O instigante convite a um especialista em direito do comércio internacional para falar sobre “O Direito, a Ética e a Pesquisa Médica” traz como corolário necessário a desafiadora indagação sobre a eventual identidade dos valores e padrões morais prevalentes em ambas as áreas. A respeito do sistema multilateral de comércio devo repetir as palavras de um importante representante europeu a respeito da agenda para a possível Rodada do Milênio da Organização Mundial do Comércio: “não se pode esperar negociações éticas no âmbito do comércio internacional”. A respeito do velho GATT, o Acordo Geral de Tarifas e Comércio, dizia Aristóteles Onassis: “No comércio internacional só há uma lei: não há leis.”
A conseqüência direta de tal estado de coisas é que, às vésperas do terceiro milênio, a humanidade conseguiu plenamente, e com singular eficiência, a infame globalização da miséria e a individualização da prosperidade. Os senhores, poucos; os servos, muitos; os senhores, nadando em um mar de prosperidade e afluência; os servos, mendigando as migalhas; os senhores, altivos e soberbos; os servos, prostrados e emuladores. A questão que se apresenta é até que ponto a pesquisa genética pode contribuir para minimizar tal estado de miséria humana e até que ponto ela poderá se converter em um odioso instrumento do mal a agravar a exploração humana; acentuar os requintes de crueldade; e reinstaurar o pesadelo do Holocausto?
Já 400 anos antes de Cristo, Platão analisou repercussões éticas da genética, levantando importantes problemas, sem conseguí-los resolver a contento. De fato, Platão tratou de reprodução seletiva; de “educação antes do nascimento”; de sociedade eugênica; do uso do aborto e do infanticídio como meios de controle eugênico, etc. Já Aristóteles afastou-se de seu mestre Platão para ensinar que o fim último do homem é a felicidade, que resulta do desenvolvimento harmônico da razão, orientado pela virtude. Esta é a conquista da liberdade sobre os apetites irracionais, submissão da nossa atividade prática aos ditames da razão, hábito de escolher em tudo o justo meio, evitando assim o extremo de uma qualidade, tão negativo quanto o próprio defeito.
Provavelmente sob inspiração Aristotélica, a Mishná, a primeira parte do Talmud, de aproximadamente 1.800 anos e que codifica o direito oral do Velho Testamento, já dizia que “aquele que estuda visando a ensinar, ser-lhe-á dado aprender e ensinar; e aquele que estuda visando praticar, ser-lhe-á dado aprender e ensinar, observar e praticar.”[1]
Este ensinamento de fundamental importância, transportado aos dias de hoje, traz, a meu ver, dois corolários: o primeiro, no sentido de que a responsabilidade social e ética do pesquisador transcende as fronteiras da ciência; e o segundo, no sentido de que a ciência é um valor subsidiário e instrumental no avanço dos valores supremos como a verdade, a justiça e a paz.
Desde que Platão discutiu a eugenia em A República, a ciência, em geral, e a genética, em particular, muito evoluíram. A ética, em contrapartida, dá uma forte impressão de, na melhor das hipóteses, permanecer estacionária em 400 AC! A quase que absoluta mercantilização da atividades médicas nos dias de hoje contribuiu para que o lucro substituísse a ética como orientador da ciência; e para que a soberba substituísse a consciência moral como orientadora do cientista. Tal combinação de fatores permite que a pesquisa de terapia genética, por exemplo, seja hoje avalizada sob a quase exclusiva ótica dos laboratórios farmacêuticos ao invés do amplo interesse social. Em outubro deste ano, por exemplo, as autoridades dos EUA suspenderam a inscrição de pacientes em certos testes de terapia genética para câncer conduzidos pela Schering-Plough Corp. O critério de avaliação de tais experimentos é normalmente o do acerto ou erro do processo terapêutico, como no caso recente de Jesse Gelsinger, que estará em revisão no National Institute of Health dos EUA no próximo dia 8 de dezembro[2]
, sem que haja um orientação ética para a atividade; e mais ainda, sem que se saiba como fazê-la.
O déficit ético na área pode ser auferido na meritória iniciativa da Declaração Universal do Genoma Humano e Direitos Humanos, de 1997, da UNESCO, ao estabelecer seus princípios essenciais valores tíbios e potencialmente antinômicos como sendo “a dignidade humana; liberdade de pesquisa e solidariedade humana “. Segundo Bobbio, “antinomia significa o encontro de duas proposições incompatíveis, que não podem ser ambas verdadeiras….”[3]
De fato, como o Dr. Mengele demonstrou à saciedade numa monstruosa página da história, a liberdade de pesquisa está longe de ser um valor absoluto ou um direito autônomo.
A Constituição brasileira de 1988, uma atabalhoada construção jurídica, com o inegável mérito de restaurar o estado de direito no Brasil, consagra o direito à livre expressão científica , no artigo 5o, IX, juntamente com os direitos e deveres individuais e coletivos. Não se trata, todavia de direito autônomo e auto – exequível. Trata-se, por conseguinte, de uma norma sujeita às limitações e restrições existentes no ordenamento jurídico ordinário. Há aqueles nefelibatas que, por julgar relevante que cada atividade humana seja prevista na Lei Maior, pretendem vislumbrar o assento para a pesquisa genética no artigo 225, 1o, II, da Constituição federal, que dispõe sobre o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Nada mais falso ou despiciendo. Em realidade, o infeliz dispositivo consagra o dever do poder público intervir no “patrimônio genético do País” e de fiscalizar as pesquisas na área. Se a fiscalização pública às pesquisas genéticas é importante, o “patrimônio genético” nacional claramente prescinde da intervenção do estado.
A Declaração Ibero-Latino-Americana sobre Ética e Genética, conhecida como Declaração de Manzanillo, revista em 7 de novembro de 1998, consagra a importância fundamental do respeito aos direitos humanos afirmados em documentos jurídicos internacionais, tais como o respeito à dignidade, identidade e integridade humanas. Este documento chama especial atenção para as diferenças econômicas e sociais entre os países em desenvolvimento e aqueles desenvolvidos. A Declaração de Manzanillo consagra os seguintes princípios de bioética:
i) da autonomia: a partir do consentimento informado;
ii) da beneficência: é mister que a prática traga benefícios;
iii) da não-maleficência: além de trazer benefícios, a prática não pode causar dano; e
iv) justiça.
No Brasil, os aspectos éticos pertinentes às atividades de pesquisas envolvendo seres humano foram regulados pelas Diretrizes e Normas de Pesquisa em Seres Humanos, através da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. A Resolução 251/97, do mesmo órgão, regula os aspectos da anterior no que diz respeito aos fármacos, medicamentos, vacinas e testes diagnósticos. Dentre nós, ainda encontra-se proibida a manipulação genética de células germinais humanas, nos termos do artigo 8O, inciso II, da lei n. 8974/95. A sanção a tal dispositivo implica em penas meramente administrativas de multas pecuniárias e de paralisação e interdição do laboratório ou instituição responsável, nos termos do artigo 12O, inciso 2O.
Nos círculos jurídicos brasileiros, tem sido denunciada a anomia prevalente na área das novas descobertas na área genética, como pelo Prof. Sérgio Ferraz, nos seguintes termos: “é impossível deixar esse cabedal de conhecimentos se mantenha unicamente ao alvedrio de seus criadores, sem regulação alguma[4]
.” No entanto, algumas iniciativas legislativas meritórias tem sido apresentadas no Congresso, notadamente o Projeto de Lei n. 4900, de autoria dos Deputados Eduardo Jorge e Fábio Feldman, que dispõe sobre a proteção contra a discriminação da pessoa em razão da informação genética e dá outras providências. Há ainda o Projeto de Lei n. 1953/99, do Deputado Silas Brasileiro que dispõe sobre a Convenção de Diversidade Biológica, o acesso ao patrimônio genético tradicional e da repartição de benefícios.
Para concluir, devo dizer que um enorme déficit ético aflige hoje a humanidade em um grau sem precedentes na história, de uma forma abrangente. Os grandes progressos científicos continuam foram do alcance da maior parte da humanidade. O cientista, antes de ser um profissional privilegiado, é um ser humano e, como tal deve cultivar valores morais elevados. Nas palavras de Ghandi, “qualquer um pode ouvir a voz da própria consciência: ela está dentro de nós.” Como parte de sua responsabilidade comunitária, o cientista deve poder, melhor do que ninguém, projetar as conseqüências e os riscos sociais do produto de seu trabalho e tem o dever de trazer seus pensamentos à opinião pública nacional e internacional, de forma que seu trabalho possa ser instrumental no avanço dos valores supremos da verdade, da justiça e da paz e, bem assim, contribuir decisivamente para o bem geral dos povos.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).