Publicado no livro Antologia – Crônicas pela Liberdade, São Paulo, abril de 2019.

1.- As Guerras Imperialistas e seus Desastres Humanitários.
1.1- Com as Guerras Napoleônicas que se seguiram à Revolução Francesa, as chamadas Guerras Religiosas, que já duravam cerca de 1200 anos, perderam a sua importância histórica. Com a rápida progressão do liberalismo, foram eliminados os privilégios do clero mundo afora, inclusive no Brasil. Em Portugal, em 1834, Dom Pedro IV, ao vencer a revolução liberal, aboliu as ordens religiosas e confiscou suas propriedades . Por outro lado, a exploração colonial que se iniciara com os descobrimentos portugueses permitiu a rápida acumulação de riquezas. O fenômeno não passou despercebido a outros países como Espanha, Inglaterra, França, Holanda, Bélgica e Japão. De fato, com lembra Edward W. Said, “a primazia dos impérios britânico e francês de nenhuma forma obscurece a notável expansão moderna de Espanha, Portugal, Holanda, Bélgica, Alemanha, Itália e, de uma maneira diversa, Rússia e Estados Unidos ”.
1.2.- A exploração econômica não se dava apenas em África, América e Ásia, mas também em áreas menos desenvolvidas e mais vulneráveis da própria Europa, como buscou Napoleão Bonaparte, com a oposição da Inglaterra, Rússia e Império Austro-Húngaro. Durante as guerras napoleônicas, houve uma grande devastação da Europa e uma situação de verdadeira calamidade com a morte de 7 milhões de pessoas, dentre civis e militares. Apenas como referência, note-se que a França tinha uma população de 27 milhões de habitantes em 1789 e a Inglaterra, 10 milhões.
1.3.- O Congresso de Viena de 1815 pôs fim às guerras napoleônicas e basicamente atendeu às reivindicações territoriais das potências vencedoras e permitiu a continuidade da exploração colonial abusiva que se verificava em África e na Ásia. Em 1848, eclodiram revoluções populares em toda a Europa de caráter liberal e democrático. Estava a emergir o nacionalismo e o socialismo. As revoluções tomaram lugar em quase toda a Europa continental, tendo começado na França, mas logo atingindo a Itália, os Países-Baixos, a Dinamarca e os estados germânicos, dentre outros. As agendas populares compreendiam reivindicações de caráter constitucional, liberdade de imprensa, liberdade de expressão, voto universal e direitos dos trabalhadores. Em 1870 eclodia novo conflito europeu: a Guerra Franco Prussiana, na qual a França perdeu os territórios da Alsácia Lorena, onde prevalecia uma população gálica.
1.4.- Tendo se removido dos conflitos continentais europeus, a Inglaterra pode se concentrar na exploração impiedosa de suas colônias asiáticas, na Índia e China. Na Índia, onde os ingleses se estabeleceram por volta de 1600, encontraram uma economia que representava cerca de 23% do PIB mundial, enquanto a Inglaterra respondia por apenas 1,8%. Em 1940, o PIB indiano representava apenas 4.2% do PIB mundial, enquanto o inglês chegava a 10%. Deu-se a completa desindustrialização da economia indiana, já que os ingleses queriam criar um mercado para suas manufaturas . Seguiu-se a miséria, a fome, o analfabetismo e a desesperança na população asiática. A expectativa de vida passou a ser 27 anos. Cerca de 17% da população indiana pereceu de fome durante a tirânica ocupação colonial inglesa. Enquanto milhões morriam de fome, os ingleses usavam áreas enormes para plantação do ópio, que contrabandeavam para a China. Largos outros contingentes pereceram como resultado da falta de tratamento de saúde e de condições sanitárias adequadas.
1.5.- Na China, a tirania imperial inglesa não teve precedentes na história da humanidade. De fato, quando os ingleses se depararam que não tinham produtos que pudessem comerciar com a China, desenvolveram um complexo esquema oficial de contrabando de ópio, com o objetivo de viciar largos contingentes da população chinesa e assim criar uma demanda para o seu produto, que era produzido por seus agentes na Índia. Quando as autoridades imperiais chinesas se dispuseram a fazer valer a lei que proibia a importação e consumo de ópio, os ingleses se insurgiram e promoveram a chamada Primeira Guerra do Ópio, em 1841, ao cabo da qual obtiveram uma indenização, concessões diversas e a permissão para comerciar em ópio, mediante o Tratado de Nanjing, de 1842, que deu origem aos chamados tratados desiguais.
O imperialismo recrudesceu em 1850 e os britânicos lançaram uma nova aventura militar, agora com o apoio de França, Rússia e dos Estados Unidos da América, mediante o Tratado de Tientsin, na qual tomaram Beijing e incendiaram o Palácio Imperial, não sem antes raspar o ouro das paredes. Novas concessões foram obtidas então da China, que chamou o período de “século da humilhação”, no qual os chineses foram tratados pior que animais irracionais. A debilidade nacional causada pela inserção ilegal do ópio na China levou o Japão a buscar uma expansão imperial no território daquele país.
2.- A Primeira Guerra Mundial
Mesmo com a calamidade humana que resultou da I Grande Guerra, é de se observar avanços nos direitos humanos no período em que se seguiu. O primeiro deles foi a criação da Liga das Nações, iniciativa que não prosperou em face da não adesão dos Estados Unidos da América. Ao contrário, a Corte Internacional de Justiça, de Haia, foi um organismo contemporâneo à Liga e que sobreviveu até os dias atuais. Os direitos civis das mulheres também evoluíram com o direito a voto sendo reconhecido pela Noruega em 1913, pela Alemanha e Polônia em 1918, pela Holanda, em 1919, Reino Unido em 1920, áreas comunistas da China em 1931, Espanha em 1933, Brasil e Portugal em 1934, Itália em 1946 e Estados Unidos da América em 1965 e Suíça em 1971.
Por volta de 1910, as tensões imperiais novamente faziam-se sentir na Europa. O Império Otomano estava na defensiva no Oriente Médio, acossado de um lado pelo Império Russo e, de outro, pelo Império Britânico e pela França. A Rússia, por sua vez, sentia-se ameaçada pelas potências centrais e pelas pressões do nacionalismo polonês. O Império Britânico continuava expansionista, à busca do petróleo do Oriente Médio, já que sua marinha se convertia para combustão a óleo. O mesmo se pode dizer da França. Por sua vez, o Império Austro Húngaro tinha ambições no Mediterrâneo, onde se encontrava ameaçado, por outro lado, pelo nacionalismo italiano. A Itália invadira a Líbia em 1911 e também ambicionava expansão territorial nos territórios étnicos italianos no norte da península itálica. Por sua vez, a Alemanha desejava sua expansão territorial à custa dos estados do leste europeu. Falharam as tratativas diplomáticas entre a Inglaterra e a Alemanha, em 1912, visando a paz e um incidente banal levou à conflagração, que eclodiu em 1914. Não era a guerra para terminar com todas as guerras, como colocou a propaganda ocidental, mas um deliberado ato político movido pela ganância rapace dos impérios.
As armas asseguraram em 1918 a vitória das potências ocidentais, Inglaterra, França, Itália e Estados Unidos, que entraram tardiamente no conflito. Derrotadas foram a Alemanha, o Império Otomano, o Império Austro Húngaro e a Rússia, já sob domínio soviético. O balanço humanístico da guerra foi trágico: 11 milhões de mortes de militares e mais de 8 milhões de mortes civis. O número de desfigurados e mutilados chegou a aproximadamente 10 milhões. Fronteiras foram alteradas, países criados e se instalou a miséria e a desesperança na Europa continental. O Tratado de Versailles de 1919, que pôs fim à Grande Guerra assegurou, por suas drásticas condições e caráter desigual, impulsionou a ascensão do nazismo e a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Como lembrou Keynes em 1919, “nem sempre as pessoas aceitam morrer de fome em silêncio: algumas são dominadas pela letargia e o desespero, mas outros temperamentos se inflamam, possuídos pela instabilidade nervosa da histeria, podendo destruir o que resta da organização social, e submergindo a civilização com suas tentativas de satisfazer desesperadamente as necessidades individuais ”.
3.- A Segunda Guerra Mundial
O caos econômico na Europa Central trouxe o fenômeno do nazismo, que implantou uma economia até certo ponto keynesiana, com sucesso, e reinstalou o militarismo, ao mesmo tempo em que implantou o racismo. A perseguição aos judeus tornou-se política oficial de Estado a partir de 1933, com exclusão destes dos empregos públicos. Em 1935, foram aprovadas as chamadas Leis de Nuremberg, que revogaram a cidadania alemã dos judeus. Em seguida, foram estes excluídos das profissões regulamentadas, como a advocacia, a medicina, a arquitetura e o jornalismo. Livros foram queimados, sindicatos fechados e a academia foi proibida de pensar.
A partir de 41, a população judaica foi internada em campos de extermínio, assim como opositores políticos ao regime, homossexuais e ciganos. Uma situação aproximada ocorreu na Itália. No oriente, o Japão invadiu a China em 1937 buscando o seu próprio império. Em 1939, a Alemanha invadiu a Polônia, na busca de recuperação de seu “espaço vital”, causando o ingresso no conflito de Inglaterra e França num primeiro momento e, a partir de dezembro de 1941, dos Estados Unidos da América e também do Brasil .
Em 8 de maio de 1945, a Alemanha nazista rendeu-se incondicionalmente às forças aliadas e o Império do Japão em 2 de setembro do mesmo ano. O trágico balanço da Segunda Guerra Mundial contabilizou cerca de 25 milhões de militares e 55 milhões de civis mortos, dentre algumas das piores atrocidades cometidas na história. Acusados de crimes de guerra foram processados nos tribunais ad-hoc criados em Nuremberg, Tóquio e Xangai, sendo muitos condenados à pena de morte e outros a penas de detenção de duração variada.
Como resultado do final do conflito, foi estabelecida uma nova ordem jurídica internacional com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), no dia 26 de junho de 1945. A Carta da ONU é o tratado internacional de mais alta hierarquia e ofereceu um mecanismo para o desenvolvimento do direito internacional, como já vimos. Os propósitos da ONU são a manutenção da paz e da segurança internacionais, o desenvolvimento de relações amistosas entre os Estados baseadas na isonomia, na autodeterminação dos povos, a cooperação internacional e a coordenação de ações comuns. Assim, a criação da ONU contribuiu decisivamente para o processo de descolonização, apesar dos protestos dos agentes do Império Britânico, que saíra arruinado da guerra. Como resultado de tal processo, países como a Índia, que se tornou independente em 1947, libertaram-se da miséria, da desesperança e da opressão do regime colonial. A fundação da República Popular da China em 1949 resgatou a dignidade do povo chinês.
4.- Os Direitos Humanos e a Carta da ONU.
A Carta da Organização das Nações Unidas (ONU), o tratado internacional de mais alta hierarquia, inclui entre os objetivos da organização a promoção e o encorajamento ao respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais para todos, independentemente de distinção pela raça, sexo, língua ou religião (art. 1). Por sua vez, a Carta da ONU insta a Assembleia Geral a fazer recomendações a respeito da implementação dos direitos humanos (ar. 13.1) e determina que os Estados Membros se obriguem, em conjunto ou separadamente, a promover o respeito e a observância a tais direitos (art. 55 combinado com o art. 56) .
Dessa maneira, a Carta da ONU dá o alicerce jurídico sobre o qual está sendo construída toda uma rede de tratados internacionais sobre direitos humanos e sua aplicação. O primeiro e mais importante desses foi, sem dúvida, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Assembleia Geral em 10 de dezembro de 1948, sem nenhum voto contrário. Seus 30 artigos elencam um vasto números de direitos, inter alia, liberdade e segurança pessoal (art. 3), proibição de tortura (art. 5), igualdade perante a lei (art. 7), devido processo legal (artigos 9 e 10), liberdade de movimento (art. 13), direito de asilo (art. 14), direito de expressão (art. 19), direito de consciência e religião (art. 18), e direito de reunião (art. 20). Alguns direitos de caráter sócio econômico foram também incluídos, como o direito ao trabalho (art. 23), educação (art. 26) e à seguridade social (art. 25).
O preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos lembrou que “o desrespeito e o desprezo pelos direitos humanos têm resultado em atos bárbaros que ofenderam a consciência da humanidade”. O documento respondeu a 150 anos de frustrantes lutas em prol da decência, da ética e do respeito humano e renovou a chama de esperança para um futuro melhor. Também em 1948 foi fundada a Organização Mundial da Saúde (OMS), subordinada à ONU e que tem por objetivo desenvolver ao máximo o nível de saúde de todos os povos.
Como lembrou o grande filósofo do direito, John Rawls, o estado de direito está obviamente relacionado de perto com a liberdade. Ademais, o conceito de justiça formal torna-se o estado de direito quando as leis são aplicadas de maneira regular e imparcial. “Uma forma de ação injusta é a deficiência dos juízes e outras autoridades em aplicar a regra apropriada ou interpretá-la corretamente ”. Lembra ainda o mesmo jurista que, para além das violações exemplificadas por suborno e corrupção, ou o abuso do sistema legal para punir inimigos políticos, deve-se também atentar para a discriminação a certos grupos no processo judicial.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi seguida por uma série de tratados internacionais, a começar pela Convenção sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, de 1948. Seguiu-se a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965, que traz uma definição ampla de raça. A questão dos direitos humanos das minorias foi tratada na Convenção Internacional de Direitos Cívicos e Políticos. O princípio da autodeterminação como direito humano, que se antepõe ao imperialismo, também foi reconhecido por um grande número de convenções internacionais, inclusive pela Declaração sobre Princípios de Direito Internacional a Respeito de Relações Amistosas, da Assembleia Geral, de 1970.
A Convenção da ONU contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis foi adotada em dezembro de 1984 e entrou em vigor em 1989, para o Brasil . Esta convenção, em seu artigo 1º define tortura como “qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castiga-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência”.
Em 1986, a Assembleia Geral adotou a muito importante Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, que seguiu à Convenção Internacional sobre Direitos Econômicos e culturais, de 1966. A Declaração assegura como um inalienável direito humano o de participar e usufruir do desenvolvimento econômico, social, político e cultural. Dentre estas categorias está o acesso a recursos básicos, educação, serviços de saúde, alimento, habitação, emprego e uma justa distribuição da renda .
A ONU criou, ainda, um número de organismos internos para tratar de questões específicas dos direitos humanos, incluindo o Comitê de Direitos Humanos, responsável pela preparação de inúmeros documentos, inclusive um a respeito dos diretos das crianças. Outros organismos importantes são os Comitês contra a Tortura e o Comitê sobre os direitos das crianças. Outros organismos regionais passaram igualmente a tratar da temática, como em África, nas Américas e na Europa.
Recentemente, deu-se um notável desenvolvimento na esfera multilateral, com a assinatura dos Estatutos do Tribunal Penal Internacional, por 120 países, em julho de 1998. O Tribunal Penal Internacional entrou em funcionamento a partir de 1º de julho de 2002. Seus Estatutos dão como competência da Corte Internacional o genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e o crime de agressão. Note-se que os Estados Unidos da América repudiaram o Tribunal. Em 2007, foi assinada a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e ratificada pelo Brasil em 2009, sobre a qual trataremos em seguida.
Sob uma perspectiva jurídica, alguns destes direitos ora mencionados já passaram a integrar o elenco de normas costumeiras de direito internacional, oponíveis indistintamente contra todos os Estados, irrespectivamente da assinatura de quaisquer tratados internacionais a respeito. Dente eles, situam-se a proibição à tortura, genocídio, escravidão e o princípio da não discriminação. Outros direitos são oponíveis erga omnes contra os respectivos Estados partes, nos termos dos tratados por eles assinados .
A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro com status de emenda constitucional. A Convenção reconhece a universalidade, a indivisibilidade e a inter-relação de todos os direitos humanos e liberdades individuais, bem como a necessidade de promoção e proteção dos direitos humanos de todas as pessoas com deficiência, inclusive daquelas que requerem apoio mais ostensivo. A Convenção objetiva também a promoção do respeito e da inerente dignidade das pessoas com deficiência, que são definidas como aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade (Artigo 1).
9.- Conclusão.
Como vimos, a Humanidade caminhou um longo percurso e pagou um altíssimo preço até atingir o ponto atual de desenvolvimento dos direitos humanos, que não apenas asseguram uma rede básica de proteção, dão status de sujeito ativo e passivo aos indivíduos, e não apenas aos Estados, e fornecem ao mesmo tempo um mecanismo de desenvolvimento normativo internacional. Na formatação atual do direito internacional, os direitos humanos são universais, i.e. aplicam-se a todos os cantos do planeta; são gerais, i.e. aplicam-se a todas as pessoas; são amplos, i.e., não discriminatórios, por abranger todas as condições humanas; são isonômicos; constituem direitos oponíveis erga omnes; e são inalienáveis.