Três advogados brasileiros em Pequim relatam como negociar na China superando obstáculos culturais

RAUL JUSTE LORES
DE PEQUIM

Três jovens advogados brasileiros são pioneiros na crescente relação econômica entre Brasil e China. Eles assessoram empresas dos dois países na instalação de filiais, contratos de sociedade e fornecimento, em como se defender da pirataria e até dão conselhos sobre a cultura local aos forasteiros. Rodrigo do Val Ferreira, 31, do escritório Felsberg e Associados, e Gustavo de Jacobina Rabello, 32, do escritório Noronha, vivem em Xangai há quatro e três anos, respectivamente, enquanto José Ricardo dos Santos Luz, 29, do Duarte Garcia e Associados, está há três anos em Pequim.
Eles dizem que é muito maior o número de chineses se informando sobre como investir no Brasil que o de brasileiros sobre a China e alertam sobre dois grandes obstáculos: a enorme diferença da cultura empresarial chinesa, "onde paciência é tudo", e a cara burocracia brasileira para a instalação de empresas chinesas. O Brasil já está entre os dez países com maior número de escritórios de advocacia com representação na China. Dos 188 escritórios estrangeiros autorizados no país, 83 são dos EUA e 24 do Reino Unido. Leia a seguir trechos da entrevista que os três advogados concederam à Folha. 

BRASIL É CARO
LUZ – O número de chineses querendo saber como investir no Brasil aumentou muito, mas todos reclamam de que é caro. Em linhas gerais, uma empresa chinesa que queira enviar um gerente para o Brasil para abrir a empresa, sem contratar um brasileiro, terá que investir US$ 200 mil por estrangeiro enviado. E ainda precisa encontrar um procurador local para assinar documentos, algo difícil para uma pequena ou média empresa.
RABELLO – Tenho sido procurado por empresas automobilísticas, de autopeças, químicas, farmacêuticas e até estatais que fazem máquinas de escavação e perfuração petrolífera para investir no Brasil, mais que brasileiros investindo na China. O problema é que elas sempre comparam com a abertura de uma empresa em Hong Kong, que leva sete dias, ou com os EUA, onde levariam menos de um mês, e percebem que pode levar quatro meses no Brasil.

LUZ – Na China, é bem mais simples. Com o equivalente a R$ 2.500, pode-se abrir um escritório de representação, chefiado por um brasileiro. Leva 30 dias, enquanto, em São Paulo, a mesma empresa leva 90 dias. O escritório desenvolve relacionamento com o governo chinês, começa a conhecer clientes e fornecedores, só não pode obter lucro. Facilita e barateia o primeiro contato da empresa com o novo país, é melhor do que já abrir uma fábrica de cara. Os impostos são baseados nas despesas com o custo de escritório e funcionários. Para abrir uma fábrica 100% estrangeira, sem participação chinesa, exigem-se R$ 7.500.
MAPA DO GOVERNO
LUZ – Há um catálogo para investimentos feito pelo governo que estipula quais são os setores onde os investidores estrangeiros podem investir. Há setores proibidos e outros em que só se pode entrar em sociedade com empresários locais. E existem os setores incentivados, como novas tecnologias, pesquisa e desenvolvimento, energias renováveis, inovação, onde nos primeiros cinco anos não é cobrado IPTU.
Como os estrangeiros preferem as áreas portuárias, o leste do país, há o programa "China Goes West" ("A China Vai ao Oeste"), com mais incentivos. A Intel trocou Xangai por Chengdu por isso.
ANTIDUMPING
 RABELLO – O número de investigações contra produtos chineses no Brasil aumentou muito no ano passado. As câmaras chinesas de produtos como sapatos, tênis, malhas de viscose, pneus, tubos de PVC, seringas e outros sob investigação antidumping nos procuram para saber como se defender. Os chineses acham que são vítimas de preconceito, o argumento mais comum é que não existe dumping e que as empresas brasileiras não querem concorrência.
JUSTIÇA LOCAL
 RABELLO – Muita coisa na Justiça chinesa é recente. O Código Civil é de 1986, a lei contratual é de 1999, e a de propriedade intelectual, de 1994. Os centros de arbitragem [que faziam o papel de Justiça no início do comunismo] ainda são maioria.
MEDO
FERREIRA – Muito empresário brasileiro vem em missões empresariais para cá, assusta-se com as dimensões, acha tudo complicado e nunca mais volta. É preciso que o empresário venha com mais tempo, não fique só nas feiras, visite fábricas. Por um bom tempo, a China será competitiva em preços, e a qualidade dos produtos já está aumentando.
TRIBUTAÇÃO
 RABELLO – Na China, há quatro impostos que todas as empresas pagam, o de valor agregado, o de renda, uma taxa de negócios e sobre as remessas ao exterior. Alguns outros setores possuem outras taxas, mas em geral menos que no Brasil.
"É preciso uma ação preventiva contra pirataria"
DE PEQUIM
Um dos maiores temores dos empresários brasileiros que vão à China buscar fornecedores ou parceiros é que seus produtos sejam copiados e pirateados em escala global. A lista de vítimas internacionais é imensa. Os advogados brasileiros no país sugerem como se prevenir, mas dizem que as punições na Justiça chinesa ainda não envolvem indenizações milionárias, como em outros locais.

AÇÃO PREVENTIVA
FERREIRA – A primeira empresa a registrar um produto no equivalente chinês do Inpi [Instituto Nacional da Propriedade Industrial] se torna detentora da marca. Então agir preventivamente é importante. Registre seu produto já. Um bom contrato com o fornecedor é fundamental. O chinês nunca dirá que não consegue atender a um pedido e acaba terceirizando a outras fabriquetas. Tem fornecedor que gera um excedente de produção para fazer caixa.
Hoje os contratos exigem que seja produzido em apenas uma unidade ou em algumas poucas e que os moldes sejam devolvidos, assim como o que não passar pelo controle de qualidade. Você terá direito de visitá-las.
Não quer dizer que não haverá pirataria. No interior, o interesse das fábricas locais conta mais, e a Justiça pode ser mais protecionista. Em Pequim ou Xangai, se você achar a peça pirateada, é melhor. Vale registrar a propriedade intelectual em uma delas.
RABELLO – A fábrica brasileira de cadeados e fechaduras Soprano, de Caxias do Sul (RS), esteve em 2000 pesquisando fornecedores na China.
Um deles viu o catálogo e registrou a marca e o logo, impedindo que os fabricantes brasileiros exportassem com sua própria marca para o país. Ele poderia revender a marca à própria se ela quisesse exportar para a China. O Inpi local, que tem juízes arbitrais, decidiu a favor da empresa brasileira, que tinha toda a documentação para provar. Mas a indenização foi pequena.
 FERREIRA – A condenação ainda não é satisfatória, pois pode cessar a violação, mas sem uma compensação econômica. Enquanto não doer no bolso, a pirataria vai continuar.
Há alguns anos, havia aqui até a versão pirata da cerveja mexicana Corona, usavam garrafas parecidas e com o mesmo logo e colocavam outra cerveja dentro. O maior risco é que esses produtos pirateados sejam exportados, competindo em terceiros mercados, não só na China, com o original.
Relação pessoal é essencial nos negócios
DE PEQUIM
Jantares que terminam em bebedeiras sem quase se falar de negócios ou reuniões intermináveis estão entre os maiores choques culturais enfrentados por empresários brasileiros na China. Os advogados brasileiros Rodrigo do Val Ferreira, Gustavo de Jacobina Rabello e José Ricardo dos Santos Luz falam da importância da relação pessoal no país. (RJL)

RITUAL DO BANQUETE
 FERREIRA – No início de qualquer relação comercial, há o ritual do banquete com diversos brindes com baijiu [a aguardente chinesa]. O que é visto pela maioria dos ocidentais como um ritual bizarro, e nada amistoso com o fígado, é uma tentativa do chinês de criar um laço de amizade, a partir do qual ele se sentirá seguro. É da amizade que decorrem todas as obrigações morais que se devem aos amigos, incluindo a lealdade comercial. Embebedar-se juntos faz parte desse ritual de criar confiança.
LUZ – Muita gente chega aqui sem nem saber que a educação diz que se entrega o cartão de visita com as duas mãos e que os seus dados devem também estar em ideogramas chineses. Somos mais afobados e vamos direto ao assunto. Os chineses gostam de reuniões longas, jantares longos, tiram as dúvidas mil vezes. Paciência é importante, não dá para vir afobado negociar.
ÉTICA LOCAL
 FERREIRA – No Ocidente, a moral cristã nos ensina a amar o próximo, a tratar um desconhecido como gostaríamos de ser tratados. Na China, não é assim. Segundo o confucionismo, há cinco relações principais na sociedade: entre criador e criatura; governante e subordinado (ou patrões e empregados); pais e filhos; marido e mulher; e entre irmãos (e também amigos).
Todas aquelas figuras têm um papel específico na sociedade e devem agir de acordo com a moral intrínseca àqueles papéis. Com desconhecidos, não há papel nenhum a se desempenhar. Ou seja, não há nenhuma obrigação moral que te direcione a agir de certa maneira.
Frase

Somos afobados e vamos direto ao assunto. Os chineses gostam de reuniões longas. Paciência é importante
JOSÉ RICARDO DOS SANTOS LUZ