Por Paulo Miguel Madeira
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Durval Noronha defende que o liberalismo vai ficar em causa nas instituições multilaterais

A crise com origem no sistema financeiro dos EUA, já ramificada à Europa, está a ser combatida de um modo que põe em causa as regras do comércio internacional em vigor no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), por se tratar de subsídios às empresas, na opinião do um dos seus árbitros para a resolução de diferendos, o advogado brasileiro Durval de Noronha Goyos.

“No âmbito da OMC, os serviços financeiros estão dentro do GATS (o Acordo Geral sobre Comércio e Serviços, conhecido pela sigla em inglês). Então esses subsídios serão tratados como tal? Deveriam…”, disse hoje ao PÚBLICO em Lisboa.

Durval de Noronha referia-se ao plano da administração Bush para injectar 700 mil milhões de dólares no sistema financeiro dos EUA, para comprar produtos financeiros apelidados de “tóxicos”, que desvalorizaram fortemente a banca norte-americana devido ao rebentamento da bolha imobiliária e ao incumprimento maciço no crédito “sub-prime”. E também às nacionalizações, totais ou parciais, de bancos e outras instituições financeiras nos EUA e na Europa.

Para este advogado, com escritórios em vários países e muito familiarizado com estes temas (assessorou a China nas negociações de adesão à OMC), “isto repercute-se como subsídio e repercute-se como uma negativa da economia de mercado. E se o país deixa de ter uma economia de mercado ou viola as regras de subsídios, estão violados os termos do sistema multilateral do comércio.”

Liberalismo em causa nas organizações multilaterais

“Todas as instituições multilaterais são fundadas na doutrina do liberalismo”, tanto financeiro como comercial, que enfrenta agora “uma crise extraordinária de credibilidade”, diz ainda. E questiona: “Como se vai agora falar de maior liberalização do comércio mundial e inclusive dos sistemas financeiros, que faz parte da OMC?” Porque o que se passa “é exactamente o contrário”, é “o intervencionismo do Estado na socialização do prejuízo”.

Durval de Noronha fala mesmo em “crise do naufrágio do liberalismo”. Porque “a partir do momento em que o liberalismo se transformou num exercício da afirmação do lucro privado e da socialização do prejuízo, e com os organismos multilaterais a promoverem a liberalização das economias, principalmente das dos países em desenvolvimento, tem uma crise extraordinária de credibilidade.”

Estas ideias vão ser expostas amanhã numa palestra na Universidade Autónoma de Lisboa, onde vai também criticar o facto de o FMI não ter sido envolvido na resolução da crise. “Não deveria ter sido o FMI a promover uma formatação global, a dar um sustentáculo jurídico não apenas para o tratamento da crise hoje, mas também no futuro. Não deveria ter sido o FMI o organismo a actuar no combate a esta crise? Então ele perdeu a razão de ser”, disse também.

Este advogado, coordenador dos programas de pós-graduação da Escola Paulista de Direito, recorda também que o anterior presidente da Reserva Federal, Alan Greenspan, “já tinha dito há cerca de três anos que era preciso estar atento à bolha imobiliária, porque ela iria estourar”, e mesmo assim os organismos multilaterais não foram envolvidos.

Bancos centrais não chegam

Perante este cenário, Durval de Noronha defende a reformulação dos grandes organismos económicos internacionais, sem especificar em que sentido. “Acho que esses organismos devem ser reformulados, acho que uma das causas dessa crise é a falta de mecanismos internacionais, a falta de construção do direito internacional para proibir a fraude institucionalizada. Porque os mecanismos de combate à fraude existentes nos mercados financeiros são os desenvolvidos após a crise de 1929 nos EUA, que separaram a actividade bancária de actividade de investimento”.

Mas, com a globalização, houve uma “fácil burla dessa legislação. Os bancos de investimento actuavam como bancos comerciais, os bancos comerciais actuavam como bancos de investimento. E esses produtos dos bancos de investimento eram colocados pelos braços comerciais dessas mesmas organizações para os seus clientes.”

Defendendo que os vários bancos centrais (Fed, BCE, o banco central do Brasil) não conseguem combater por si “a fraude financeira internacional”, defende que isso seja atributo de um organismo internacional, e que seja adoptada legislação internacional nesse sentido.

Notícia corrigida às 15h00 de dia 2/10