Em 28 de Janeiro de 1808, Salvador da Bahia era a capital de Portugal. Nesse dia, aí se encontrava a Corte do nosso país global. Nesse dia, nesse local, começou o fim do último dos impérios ultramarinos: o príncipe regente, futuro rei D. João VI, escreveu ao Governador e Capitão-General da Capitania da Bahia a carta régia que mudou os nossos destinos. Trata-se da carta de abertura dos portos brasileiros ao comércio internacional, a qual revogou a legislação que, segundo escreveu D. João VI, até então proibia «o recíproco comércio e navegação entre os meus vassalos e estrangeiros, neste Estado do Brasil.

Efeito perverso da invasão napoleónica de Portugal, a abertura dos portos de mar, em 1808, pôs fim ao regime de cabotagem entre Portugal e o Brasil. A navegação entre os portos de Portugal europeu e do Brasil era de cabotagem desde o reinado de D. João III. Não era navegação «de mar em fóra» , para utilizar a saborosa expressão técnico- jurídica da linguagem comercial marítima de então. Navio que, na época, saísse do meu Porto de Portugal com destino a porto de mar situad Brasil, era embarcação de cabotagem.

Esse longo mar oceano não separava aquilo que os nossos antepassados comuns conseguiram unir: cabotagem significa, ainda hoje, navegação costeira de cabo a cabo, entre cabos ou portos de um mesmo país. O tráfego marítimo comercial atlântico luso-brasileiro era costeiro; constituía «coastal trade» ou «coasting trade», na tradução para língua inglesa do monumental Dicionário Jurídico Noronha.

Dissecado o significado do estranho termo cabotagem: homenageados meus anfitriões: Noronha Advogados; apenas me resta pedir a tolerância da distinta audiência para quanto tenho ainda para dizer, no respeito pelo seguinte desafio: «a diferença entre dois escritores igualmente bons, um passado e outro presente, consiste em que este preenche o vazio que mediou desde o seu antecessor». Quem lançou este desafio foi José Ferreira Borges.

Modestamente, vou tentar conseguir preencher o vazio. José Ferreira Borges, como eu próprio um Advogado do Porto, é um dos meus ídolos. Aqui o afirmo, porque vivemos numa época em que se idolatram Spartacus em lugar de Cíceros; gladiadores, em lugar de pensadores; jogadores de futebol, em lugar de juristas. A erosão do argumento de autoridade erigiu a ignorância em sinónimo de opinião; a perversão dos costumes transformou a admiração em inveja. A autoridade de Ferreira Borges conduz-me a admirá-lo sem o invejar, pelo muito que o seu pensamento contribuiu para o progresso da humanidade.

Ferreira Borges viveu no seculo 19, o mesmo da carta régia que declara a abertura dos portos do Brasil. Sem nunca nos termos cruzado no espaço fisico-temporal de nossas vidas terrenas, Ferreira Borges tem-me guiado em muito no meu trajecto profissional, como a luz acolhedora de um farol, como o som tranquililizante de um sino anunciando, na bruma, porto seguro. Ferreira Borges é um exemplo de imortalidade que, aqui, hoje, tenho muito gosto em partilhar com a distinta audiência.

Em 1820, foi ele um dos principais mentores e artífices da Revolução do Porto. Foi ele quem redigiu a proclamação que foi feita à nação, nossa então ainda comum, no dia 24 de Agosto, no Porto, e rezava assim: «Caminhemos à salvação da Pátria. Não há males que Portugal não sofra. Não há sofrimento que nos Portugueses não esteja apurado.

Os Portugueses, sem segurança em suas pessoas e bens, pedem o nosso auxílio: eles querem a, Liberdade regrada pela Lei. É necessária uma reforma; mas esta reforma deve guiar-se pela razão e pela justiça, e não pela licença. Coadjuvai a Ordem; coibi os tumultos; abafai a Anarquia. Criemos um Governo Provisório, em quem confiemos, ele chame as Cortes, que sejam o órgão da Nação, e elas preparem uma Constituição que assegure os nossos direitos».

Em 1820, Ferreira Borges tinha 34 anos de idade. Dez anos depois, exilado político em Londres, Ferreira Borges mantinha-se fiel a esses princípios: «Se não há direito para mandar, não há obrigação para obedecer: é necessário que os homens em mando saibam os limites das suas atribuições pelas resistências legais, que são as tesouras das unhas dos usurpadores». Na verdade, embora Ferreira Borges tenha sido um dos pais da revolução liberal de 1820, de tantas consequências para a nação luso-brasileira, foi ele também uma das suas principais vítimas. Viveu longos anos exilado, morreu sem dinheiro, sem filhos, cego, com honra e a aqui por nós celebrada glória.

Ferreira Borges afirmou-se como grande jurista. Foi ele o autor do primeiro Código em língua portuguesa7: O Código Comercial de 1833. Na verdade, a imensa obra de José Ferreira Borges8 atravessa o espectro político e jurídico-constitucional mas refulge sobretudo no domínio da economia e finanças. Nesta área, a sua obra inclui, para além do Código Comercial, um Dicionário Jurídico- Comercial, uma das instituições de Economia Política, umas instituições de Direito Cambial, estudos sobre o contrato mercantil de sociedade, sobre o contrato de risco marítimo sobre avarias marítimas e até uma muito interessante obra sobre fiscalidade denominada «Princípios de Sintetologia, compreendendo em geral a Teoria do Tributo, e em particular observações sobre a Administração e Despesas de Portugal, em grande parte aplicáveis ao Brasil».

Temos, por isso, pensador e autor nos domínios do direito comercial, económico, fmanceiro e tributário. Aqueles em que me movo, pelo que já bem vêem o que me aproximou ao Mestre e Colega Ferreira Borges.

Na doutrina portuguesa actual, José Ferreira Borges segue sendo considerado o maior comercialista português de todos os tempos. Assim o afirnou, já em 1960, Barbosa de Magalhães, nos seguintes termos: «Entre todos os notáveis jurisconsultos do seu tempo, foi um dos mais eruditos e mais fecundos, um dos que mais serviços prestaram ao País, um dos que mais se destacaram pela novidade, pela proficiência e singularidade da sua obra. Ainda hoje deve ser considerado o maior comercialista português». Isto mesmo manteve Menezes Cordeiro no seu Manual de Direito Comercial, datado de 2001: «O primeiro Código Comercial português deve-se a um jurista de génio, o qual ainda hoje deve ser considerado o maior comercialista português». Por minha parte, subscrevo, lembrando que esse código foi digno predecessor, e em parte inspirador, do código comercial brasileiro.

Já o Marquês de Pombal pugnara, no século 18, por um código mercantil autónomo que, nas suas palavras: «apresentasse uma feição ajustada à crave ira intelectiva dos mercadores, esconjurando o crónico enfado que os aborrecia em relação aos letrados cavilosos e às leis obscuras».

Enorme relevo e impacto tiveram as companhias pombalinas, essas sociedades mercantis por acções que o Marquês de Pombal introduziu na nossa nação e de que constituem exemplos a Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão e a Companhia Geral de Pemambuco e Paraíba.

A propósito, deixo-vos a seguinte nota curiosa: com Ferreira Borges partilho o orgulho de sermos advogados de um cliente comum, com distância de quase 200 anos, a Companhia Geral da Agricultura e das Vinhas do Alto Douro, sociedade por acções que foi criada pelo Marquês de Pombal, em 1756. Sei que F erre ira Borges partilhava comigo deste orgulho porque em Lisboa, no seu tempo de deputado, ficou para a História como «homem da companhia das vinhas» , bem ressaltando deste epíteto quanto, como eu, pugnou pelo cliente comum que, ainda hoje, nos brinda com tão bom sol do Douro, nas lágrimas de um vinho do Porto.

Esse código mercantil já querido pelo Marquês de Pombal surgiria, volvido quase um século, pela pena iluminada de Ferreira Borges, sequentemente nomeado Supremo Magistrado do Comércio, o Presidente do tribunal superior de comércio que veio instituído pelo próprio código, a quem competia fiscalizar a administração da justiça comercial e regularizar e uniformizar o funcionamento de todas as praças comerciais do país. Ferreira Borges foi deputado, foi magistrado, foi conselheiro de estado… mas ficou sempre um advogado. Ele mesmo no-lo confessou, tendo-nos deixado as seguintes palavras escritas: «Porque tendo sido Conselheiro de Estado nada mais nos restava subir , e porque nem tanto, nem emprego algum nunca ambicionámos, não havendo nenhum mais independente e nobre do que o de nossa profissão de advogado, a esse voltámos»15. O próprio texto do código comercial enaltece a nossa profissão quando ordena o seguinte: «compete ao presidente do tribunal de comércio chamar o advogado que divagar com impertinências ao ponto restrito da questão e, bem assim, conter expressões infamantes. Mas ele Guiz) não poderá de maneira alguma embargar a liberdade de patrocínio do advogado, nem fazer calar os sentimentos da defesa justa, franca e livre, que caracterizam a virtude daquela profissão nobre».

Outra curiosidade: com Ferre ira Borges descobri recentemente que não fui o único advogado empresarial a interessar-me por… Medicina Legal. Porém, eu limitei-me a obter 18 valores na Faculdade de Direito a essa disciplina, que não mais utilizei na minha prática profissional; F erre ira Borges, foi muito mais longe: escreveu um livro sobre o assunto, as suas Instituições de Medicina Forense; o primeiro tratado sobre Medicina Legal em Portugal, que ele justificou do seguinte modo: «Nós nunca vimos em Portugal um corpo de delito devidamente feito. Nunca ouvimos que um só médico fosse nessa qualidade interrogado por testemunha. Abandonámos por esta razão o patrocínio de todas as causas criminais que se nos ofertaram»; ao apresentar a obra eis, então, o seu desiderato: «Se com ela conseguirmos chamar o foro português àquela categoria de que se acha tão arredado; se alcançarmos assim proteger os direitos do inocente e descobrir com certeza a culpa do verdadeiro criminoso; se pudermos com ela ajudar o advogado a ilustrar o júri e certificar o magistrado; temos concorrido para a segurança dos direitos do cidadão português, temos feito um serviço a nossos compatriotas, temos dado uma prova não equívoca de verdadeiro amor à pátria». Já compreenderam que tenho em José Ferreira Borges um Amigo com letra grande, daqueles que duram para a vida. Não é verdade que por não termos partilhado o mesmo espaço e tempo não comunguemos em amizade -se essa pode ser unívoca, de mim para ele, captando o que ele escreveu. A História toma o Homem Sábio, como deixou escrito Francis Bacon, num daqueles escritos que, sem perecerem, perduram. Um daqueles poucos que perduram, na conformidade com essa outra máxima que nos legou Goethe: «a maior parte daquilo que foi dito nunca foi escrito; e a maior parte do que foi escrito pereceu». «Verba volant»; «Tempus Fugit»; ler o que os nossos antepassados nos legaram é como viajar Ao longo da minha vida profissional viajei por todos os continentes. O que apenas foi possível devido ao desenvolvimento dos transportes e telecomunicações no século 20, e à consequente criação desse admirável mundo novo de trocas e internacionalização que todos vivemos nos dias de hoje. Mesmo no Ar, e mesmo no Ciberespaço, manteve-se sempre a navegação, ao meno terminológica, a qual nunca perdeu passo n transporte de pessoas e mercadorias, no desporto no lazer, na guerra e no comércio.

«A História do Comércio é quase a história d homem: ela se perde na escuridade dos séculos: el figura nos tempos fabulosos: ela aparece na voz da tradições; ela caminha com o começo e progress das páginas escritas. Mas a existência do comérci do Homem só deve tomar verdadeiramente est nome com a existência da navegação. As trocas transportes por terra, as caravanas, as cáfilas, aind que de grande recovagem, não tardarão a se excedidas pela tonelagem de poucas e ainda ma construídas embarcações»

«À proporção que se descobriam formas que melhor fugissem aos piratas, que melhor sulcassem as vagas, e mais valentemente aguentassem o embate das ondas e a fúria das tormentas, a construção náutica melhorou e o madeiro informe de jangadas tornou-se nesse colosso magnífico compacto e uniforme, que armazenando um peso enorme de toneladas leva de um ao outro ponto do Mundo os produtos variados da indústria humana».

«A história pois da navegação é, em verdade, a história do Comércio», afirmou Ferreira Borges, em 1835

No ano seguinte, em 1836, em Portugal, um Decreto da Rainha equivocava, em significativo lapsus linguae, Código Comercial Português por um inexistente Código Marítimo POrtuguês21 -também aqui no Brasil, a parte do Código Comercial Brasileiro de 1850 que, ainda hoje, se mantém em vigor respeita ao comércio marítimo.

Isto posto para afIrmar que o duelo jurídico sobre a autonomia do Direito Comercial face ao Direito Civil, de tanta actualidade aqui no Brasil na sequência da aprovação do Código Civil de 2002, sempre passou ao lado do comércio marítimo.

«Os usos e costumes do mar formam o manancial puro e perpétuo de todas as leis do comércio do mar, de todos os códigos do mundo marítimo; de tal sorte que apesar de não ter comparação alguma o comércio de hoje com o comércio dos tempos passados, se tiveram inteira e completa alteração as combinações e transacções mercantis, a lei do mar ficou imutável, e sobranceira a todas as transformações e omnipresente às ocorrências do dia» 22, conforme nos legou F erre ira Borges, na introdução ao seu código comercial de 1833.Mas será que assim imutável, sobranceira e omnipresente continua a velha lei do mar neste nosso século 21 ?
A resposta é não, conforme passo a demonstrar .

No final do século passado, a voz do Direito Internacional tornou-se cada vez mais fIrme e ouvida na sua luta pela afIrmação pacífica do respeito pela esfera do Outro, na afIrmação do princípio da solidariedade internacional. A ideia de um direito comercial uniforme e supranacional que vivificou no ius mercatorum, e constituía leitmotiv no final do Antigo Regime, nunca se concretizou; nem apesar dos esforços neste sentido formulados no quadro das leis uniformes da Sociedade das N ações; nem apesar de nesse século 20, cada vez mais, o princípio internacionalista ter vindo a imperar sobre o princípio nacionalista; nem apesar de cada vez mais, nesse século 20, o princípio universalista ter ganho terreno ao princípio regionalista23.

Porém, um daqueles domínios de excepção em que o Direito Internacional se afIrmou e afIrma sem contestação é precisamente aquele que tem o Mar por objecto. O Mar não apenas no seu aspecto de via onde sulcam as naves que prestam serviços de transporte marítimo ou de puro lazer; mas o mar , também, enquanto continente de património biológico dos Estados e da Humanidade; o mar enquanto algo mais do que a sua superfície: o mar de latitude e longitude, do direito comercial marítimo tradicional, mas agora, também, o mar em toda a sua dimensão vertical, superjacente e subjacente à linha de água.

Em 10 de Dezembro de 1982, em Montego Bay, J amaica, foi aberta a assinaturas a Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar. Nesse mesmo dia, assinaram a Convenção 119 delegações de Estados e territórios autónomos, estabelecendo um recorde internacional: nunca, até hoje, um tratado internacional foi objecto de uma tamanha manifestação de suporte no primeiro dia em que veio aberto a assinaturas.

Na verdade, a abertura a assinaturas da convenção foi o produto do trabalho de mais de 14 anos de processo negocial, no qual participaram mais de 150 Estados de todas as partes do globo, representando diferentes sistemas jurídicos, representando diferentes graus de desenvolvimento económico e representado, também, em toda a sua diversidade, a relação dos diferentes territórios com o Mar: ilhas, arquipélagos, estados costeiros e mesmo estados sem acesso ao Mar, todos juntos, regulando direitos, deveres e obrigações quanto a essa imensa mole inter-terrena que toma azul o nosso planeta.

A Convenção entrou em vigor no dia 16 de Novembro de 1994. Este ano celebra 22 anos de existência e 10 anos de vigência. Ao dia de hoje, a Convenção do Direito do Mar veio assinada por 159 estados e territórios, estando em vigor em 141 (incluindo a Comunidade Europeia que também é membro da Convenção, de par com os estados que integram a própria Europa dos 25)

Todos os países de expressão oficial portuguesa ( com a excepção de Timor) fazem parte da Convenção. De todos, o pioneiro veio a ser a Guiné- Bissau, que aderiu em 25 de Agosto de 1986. Seguiu-se Cabo Verde, um ano depois, em 10 de Agosto de 1987. Ainda no mesmo ano, São Tomé e Princípe, em 3 de Novembro de 1987. No ano seguinte, aderiu o Brasil, em 22 de Dezembro de 1988. Depois veio Angola, em 5 de Dezembro de 1990. Dez anos volvidos, Moçambique colocou a convenção em vigor no seu território, em 13 de Março de 1997. Já só faltava Portugal. ..onde a Convenção entrou em vigor no fmal desse mesmo ano, em 3 de Novembro de 1997, justamente a tempo da celebração dos Oceanos e da Expo98.

Infelizmente, não existe uma versão oficial em língua portuguesa deste tratado internacional.

Testemunho de que isso veio tentado, durante o processo negocial, é-nos dado por Vicente Marotta Rangel, em obra que escreveu sobre a unificação legislativa do direito do mar entre países de língua portuguesa. Existem versões oficiais em inglês, francês, espanhol, árabe, chinês e mesmo uma versão oficial em russo, aprovada já após a entrada em vigor da Convenção. Em português é que não há. E é pena!

A Convenção de Montego Bay veio consolidar muito do direito consuetundinário e tratadístico do Mar; mas veio, sobretudo inovar neste domínio do Direito.

Desde logo, porque veio pôr termo ao longamente vigente, desde o século 17, príncípio da liberdade dos mares, pai de todas as piratarias e invasões naquelas épocas em que o direito internacional se limitou ao papel de criado-mudo. A doutrina que subjazia à liberdade de navegação limitava os direitos e a jurisdição dos estados a uma estreita faixa de 3 milhas bordejantes das respectivas costas.

Questões como as relacionadas com os riscos de poluição e os dejectos oriundos dos navios de transporte que sulcam os mares do mundo; como as relacionadas com a exploração dos imensos recursos marinhos, cada vez mais possibilitada pelas novas tecnologias; ou ainda, as questões relacionadas com a preservação dos bancos de pesca costeira, cada vez mais intensamente explorados; questões deste tipo e, muito em especial, a decisão dos EUA que, em 1945, sob a pressão dos interesses petrolíferos, estendeu unilateralmente a sua jurisdição à plataforma continental adjacente, no que foi seguido por muitos países -, levam à crise do princípio da liberdade de navegação. E levaram à respectiva substituição, no âmbito da Convenção, pelas zonas do mar territorial (das 12 milhas) e da zona económica exclusiva (das 200 milhas), conservando apenas a liberdade de alto mar para fins pacíficos.

Hoje em dia, a liberdade de navegação viu o seu alcance restringido, aplicando-se a todas as partes do mar não incluídas na zona económica exclusiva, nem incluídas no mar territorial ou nas águas interiores de um Estado, nem incluídas nas águas de um Estado arquipélago.

Nem obstante, todos os Estados, ques costeiros, quer sem litoral, têm o direito de fazer navegar no alto mar navios que arvorem a sua bandeira. Para tanto, mesmo os estados sem litoral, têm o direito de acesso ao mar, nos termos da Convenção.

No final do século 20, convém lembrá-lo, o mar era fonte de disputas e factor perturbação da ordem mundial. Por isso, os estados signatários, animados do desejo de solucionar todas as questões relativas ao direito do mar, acordaram os princípios, normas e definições contidos nos 320 artigos e 9 anexos da Convenção.

A convenção do Direito do Mar regula todos os apectos do espaço marítimo, desde ddelimitações a controle ambiental, investigação científica, adtividades económicas e comerciais, tecnologias e resolução de disputas relacionadas com matérias oceânicas. É uma verdadeira Constituição do Mar. Representa não apenas a codificação de normas consuetudinárias do comércio marítimo – velhas como a própria história (no dizer de Ferreira Borges) – mas representa, também, uma evolução das mesmas, com a introdução de novo normativo aplicado ao próprio direito comerical marítimo, agora integrado pela conscientização de que os problemas do espaço oceânico estão estreitamente inter-relacionados e devem ser considerados como um todo.

Uma magnífica criação legislativa, que surgiu com a Constituição do Mar, é a institucionalização daquilo que eu chamo o novo continente (não me atrevendo a afirmar se é o sexto, ou o sétimo, ou qualquer outro numeral, porque isso sempre depende da região do globo onde nos encontremos). Na Convenção do Direito do Mar esse novo continente vem designado por < >, em inglês, por <>, em espanhol, e vem normalmente traduzido por a <<Área>> em língua portuguesa – embora a falta de tradução oficial legitime traduzi-la por a <>. Esse declarado património da humanidade, vem definido como sendo o leito do mar, os fundos marinhos e o seu subsolo além dos limites da jurisdição nacional. A respectiva institucionalização constituiu uma fantástica criação da Convenção, que vem impedir a respectiva apropriação por parte de qualquer Estado ou organização, ao mesmo tempo que institui um órgão de governo para este novo continente da hidrosfera terrena, a Autoridade da Área – essa pré-visão para-ficcional de uma futura autoridade federal do planeta.

Outra importante criação da Convenção do Direito do Mar foi o Tribunal Internacional do Direito do Mar .Este tribunal internacional veio instituído na sequência da entrada em vigor da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, em 16 de Novembro de 1994. Após a eleição, em 1 de Agosto de 1996, dos primeiros juizes (um dos quais de nacionalidade brasileira: o j á citado Vicente Marotta Rangel), o tribunal entrou em funcionamento na sua sede, na «hanseática e livre» cidade de Hamburgo, na Alemanha – em 1 de Outubro de 1996.

O Tribunal dispõe de competência para julgar todas as disputas relevando da aplicação ou interpretação da Convenção que, como já afIrmei, constitui uma codificação jurídica das matérias do mar.

Até à presente data, O Tribunal do Mar julgou 12 casos. De três grandes tipos. Em primeiro lugar: questões relacionadas com a navegação, nomeadamente, medidas cautelares de pronta libertação das embarcações e das suas tripulações37, casos de jurisdição de estado costeiro nas suas zonas marítimas, questões de liberdade de navegação, de direito de perseguição e casos de uso de pavilhões de conveniência. Em segundo lugar, questões relacionadas com a protecção do meio marinho, em especial dos fundos marinhos, mas também de poluição originária de instalações construídas em solo fIrme. Em terceiro lugar, questões relacionadas com a conservação de stocks de pescado .

Já foram parte em litígios no Tribunal Internacional do Direito do Mar diversos estados e territórios, tão díspares que não resisto à tentação de passar a enumerá-los: São Vicente e Granadinas, Guiné, N ova Zelândia, J apão, Austrália, Panamá, França, Seychelles, Chile, Comunidade Europeia, Belize, y émen, Irlanda, Grã-Bretanha, Federação Russa, Mal ásia e Singapura. Porém, cabe aqui afIrmar que nem apenas os Estados podem ser parte neste tribunal. Com efeito, em diversos casos previstos expressamente na Convenção, podem ser parte no Tribunal organizações, territórios, empresas e mesmo pessoas singulares38.

Em matéria de curiosidades, refIra-se que a França já foi arguida em três casos diferentes de medidas cauteI are s de pronta libertação das embarcações e das suas tripulações. No caso Camouco, o Panamá obteve do Tribunal a ordem de libertação da tripulação e do navio apresados pela França; o mesmo tendo sucedido no caso Monte Cofurcu, ganho pelas Seychelles. Já no caso do navio Grand Prince, o Belize não conseguiu obter essa declaração porquanto o Tribunal se declarou incompetente para conhecer da questão, por falta de suficientes elementos de prova sobre a nacionalidade do navio.

No caso que opôs a Irlanda à Grã- Bretanha, por meio do qual aquele país pediu ao tribunal medidas cautelares relativas a potencial poluição marítima emananda de uma fábrica em construção junto à sua costa, no território da Grã-Bretanha, colocou-se a interessante questão de saber se o facto de ambos os países serem membros da Comunidade Europeia os submeteria, obrigatoriamente, à jurisdição do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, vedando-lhes a jurisdição do Tribunal Internacional do Mar. A resposta foi negativa, tendo o Tribunal do Mar declarado a sua competência concorrente na matena.

No caso que opôs a Mal ásia a Singapura, o Tribunal veio declarar, na esteira de recente jurisprudência do Tribunal Internacional de Justiça, que a submissão de um litígio ao tribunal não tem que ser, necessariamente, precedida pelo esgotamento de negociações diplomáticas.

Um caso que se mantém pendente sem decisão, devido a pedido de suspensão das partes, opõe o Chile às Comunidades Europeias sobre conservação e exploração duradoura dos stocks de espadarte no oceano pacífico-sudeste.

Com 8 anos de funcionamento, o Tribunal tem vindo a prestar relevante contributo ao extraordinário desenvolvimento da Lei do Mar que ocorreu na passagem do milénio

A partir do próximo mês de Novembro de 2004, passará a ser possível a revisão da Convenção das N ações Unidas sobre o Direito do Mar, volvidos que estarão dez anos sobre a sua entrada em vigor o A Comissão Europeia tenciona propor uma revisão da Convenção para aumentar as competências dos Estados costeiros em matéria de prevenção da poluição do meio marinho; conforme anunciou por diversas vezes, nomeadamente nas duas comunicações que adoptou na sequência do naufrágio do Prestige em Dezembro de 2002 e Março de 20030

A Constituição do Mar, à semelhança de seu próprio objecto, tem muito ainda por explorar e para dar, designadamente nos seus aspectos jurídicos. N omeadamente em Portugal, onde a comissão para a harmonização do ordenamento jurídico português face à Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mr, nada harmonizou. Muito está por fazer nesta matéria de interesse internacional, tão cara ao mundo de expressão portuguesa, este nosso mundo de tanto navegar. Em 1808, veio apenas interrompida a navegação de cabotagem entre Portugal e o Brasil. Com efeito, na sessão de 1 de Abril de 1822 no nosso parlamento então comum, veio aprovado um projeto de decreto sobre relações comerciais entre o Brasil e Portugal que dispunha assim: << O Comércio entre os Reinos de Portugal Brasil e Algarve, será considerado como de províncias de um mesmo continente>>,

Pelas palavras do então deputado Ferreira Borges, registradas nas actas das cortes, ficou fixado o elemento histórico para a interpretação de tal norma: < <

Pelas palavras do então Deputado Ferreira Borges, registradas nas actas das cortes, ficou fixado o elemento histórico para a interpretação de tal norma: << Trata-se de considerar o comércio de Portugal, Brasil, e Algarves, como de províncias de um mesmo continente, para com tal reputar-se de cabotagem>>. A ficção jurídica contraria a <>, pelo que Ferreira Borges ainda propôs a seguinte redacção alternativa para o artigo de lei: que: << o comércio de possessão a possessão portuguesa será reputado de cabotagem>>. Nem obstante, prevaleceu, aliás com voto unânime, a redação supra referida, com o objetivo de incrementar e proteger será reputado de cabotagem>>. Nem obstante, prevaleceu, aliás com voto unânime, a redacção supra referida, com o objectivo de incrementar e proteger as relações comerciais entre o Brasil e Portugal. As quais, na época, perdoe-se-me recordá-lo, apenas e tão somente se podiam valer desse nosso navegar para comerciar.

O reconhecimento por Portugal da independência do Brasil, em 1825, veio terminar de jure aquilo que o Eu Fico terrminara, ipso facto, passados poucos dias, logo em 7 de setembro daquele mesmo ano de 1822: isto é, a navegação de cabotagem entre nossos portos.

Porém, nem obstante a separação de nossos países e a evolução dos meios de comércio, eu creio que a navegação entre nossos portos continua sendo como que de cabotagem. Louvo-me, em minha crença, num muito recente tratado bilateral entre nossos dois países, o Acordo sobre Transporte e Navegação Marítima entre o Governo da República Portuguesa e o Governo da República Federativa do Brasil, assinado em Brasília, em 23 de maio de 1978, com as alterações que lhe vieram introduzidasa pelo Protocolo de Altgeração feito em Brasília, em 10 de Outubro de 1994.

Com efeito, dispõe dos seguintes termos o artigo primeiro deste tratado: <>. Além disso, as < >.

Pena foi que, no afã europeísta, tenha vindo introduzido um número três naquele artigo primeiro que declara o seguinte: << o disposto no nº1 deste artigo não limitará os direitos que assistem aos armadores comutários relativamente às cargas que couberem aos armadores portugueses>>. Perdeu-se a oportunidade de transformar os portos portugueses na porta sul-europeia da carga brasileira e, reciprocamente, de transformar os portos brasileiros na porta sul-americana de cargas europeias. Ainda estamos a tempo de recuperar.

Porém, ao invés do que sucedeu no nosso passado comum, o conceito técnico-jurídico de cabotagem não poderá vir a ser livremente usado para tal efeito de interesse bilateral.

Assim sucede proquanto, hoje em dia, nossos países são membros da Organização Mundia do Comércio, que vigora desde 1 de Janeiro de 1995, e representa o princípio da legalidade no Comércio Internacional: a OMC veio introduzir, por issoi, um novo elemento de interpretação e novos limites jurídicos a um tratado bilateral de comércio como o referido; designadamente, em vista dos compromissos de progressiva liberalização assumidos no âmbito do GATS, em sede de serviços marítimos de transportes.

A organizaçao Mundial do Comércio estabeleceu o Direito do Comércio internacional. Como nunca antes sucedera na história mundial: aos tratados bilaterais vigentes no passado e aos sistemas multilateriais parcelas (como o GATT de 1947, Sobre mercadorias ou o PCT, sobre patentes), sucedeu o sistema integrado de tratatos plurilaterais da Organização Mundial do Comércio. O Tratado da Organização Mundial do Comércio, assinado em, Marraquexe em 1994, e os concomitantes tratados individuais de acessão à OMC e tratados multilaterais anexos – especialmente o

GATT (parta mercadorias), o GATS (para serviços) e o TRIPS (para propriedade intelectual) constituem hoje, volvidos 10 anos, sólidas bases legais para o desenvolvimento de comércio livre e justo entre os produtores e consumidores dos 147 membros da OMC; com cerca de 30 outros países observadores em processo de negociação da respectiva entrada na organização.

No quadro dos tratados multilateriais da OMC,vigora a separação entre <> e <>, dando a impressão de que apenas o primeiro deverá valer como <> – com as ressalvas correspondentes ao institudo da cláusula de nação mais favorecida.l

Com efeito, quer-me parecer que o tráfego internacional de mercadorias em transporte marítimo não poderá ser considerado cabotagem ; Termo este que, no direito mundial do comércio, ao menos de há 10 anos para cá, virá reservado vinculisticamente para o tráfego nacional e, consequentemente, excluído do respectivo âmbito de aplicação.

Porém, algumas exepções levantam dificuldades no encerramento da questão: ressalto, entre as demais, a dificuldade que resulta de poder ser considerado tráfego de cabotagem aquele tráfego internacional que vem efectuado entre dois estados membros da Comunidade Europeia.

Ao abrigo dos princípios e textos da OMC, prima facie, dá a impressão de que ficará em crise a possibilidade de utilização de um conceito que eu aqui denominaria por <>, mas a questão não tem ainda ponto final; admitindo que poderá chegar ainda o dia em que o conceito técnico-jurídico de cabotagem voltará a ser re-utilizado por nossos dois estados de molde a incrementar nossas relações comerciais bilaterais, em matérias de navegação marítima inter-atlântica. <