SÃO PAULO – O grande pensador e filósofo italiano do século passado Benedetto Croce (1866-1952) observou com grande acerto e propriedade que “a humanidade tem sede de igualdade, que é aquilo que se chama justiça; e o trabalho de igualar e de disseminar sempre mais largamente a justiça é o labor incessante da legislação e da civilização”[1]. Todavia, se por um lado o conceito da isonomia é antiquíssimo e universalmente aceito, o trabalho da promoção da igualdade é incessante e um dos grandes desafios do Direito.

De fato, a eqüidade e a isonomia são conceitos já enunciados por Eurípides (485-406 AC) e por Aristóteles (384-322 AC). Mais recentemente, o conceito legal da igualdade aparece já na Constituição Francesa de 1791, na quinta e 14ª emendas da Constituição dos Estados Unidos da América (EUA) de 1789, na Constituição Italiana de 1948 e, bem assim, na Constituição Brasileira de 1988, bem como em todas as constituições modernas. Esse consensus humani generis, consenso da humanidade, foi acolhido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) já em seu artigo primeiro, no sentido de que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Transportado o conceito para o tratado internacional de maior hierarquia, a Carta da Organização da Nações Unidas, ficou proclamada a própria igualdade jurídica entre os Estados, em seu artigo 2.1.

Mahatma Gandhi, este formidável intérprete da consciência humana, afirmou numa ocasião que “todos os homens nascem com prendas desiguais mas com direitos iguais, e a sociedade lhes deve uma mesma oportunidade de desenvolver suas habilidades e viver em liberdade” [2] . Indo adiante, Norberto Bobbio observa que a communis opinio interpreta a igualdade perante a lei “como a exclusão de toda e qualquer discriminação arbitrária por parte do juiz, como da parte do legislador” , entendendo-se uma discriminação arbitrária como aquela introduzida ou não eliminada sem uma justificação razoável.

Como então reparar os danos promovidos pela discriminação arbitrária? Em primeiro lugar, o seu reconhecimento judicial é, evidentemente, necessário. Em seguida, caberá ao tribunal com jurisdição sobre o caso concreto a medida de reparação. Nos casos de classificação legislativa discriminatória, discute-se no Brasil se a reparação viria através da declaração de nulidade do ato legislativo ou da extensão do critério, de acordo com a razoabilidade, àqueles injustamente discriminados. Parece-me acertada a segunda posição, já que a primeira poderá não recompor os prejuízos causados com o tempo, além de poder promover uma injustiça a um maior número de pessoas.

Os opositores da correção em concreto da discriminação apontam um pretenso conflito de poderes entre o Legislativo e o Judiciário, no sentido de que o segundo estaria usurpando as prerrogativas constitucionais do primeiro, por criar a lei mediante ativismo judiciário. Trata-se de uma posição equivocada. A melhor doutrina pátria neste sentido foi enunciada pelo ministro Eros Roberto Grau, nos seguintes termos: “quando a lei expressa uma regra geral e surge algo que se coloca fora dessa formulação geral, devemos, onde o legislador omitiu a previsão do caso e pecou por excesso de simplificação, corrigir a omissão e fazer-nos intérpretes do que o legislador teria dito, ele mesmo, se estivesse presente neste momento e teria feito constar da lei se conhecesse o caso em questão” [4] .

De maneira acertada, Eros Roberto Grau faz a distinção entre a atuação do Judiciário in abstracto daquela in concreto. A primeira configuraria uma ação inconstitucional por parte do Judiciário, por usurpação das prerrogativas constitucionais de outro poder, o Legislativo, enquanto a segunda ficaria plenamente inserta dentre as modalidades de prestação jurisdicional do Estado. Em meu modo de ver, a recusa na correção da omissão na classificação discriminatória caracterizaria uma situação de déni de justice, ou denegação de justiça.

No direito comparado, verifica-se que nos EUA, de há muito, a divergência foi resolvida em favor da possibilidade de correção da classificação discriminatória. De fato, naquele país, os tribunais decidiram, nos casos Detroit Bank v. United States (317 US 329, 338 – 1943) e Dyer v. Abe (138 – 1956), que a ação governamental desigual, como legislação de classe que arbitrariamente discrimina contra uns em favor de outros em situação assemelhada representam uma violação das cláusulas de proteção isonômica e do devido processo legal da constituição daquele pais. A linha entre a classificação válida e a inválida é aquela do grau de arbitrariedade com relação aos fins pretendidos pela ação governamental e o critério de correção é aquele da razoabilidade, conforme o caso Quaker City Cab Co. v. Pennsylvania (277 U.S. 389, 406 – 1928).

Infelizmente, no Brasil o debate continua aberto, o que é ao mesmo tempo um obstáculo à afirmação da Justiça e um incentivo à corrupção para aqueles que buscam privilégios ilegais e para os governantes inescrupulosos.