Supremo Tribunal Federal (STF) de dezembro de 2001, e (iii) a adesão do Brasil à convenção de Nova Iorque em 2002.Somente com a Lei 9.307 de 23 de setembro de 1996 [2] o País teve um instrumento normativo adequado para a efetiva implementação do juízo arbitral no Brasil. Tal lei cuidou de suprimir a necessidade de homologação da sentença arbitral, reduzindo a um mínimo a intervenção do Poder Judiciário no processo de arbitragem.
A Lei 9.307 trouxe notáveis inovações à antiga realidade da arbitragem no Brasil, dentre as quais destaca-se a autonomia da cláusula compromissória existente em contrato, que determina a prevalência da arbitragem como foro privilegiado. Caso não conste a cláusula compromissória do contrato e as partes se interessarem em recorrer à arbitragem para a resolução de disputa, os termos atinentes deverão ser convencionados em um compromisso arbitral.Com efeito, de acordo com o princípio da autonomia da vontade, as partes envolvidas em determinado negócio jurídico têm plena liberdade de optar pela adoção da arbitragem como meio de resolver eventuais disputas.
Conforme anteriormente mencionado, para a adoção da arbitragem como procedimento adequado para a resolução de litígios é desejável haver disposição contratual expressa. Esta disposição é denominada cláusula compromissória e tem força obrigatória entre os contratantes, de modo que, surgindo algum litígio no curso da execução do contrato, terá que ser solucionado pelo juízo arbitral. Nesse sentido, o princípio da boa-fé também encontra guarida na Lei de Arbitragem. Assim sendo, após ter firmado contrato e eleito espontaneamente a instância arbitral, através da inclusão da cláusula compromissória, não pode uma das partes desistir do compromisso assumido. Como substrato do princípio da boa-fé, o legislador outorgou caráter obrigatório e vinculante à convenção de arbitragem.
Deve-se ressaltar ainda que a arbitragem pode ser adotada desde que os direitos em questão sejam disponíveis e as partes tenham plena capacidade de transigir, de dispor de seus direitos. Os incapazes, em geral, não podem recorrer à arbitragem. Há dispositivos legais que protegem os interesses destas pessoas, pois a lei presume que não têm capacidade de dispor de seus interesses sem que sejam assistidas ou representadas. A arbitragem só pode ser convencionada por pessoas maiores e capazes.
Por direitos disponíveis deve-se entender os direitos que podem ser objeto de disposição por seu titular sem que tenha que dar satisfação a ninguém. Por exemplo, um particular, maior e capaz, proprietário de um terreno, pode dispor dele como bem entender: Poderá vendê-lo, doá-lo ou mesmo abandoná-lo, permitindo que seja ocupado por terceiros. Pode, enfim, dispor do bem. Estes direitos disponíveis são os que podem ser objeto do processo arbitral. Questões relativas à direito de família, por exemplo, não podem ser levadas à arbitragem por tratarem-se de direitos indisponíveis. O processo que dispuser sobre eles terá que ser judicial, com intervenção do Ministério Público e, por isto, não é passível de ser resolvido no juízo arbitral.
A arbitragem é ideal, por exemplo, para decidir litígios oriundos de questões comerciais, entre empresas privadas, já que tais questões abrangem direitos disponíveis de pessoas capazes de transigir e que, portanto, podem ser resolvidas pelo juízo arbitral.
Qualquer pessoa, desde que seja civilmente capaz e tenha a confiança das partes pode ser indicado pelas partes como árbitro. Naturalmente, serão necessários conhecimentos a respeito do processo arbitral, para que a arbitragem tenha validade. A prática recomenda que os contratantes se valham da assessoria de entidades especializadas em arbitragem. Há organismos especializados em conduzir processos arbitrais, as quais são recomendadas, já que há certas formalidades que devem ser observadas para que a sentença arbitral tenha eficácia.
Quem julga, contudo, é o árbitro designado e não a entidade arbitral. O papel da entidade é o de (i) acompanhar e regular os procedimentos e (ii) reunir árbitros em seus quadros, os mais capacitados possíveis, para que os interessados possam escolher aqueles em que possam confiar a sua causa. Segundo a Lei 9.307/96, não é necessário o acompanhamento do processo arbitral por advogado. Ficará ao critério das partes interessadas a respectiva contratação. Contudo, seria uma temeridade pretender-se conduzir um processo arbitral sem o concurso de um advogado especializado na área e também no setor substantivo, a respeito do qual deu-se a disputa.
Há instrumentos legais que permitem compelir o recalcitrante a aderir ao processo arbitral, em caso de recusa. O processo arbitral termina com a sentença arbitral, firmada pelo árbitro (ou pelos árbitros), cuja eficácia é a mesma da sentença judicial. Além disso, desde a promulgação da Lei 9.307/96, a sentença arbitral não é mais sujeita há homologação judicial. Se tiver natureza condenatória, será considerada título executivo, o qual pode ser executado pelo Poder Judiciário. Não há possibilidade de recurso quanto ao mérito da decisão, mas apenas sobre aspectos formais atinentes.
A sentença arbitral é irrecorrível. A decisão sobre o mérito da causa é campo privativo da arbitragem. As regras do processo arbitral são livres, podendo ser fixadas pelas partes, pelos órgãos arbitrais ou pelos árbitros. Normalmente, as regras processuais são aquelas já estabelecidas pelos organismos arbitrais e sua eficácia é objeto de consideração quando da opção por uma entidade ou outra.
A sentença arbitral proferida no exterior deve ser submetida ainda à homologação do STF, a qual somente será contrária se seu objeto apresentar grave conflito com a ordem pública nacional, ou o objeto de litígio não for passível de decisão arbitral no Brasil.
Os princípios processuais fundamentais, como, contraditório, igualdade das partes, imparcialidade do árbitro e livre convencimento do juiz/árbitro devem ser respeitados também no processo arbitral. Caso haja inobservância de tais princípios, pode-se entender ocorrência de violação da ordem pública o que causa, via de regra, nulidade da sentença arbitral.Pairaram, no Brasil, sérias controvérsias quanto à possibilidade da arbitragem, no que se refere à possibilidade de desprezo da jurisdição estatal, e contrariedade às disposições do artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal de 1988 [3] .
Ressalte-se que os dispositivos inovadores trazidos pela lei quanto à supressão da homologação judiciária da sentença arbitral foram contestados judicialmente, sendo alegada a respectiva inconstitucionalidade. Prevaleceu [4], contudo, o entendimento de que a norma constitucional do artigo 5º XXXV visa tão somente coibir o abuso de direito, ato arbitrário ou ilegal por parte de qualquer autoridade, salvaguardada a autonomia da vontade das partes [5] . Nesse sentido, o dispositivo constitucional não outorga ao Judiciário o monopólio da justiça no país, visando apenas conferir a sociedade a faculdade de recorrer à sua tutela, caso seja de seu interesse. Assim sendo, não há empecilho legal de o cidadão, por espontânea vontade, optar por dirimir seus conflitos fora da esfera judiciária [6] . A Convenção de Nova Iorque foi ratificada pelo Poder Legislativo brasileiro através do Decreto no. 52 de 25 de abril de 2002, promulgado pelo Poder Executivo pelo Decreto no. 4.311 de 23 de julho de 2002. A ratificação da Convenção de Nova Iorque pelo Brasil representa o terceiro pilar estrutural na sedimentação da arbitragem no Brasil, juntamente com a Lei de Arbitragem e o acórdão do STF, de dezembro de 2001, que reconheceu a respectiva constitucionalidade.
A Convenção de Nova Iorque é o tratado multilateral mais significativo no âmbito da arbitragem comercial internacional, ratificado por mais de cem países de todos os continentes. Vale lembrar que apesar da tardia adesão do Brasil à Convenção de Nova Iorque, criada há mais de quatro décadas, seus principais dispositivos já haviam sido incorporados pela legislação pátria.A despeito das incontestes vantagens usualmente associadas à arbitragem como celeridade, informalidade e confidencialidade do objeto litigado, é importante mencionar também uma grave desvantagem, qual seja: a existência de uma única instância para resolução de disputas. Normalmente, o duplo grau de jurisdição dá uma segurança maior quanto ao tratamento do mérito das questões. Outro problema potencial da arbitragem diz respeito ao tratamento de questões de ordem pública de direito interno por entidades arbitrais internacionais.
Somado a tal fato, devemos lembrar que, em muitos casos, sistemas jurisdicionais nacionais tem maior eficácia comparativa, tanto qualitativa, quanto econômica, face aos processos arbitrais. Este fator é normalmente levado em consideração para a eleição de foro em contratos internacionais.
Contudo, para questões comerciais internas, entendo que atualmente a arbitragem doméstica ofereça enormes vantagens comparativas ao processo judiciário. Por conseguinte, é de se esperar um crescimento no setor de resolução alternativas de disputas no Brasil, a depender somente da eficácia com que os primeiros casos vierem a ser resolvidos.
Ressalvados os pontos acima, esperamos que os fatos narrados na presente apresentação, como o advento da Lei 9.307 e o reconhecimento de constitucionalidade, bem como a adesão do Brasil à Convenção de Nova Iorque, viabilizem a arbitragem de modo a oferecer alternativa possível aos morosos processos judiciários.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).