O GATT foi um dos tratados a formatar a “nova ordem mundial”, criada a partir do final da segunda grande guerra mundial, juntamente com os da Organização das Nações Unidas (ONU), o do Fundo Monetário Internacional (FMI), dentre outros. O GATT, no entanto, foi inspirado quase que exclusivamente pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido, apesar de ter sido subscrito originalmente por 23 países, dentre os quais o Brasil e a China.
Assim, a única reivindicação comercial levada pelo Brasil às mesas de negociações de Bretton Woods foi a de incluir o setor agrícola dentre aqueles objeto da formatação do GATT, que resultou rechaçada. Da mesma forma, o setor têxtil foi expressamente excluído do sistema multilateral de comércio que então se desenhava. Ambos esses setores eram os que mais interessavam os países em desenvolvimento, como um todo.
As potências hegemônicas julgavam que perderiam rapidamente a competitividade relativa nessas áreas e decidiram excluí-las. Assim não houve, na ocasião, uma preocupação específica da utilização do comércio internacional como alavanca de desenvolvimento econômico para os países em desenvolvimento. A parte IV do GATT, que trata de comércio e desenvolvimento, somente foi agregada ao tratado no início da década de 60.
Ao contrário, o final da Segunda Guerra Mundial representou um divisor de águas na história do imperialismo, em que o controle territorial efetivo cedia espaço ao domínio hegemônico obtido de diversas maneiras, inclusive pressão militar, desestabilização política e corrupção desbragada, mas garantido através de tratados desiguais, bilaterais, regionais ou multilaterais, que permitiam o controle econômico e financeiro dos países em desenvolvimento, com o objetivo de gerar ganhos seletivos para os estados desenvolvidos com pretensões hegemônicas.
Todavia, naquela ocasião, as disputas da chamada “guerra fria” com os países do bloco soviético, impediam que os EUA e seus parceiros saciassem plenamente seus apetites vorazes, o que limitava a rapacidade contra os países em desenvolvimento.
Com o desmantelamento do bloco soviético, através o Tratado de Alma Ata, de 1991, os freios decorrentes da situação de “guerra fria” deixaram de existir. Na ocasião estava em andamento a Rodada Uruguai do GATT, lançada em 1986, imersa em acrimoniosas divergências entre os países desenvolvidos, liderados pelos EUA de um lado e, de outro, os países em desenvolvimento liderados pelo Brasil e pela Índia, no chamado Grupo dos 11.
Desejavam os países desenvolvidos integrar ao sistema multilateral de comércio as chamadas áreas novas: serviços, propriedade intelectual e investimentos, ao mesmo tempo em que pretendiam manter excluídas do regime os setores agrícola e têxtil, justamente as áreas econômicas mais tradicionais e de maior interesse dos países em desenvolvimento.
Queriam ardentemente os países desenvolvidos incluir as áreas novas exatamente porque suas economias em transformação passaram a deter um componente maior do setor de serviços, que já ultrapassava o peso combinado das áreas agrícola e industrial em seus respectivos Produtos Internos Brutos (PIBs).
Todavia, desejavam os países desenvolvidos não somente incluir a regulamentação do setor de serviços, mas formatá-la de uma maneira que assegurasse a hegemonia absoluta da área, para benefício de seus agentes privados. Por detrás da especiosa retórica de livre comércio utilizada para defender a liberalização do setor de serviços, mantinham os países desenvolvidos uma forte resistência à inclusão das áreas econômicas tradicionais ao sistema multilateral de comércio.
Com o fim da guerra fria, submetidos a um forte programa de desestabilização política e econômica, orquestrado com o auxílio de outros organismos internacionais, como o FMI, os países em desenvolvimento cessaram sua resistência aos desígnios dos países desenvolvidos, que puderam então, sem restrições, trazer o setor de serviços para o âmbito do sistema multilateral de comércio, de acordo com uma formatação que lhes trouxesse ampla dominação e exclusivos benefícios.
Por outro lado, os setores agrícola e têxtil foram apenas nominalmente trazidos para dentro do sistema multilateral de comércio, o primeiro ainda legitimando escandalosos subsídios agrícolas por parte dos países desenvolvidos, enquanto o segundo sujeito a um mecanismo de desgravação de quotas num período de 10 anos.
Já no final da Rodada Uruguai, em 1993, uma ominosa análise do Banco Mundial já previa que os países desenvolvidos ficariam com 64% dos benefícios da ronda multilateral, contra 36% para os países em desenvolvimento. A realidade provou-se muito pior.
De acordo com um estudo do FMI, nos seis anos seguintes à assinatura dos chamados Tratados de Marrakech, os países desenvolvidos ficaram com 73% dos benefícios, contra apenas 27% para os países em desenvolvimento. Assim, na década de 90, os países desenvolvidos aumentaram o valor de suas exportações per capita em U$ 1.938, enquanto os países em desenvolvimento incrementaram o valor em apenas U$ 98 e os países menos desenvolvidos em somente U$ 51.
Igualmente, mais de dez anos após a assinatura dos Tratados de Marrakech, os países desenvolvidos, com somente 14% da população global, mantém uma participação de 75% na renda mundial, o que é a mesma participação de 1990.
Um observador tanto atento quanto insuspeito, Henry Kissinger, afirmou num de seus últimos livros que “os líderes mundiais, especialmente nas democracias industrializadas, não podem ignorar o fato que, em muitos respeitos, a lacuna entre os beneficiários da globalização e o resto do mundo está crescendo, tanto internamente, quanto dentre países”.
Um exemplo dramático deste fenômeno pode ser verificado no setor de serviços. Conforme dados da UNCTAD, os EUA passaram de uma participação de apenas 2.2% no comércio internacional em serviços em 1985, um ano antes do lançamento da Rodada Uruguai, para cerca de 21% em 1999. Hoje, este número supera os 25%. Mais ainda, hoje, enquanto as exportações de serviços do Brasil crescem a aproximadamente 1% ao ano, as dos EUA crescem a 10% e as do Reino Unido a 5.7%.
Desta maneira, apenas os países membros do cartel denominado QUAD (EUA, União Européia, Canadá e Japão) detém cerca de 80% das exportações mundiais de serviços.
Não se diga que os países em desenvolvimento não têm o que exportar na área de serviços. Ao contrário. O potencial é enorme. Países como o Brasil, a África do Sul e a Índia, têm uma participação do setor de serviços no PIB superior a 50%. Ocorre que a formatação da definição dos serviços exportáveis, e dos módulos de prestação, é seletiva em favor dos países desenvolvidos.
Mais ainda, abundam barreiras horizontais contra os prestadores de serviços dos países em desenvolvimento, como na questão da adoção, pelos países do QUAD da legislação de imigração americana, altamente restritiva, para fins e efeitos do Acordo Geral de Comércio em Serviços (GATS), o tratado de regência da matéria.
Por outro lado, no setor agrícola, persiste a praga dos subsídios agrícolas, hoje estimados numa escala mundial em nada menos do que U$ 1 bilhão por dia. Estes subsídios hoje representam cerca de 40% da produção agrícola nos EUA e na União Européia e 60% do Japão. Por conseguinte, nenhum desses parceiros comerciais pode alegar economia de mercado no setor.
No ramo de algodão, nos EUA, o valor dos subsídios já ultrapassou o valor da própria produção. Estes subsídios deprimem os preços internacionais das mercadorias agrícolas e alijam os produtores corretos e competitivos dos mercados. Mais ainda, os subsídios oneram o contribuinte do país que os praticam e, quando aliados a barreiras tarifárias e não tarifárias, o que freqüentemente ocorre, também penalizam os seus consumidores.
O efeito da depressão dos preços internacionais das mercadorias agrícolas como corolário direto da prática dos subsídios, é em particular, muito grave. De fato, segundo a própria OMC, a África e a América Latina dependem, respectivamente, em 19% e 25% do setor agrícola para suas exportações. No Brasil, o setor do agro-negócio representa 25% do PIB, 37% do total de empregos e 40% das exportações.
Os preços das mercadorias agrícolas caíram de maneira consistente desde a criação da OMC e em mais de 30% no período após 1998. Os preços do café caíram 70% desde 1997. Segundo dados da ONU, os valores das mercadorias agrícolas de exportação da África caíram 20% no final da década de 1990 em comparação com 1970. Em números absolutos, os valores do comércio de mercadoria agrícola caíram pela metade, de 1985 até hoje.
A questão dos subsídios agrícolas é uma das muitas que separam os países em desenvolvimento, organizados no chamado Grupo dos 20, novamente liderados pelo Brasil, Índia e, agora também pela África do Sul democrática, dos países desenvolvidos, no âmbito da Rodada Doha, que está penosamente em andamento desde 2001.
O impasse nas tratativas do tema levou à suspensão das negociações substantivas da Rodada. O impasse foi recentemente superado com a obtenção de um consenso para a eliminação de todos os subsídios agrícolas e melhorias para acesso a mercado dos produtos do campo.
Contudo, a questão não é tão simples como se apresenta, já que, no tenebroso mundo da OMC, a expressão “todos os subsídios agrícolas” tem que ser lida com cautela, já que os países desenvolvidos negociarão com o objetivo de manter a vasta maioria dos subsídios existentes sob vários outros eufemismos e diversos programas paralelos.
Outro sério problema no regime multilateral do comércio é a questão das barreiras. Em princípio, todas as barreiras comerciais deveriam estar incorporadas nas tarifas, como corolário direto do disposto no GATT. Todavia, a maior parte delas está legitimada pelos próprios Tratados de Marrakech, pelo tratamento assimétrico, pelas definições e pelas exclusões seletivas de normas destinadas a manter a eqüidade do sistema. Assim, não somente subsídios são permitidos, mas também, na área de investimentos, a atividade por parte dos agentes financeiros internacionais de promoção da fuga de capitais e auxílio à fraude fiscal não é vedada.
Na área de dumping, o crédito barato para os agentes privados dos países desenvolvidos não pode ser compensado pelos países em desenvolvimento. No setor de propriedade intelectual, o conhecimento tradicional não é respeitado. Na área de acesso a mercados, os picos tarifários seletivos não são vedados, nem limitados. Na área de serviços, os serviços pessoais, de grande interesse dos países em desenvolvimento, estão excluídos. Enfim, o elenco completo destes itens tem um caráter enciclopédico, que escapa ao objetivo deste artigo.
É importante notar que os países em desenvolvimento são particularmente vulneráveis a tais barreiras nos países desenvolvidos porque a maior parte de suas exportações é destinada a estes respectivos mercados. Assim, 75% das exportações da América Latina e 70% daquelas da África são dirigidas à União Européia, EUA ou Japão.
Essa situação recomendaria uma política de aumento das exportações dos países em desenvolvimento para outros de economia assemelhada, enquanto persistirem as barreiras toleradas ou autorizadas pelo regime multilateral de comércio. O mesmo raciocínio justificaria a celebração de pactos regionais de comércio entre países em desenvolvimento.
Em conclusão, não se pretende aqui questionar que a liberalização comercial de fato pode efetivamente promover a prosperidade mundial generalizada, se promovida com eqüidade. Conforme dados da respeitável organização não governamental, OXFAM, se os países em desenvolvimento aumentassem sua participação nas exportações mundiais em apenas 5%, o resultado seria a geração de receitas de U$ 350 bilhões! Se a África aumentasse em apenas 1% sua participação nas exportações mundiais, o resultado de U$ 70 bilhões seria superior a toda ajuda concedida ao continente.
Todavia, liberalização seletiva, como a presente, agravada por regras ruins e discriminatórias em tratados desiguais promovem a miséria e a desesperança de muitos, em benefício de uns poucos, o que é hoje infelizmente o papel desempenhado pela OMC. Essa situação está tristemente a comprometer a própria legitimidade daquela organização.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).