Actualmente a ciência já não se limita à descrição dos processos biológicos, mas tenta modificar o curso da evolução das espécies, ao criar em laboratório novos seres autónomos não previstos nos planos da natureza.

As vantagens são incontáveis, no entanto, há, também, valores que estão a ser postos em causa.

Vivemos uma era de grande crise para a pessoa. De crise específica induzida pelo sismo dos progressos biotecnológicos.

Tentar avançar uma noção daquilo que é a pessoa presentemente não esgota os problemas que ela suscita [1]. Há que elucidar, cada vez mais, a biomedicina [2] , para ficar em consonância com a sua figura, reconhecida os traços inéditos que nela são desenhados pela experiência dos limites.

Os limites [3] da pessoa, são, ates de tudo, produto de um processo de personalização que tem como responsabilidade traçá-los até Tão longe que seja possível encontrar, em cada caso concreto, causa e sentido para preservar a dignidade do ser humano .A apreensão e extensão da pessoa nunca tinham sido desordenadas nestes moldes. Poderá a pessoa subsistir só, incólume, nesta completa oscilação das referências?

À medida que mais reivindico a minha Humanidade plena [4], mais sou levada a tornar-me membro do género humano. Quando ser-se a si próprio se transforma numa aspiração de natureza universal, a individualidade e a universalidade caminham de mãos dadas. Pode, deste modo, a pessoa engrandecer- se, concomitantemente, dos dois prismas.

Poder-se-á objectar que esta análise está ferida de um universalismo do género humano pouco atento à diferença radical das identidades que caracterizam as pessoas e os povos, ainda que não esconda a intenção de sujeitar as várias culturas a uma única representação daquilo que faz o valor do homem. Contudo, não estará esta objecção, ela própria, aprisionada a um entendimento pouco elaborado do universal?

Universalização não deve ser confundida com uniformização pois se assim fosse seria um pretenso universalismo. Pelo contrário, universalização pode ser interpretada como emergência de equivalências, numa pluralidade continua de formas, onde o universal está longe de derivar sempre do mesmo lado.

A universalização ética não é, de modo algum, a unifomização das sabedorias específicas, mas sim a partilha de valores íntimos. Por exemplo, são viáveis diversas abordagens dos Direitos do Homem, mas o fundamental é respeitá-los em toda a parte. É isso que exige a universalidade da pessoa.

São cada vez em maior número os autores que defendem que, à medida que se desenvolvem as áreas do saber humano que se debruçam sobre a pessoa, se agrava a crise da perda da identidade do Homem. Como já referia Scheler, na história de mais de dez mil anos, encontramo-nos numa época em que o Homem tornou-se para si mesmo universal e radicalmente problemático: não sabe quem ele próprio é e dá- se conta de nunca mais o saber [5].

No actual contexto científico e cultural possibilitado pelas novas biotecnologias em que o próprio significado da pessoa se encontra um tanto ou quanto diluído, é cada vez maior a tendência para elaborar novas antropologias com o contributo interdisciplinar do direito, da genética, da filosofia, etc.

Estamos perante um momento crucial da historia da Humanidade. Eu diria, mesmo, que estamos "numa época de fazer época", pela excepcional capacidade de mudança, de modificação que os novos avanços científicos proporcionam .

No meu livro Direito ao Património Genético [6] chamo a atenção para todo um conjunto de problemas que as novas biotecnologias suscitam e pedem resposta, tais como a inseminação artificial post-mortem, a clonagem, o contrato de gestação uterina, o anonimato do dador, a descoberta do genoma humano, etc.

Proponho hoje aqui trazer à colação o tema da clonagem humana que, no meu modesto entendimento, configura um exemplo paradigmático do eterno diálogo entre o genoma humano, e o meio ambiente .

Os profetas da clonagem visam a criação de seres geneticamente iguais a outros, com a mesma estrutura física, a mesma aparência, com a mesma maneira de ser e de estar no mundo, os mesmo gostos, pensamentos, idiossincracias. Enfim, teríamos, assim, um mundo cada vez mais uniforme .

Inúmeras questões podem ser equacionadas se a clonagem vier a ser possível.

Será de admitir que se possa produzir uma criança fenotipicamente idêntica ao ser que the deu origem genética? [7] [8] [9] [10] [11].

Como se processará o desenvolvimento psíquico-intelectual do sósia genético?

A imagem da pessoa que the deu origem poderá funcionar como um travão, uma barreira ao livre desenvolvimento da sua própria personalidade?

O produto da cultura biológica sempre que olhar para o seu "progenitor" olhará também para o seu próprio futuro.

Com estas condicionantes poderá defrontar-se com inúmeras dificuldades para conseguir adquirir uma personalidade, uma identidade própria, diferente do seu progenitor (pensando na já conhecida enorme influência mútua que se processa entre gémeos verdadeiros).

Se for admitida a clonagem a partir de cromossomas de ídolos famosos é provável que o fenómeno do mimetismo, a que os ídolos andam na maior parte das vezes associados, conduza a que muitos pais "mandem fabricar" os seus filhos segundo esses modelos.

Será admissível que a criança fruto da técnica de "cloning" tenha que transportar durante toda a vida nos seus ombros a patética escolha dos seus progenitores por um determinado ídolo político, do mundo do desporto ou espectáculo?

Será correcto a criança poder sentir que não é amada por si mas pelas suas características que previamente foram ou não seleccionadas e proporcionadas pelos genes?

É um mundo novo! …

A última fronteira nesta escalada de hipóteses suscitada pela biotecnologia seria a de uma Humanidade dividida em duas ou mais "raças" com destinos diferentes: uma de super-homens, belos, fortes e inteligentes, de amos e outra de infra humanos para servir aquela .

A produção humana pelo método de cloning está, por vezes, imbuída de uma carga eminentemente eugénica: os profetas da clonagem visam a obtenção do gémeo ideal, a (re) produção dos grandes Homens da Humanidade .

Apesar disso, entendo que não podemos radicalizar os problemas e concluir que se que se fosse possível clonar Cícero, Leonardo Da Vinci, Einstein obteríamos novamente Cícero, Leonardo Da Vinci, Einstein, pois o contexto familiar, político, cultural, económico, social, etc. seria outro. Se é certo que, por um lado, a carga genética é essencial, por outro lado, não podemos descurar o contributo fundamental fornecido pelo meio. Pelo que, seria necessário "reproduzir", também, todo o contexto em que os "modelos" se desenvolveram, desde a concepção até a morte. Consubstanciaria, sem dúvida, a reprodução de seres com as mesmas características mas, não seria portanto uma fotocópia milimétrica .

Porém, a animação da clonagem humana continua sujeita a construções míticas e delírios, com visionários a profetizarem a reconstrução do Homem e do mundo .

Um Homem novo para um mundo novo. Ou, um Homem igual (porque clonado) para um mundo diferente? ! …

Com efeito, o desenvolvimento científico originou uma aventura sem precedentes na "construção" de um novo Homem. Os progressos da engenharia genética operados nas últimas décadas e os que são previsíveis num futuro próximo abrem novos horizontes não só para a investigação cientifica como para outros domínios, designadamente para o campo jurídico, explorando novas possibilidades para o melhor e para o pior.

É precisamente na fronteira do melhor e do pior que a Ética deve tentar traçar e balisar um caminho que permita evitar os precipícios mas, também, que possibilite progredir até onde se quer chegar. A consciência ou o medo do risco pode tornar-se paralisante: pode impedir ir mais além ou mesmo bloquear o avanço. Todavia, por seu turno, a inconsciência do risco, a ânsia da aventura pode conduzir a catástrofes das quais só se toma verdadeira consciência, muitas vezes, tarde demais.

A Ética fornece, ou deve fornecer, critérios considerados fundamentais para a tornada de decisões e de acções.

O entusiasmo actual pelo acesso aos dados genéticos explica-se, sem dúvida, pelos progressos operados na compreensão dos mecanismos da hereditariedade e na capacidade de identificação das pessoas segundo as suas características genéticas únicas e irrepetíveis.

Porém, poder-se-á colocar a questão de saber se não haverá perigo de estarmos a avançar para uma visão reducionista ou redutora do ser humano; uma biologização ou, se preferível, genetização, da vida pessoal e social? Traduzirá esta admiração, ou, segundo alguns, esta obsessão a expressão de um novo materialismo que reduz o conhecimento do corpo ao mecanismo dos genes de que depende o fenótipo de cada um? O prémio não será um risco acrescido de supervalorização do indivíduo com o concomitante postergar da pessoa humana cuja existência é, também, uma coexistência, um relacionamento com o outro?

A profunda unidade ontológica faz do Homem um ser corpore et anima unus.

Se é verdade que a carga genética participa da dignidade da pessoa humana como elemento característico da sua corporalidade e da sua identidade, ela não esgota o valor e a riqueza da pessoa humana. A pessoa, graças à sua vida espiritual,

transcende a corporalidade e, logo, a própria carga genética. Isto implica que ao longo de cada percurso existencial, a vida espiritual, a cultura e o meio de vida enriquecem a personalidade para além do puro determinismo genético e biológico.

Cada ser vivo é o produto do dialogo entre genes e meio de vida, e no caso concreto do ser vivo Homem, ser espiritual, o enriquecimento produz-se não apenas a nível do meio ambiente, mas, também, a nível cultural e espiritual. A titulo de exemplo cito o caso de dois gémeos idênticos, a personalidade pode desenvolver-se de modo diferente.

Na medida em que as preocupações da Ética reflectem as do Direito no peso dos jogos e da avaliação dos interesses sociais em jogo, o Direito, pelas suas instituições, os seus métodos e processos, tem o dever de tentar sensibilizar a Humanidade para uma nova ordem de valores em que Direito, Ética e Ciência tem de caminhar lado a lado em perfeita harmonia.

Do ponto de vista ético-jurídico, que concepção de Humanidade se encontrará subjacente à prática da clonagem? Que concepção de Humanidade temos nós já hoje?

E, numa perspectiva preditiva ou predizente que concepção de Humanidade queremos e teremos nós amanhã? Aquela que hoje nós no domínio do subconsciente, inconsciente ou mesmo do consciente escolhemos como sendo a mais idónea.

E, especificamente, quem é que na realidade escolhe? Quando? Como? Em que termos? Em que condições? Em obediência a algum modelo pré-determinado?

Decidimos nas nossas praticas quotidianas: na investigação científica, etc..

De um lado, o Homem como ente livre e autónomo. Como algo ainda não construído, mas em permanente e incessante construção. O Homem como produto da dinâmica interactiva entre genes e meio ambiente.

Por outro lado, o Homem clonado, programado, como um dado constituído previamente determinado, já construído, igual a outrem cujas características nós escolhemos previamente para ele.

Que Humanidade teremos, então, nós amanhã?! … Já decidimos ontem para hoje, decidiremos também hoje para amanhã?! … Quais de entre nós decidirão?! … E decidiremos pelos outros?! …Os outros de ontem, hoje e de amanha?! … Sem que eles tenham o direito de se manifestarem, de disserem o que pensam, de revelarem se concordam ou não com as escolhas feitas antecipadamente por nós para eles?!…

Eticamente correcto?!…

Somos deuses, senhores e actores da nossa existência e simultaneamente escravos e espectadores do futuro por nós traçado. Escrevemos, interpretamos e vivemos uma peça teatral cujos limites e perigos da intriga desconhecemos por completo .

Com efeito, nas fronteiras da vida humana abrem-se novas possibilidades e responsabilidades com o constante progresso da tecnologia .

A solução não está em condenar todos os avanços científicos caindo num dogmatismo fixista pois seria esquecer que a ciência tem sido o motor da civilização. Há que acolher como bençãos todos os seus resultados positivos.

É preciso encontrar uma solução de compromisso razoável entre o direito fundamental à investigação e a lealdade, a necessidade absoluta de defender as raízes da identidade humana.

Quando o entrechoque de interesses e contradições se instala naturalmente na vida das pessoas, a regra jurídica é o instrumento último para impôr condutas obrigatórias. Porém, não existe ainda legislação em Portugal sobre este tema.

O Direito não pode ficar indiferente face aos gigantescos passos da ciência que põem em causa não só os direitos fundamentais dos homens como a própria essência biológica da espécie humana.

O Homem deixou de ser o protagonista da sua própria história e da História do mundo em que vive. Ele é o produto, o fruto das forças que ele próprio gerou.

Cabe ao Direito o enquadramento nos princípios de um autêntico humanismo de molde a que a promoção e tutela dos direitos do Homem encontrem fundamento na sua própria essência.

Todos os esforços desenvolvidos no sentido de homogeneizar as propriedades biológicas dos indivíduos são de condenar.

É cada vez maior a necessidade de repersonalização do Direito salvaguardando a dignidade da pessoa humana, o seu valor assim como a sua identidade única e irrepetível que constitui, aliás, o cerne, o núcleo do direito à diferença.

Para o grupo e para a espécie o que confere a um indivíduo o seu valor genético não é só a qualidade dos genes em si, mas, também, o facto de ele não ter o mesmo conjunto de genes que os outros, a circunstancia de ser único e irrepetível.

É pertença da Humanidade o respeito pela biodiversidade .

E para concluir …eu diria que…

A mais célebre esfíngie da Antiguidade Clássica a de Giseh, nas proximidades de Mênfis, no velho Egipto, simboliza "a grande pergunta": – O que é o Homem? – Há milénios que a Ciência, a Moral, a Filosofia, a Religião e o próprio Direito propõem as mais variadas respostas.

Actualmente a biotecnologia, com todos os seus imponderáveis, vem formular novas questões sobre o Destino do Homem a partir do momento em que já é possível "fabricar" um ser humano diferente programado em laboratório.

Penso que, assim, a referida vetusta e enigmática questão… passou a ser substituída por uma outra ainda mais inquietante e intrigante: Já não somente – O que é o Homem? Mas, … O que fazer deste Homem?! …