1.1.- A questão do “dumping social” ou a inclusão das chamadas cláusulas sociais no âmbito do sistema multilateral de comércio, embora não seja nova, por ter sido já levantada no final da Rodada Tóquio do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), em 1979, adquiriu maior notoriedade após a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1995, mais precisamente nas tratativas preliminares para a formatação e formulação de uma agenda para uma nova rodada de negociações, aquilo que seria a chamada Rodada do Milênio, a ser lançada em Seattle, nos Estados Unidos da América, em dezembro de 1999.

1.2.- O debate que se seguiu adquiriu contornos polêmicos tendo-se imediatamente verificado uma polarização de posições entre, de um lado, os países desenvolvidos, ávidos defensores da inclusão no sistema multilateral de comércio das cláusulas sociais; e de outro, os países em desenvolvimento, ferrenhos opositores do referido conceito. A crise de credibilidade da OMC e a participação intensa de organizações não governamentais incandesceram as tratativas e o resultado, acompanhado ao vivo por todo o mundo, foi o colapso da iniciativa de uma nova rodada, e o adiamento da questão.

1.3.- Decorridos dois anos da malfadada terceira reunião ministerial da OMC, realizada na cidade de Seattle em 1999, o mundo prepara-se para um novo encontro do gênero, em cumprimento ao mandame dos tratados de Marraqueche de realização de reuniões bienais. Desta vez, como resultado das demonstrações de protesto da sociedade civil internacional contra os rumos da OMC, somente o Qatar, um país onde não vige o estado de direito, aceitou sediar o encontro, a realizar-se em Doha, no próximo mês de novembro.

1.4.- Na ocasião, pretendem os países hegemônicos reunidos no cartel denomidado QUAD, e composto dos Estados Unidos da América (EUA); a União Européia (UE); o Canadá e o Japão, lançar uma nova rodada de negociações do sistema multilateral de comércio, com o objetivo da aprofundar suas garras na economia mundial e aperfeiçoar sua já dramaticamente eficaz espoliação dos países em desenvolvimento. Tal iniciativa encontrou uma resistência firme por parte de alguns países em desenvolvimento, liderados pela Índia e pela África do Sul, que desejam não somente reparar grande parte das injustiças cometidas contra os países em desenvolvimento e objeto dos tratados de Maraqueche, como também resistir aos desígnios de aprofundamento da espoliação institucionalizada na OMC dos países pobres.

1.5.- Um dos temas identificados como instrumento de tais vis intentos é o do chamado “dumping social” ou ainda de “cláusulas sociais”. O objetivo de minha apresentação de hoje é a análise desta questão. Para tanto, dividi a palestra da seguinte forma:

i.- Esta INTRODUÇÃO;

ii.- O ARGUMENTO DO “DUMPING SOCIAL”;

iii.- A UTILIZAÇÃO PROTECIONISTA DAS CLÁUSULAS SOCIAIS;

iv.- O ESTADO ATUAL DA QUESTÃO E AS DIVERSAS POSIÇÕES; e

v.- CONCLUSÕES.2.1.- Há mais de cem anos, em 1892, o líder do Partido Republicano, McKinley, dizia nos EUA que o país não poderia prosperar com um sistema de comércio que não reconhece as diferenças de condições sociais nos EUA e na Europa. A competição aberta entre o trabalho altamente remunerado nos EUA e mal remunerado na Europa eliminaria do mercado os trabalhadores americanos ou diminuiria seus salários, ambas situações indesejáveis [1]. Cem anos de história demonstraram de forma inequívoca que os radicais de então estavam errados, o que não impediu que os demagogos de hoje valham-se do mesmo argumento falacioso.

2.2.- Chama-se de “social dumping” a vantagem comparativa e relativa dos países em desenvolvimento sobre os países desenvolvidos em termos de trocas internacionais, pelo custo mais barato da mão-de obra nos primeiros. Esta vantagem é considerada “injusta” pelos protecionistas quando, na realidade, tal custo mais baixo é decorrente da própria situação do estágio de desenvolvimento e, muitas vezes, da miséria que aflige boa parte do globo. De fato, do ponto de vista econômico, tem sido demonstrado que [2]:

a) a mobilidade industrial tem pouco a ver com baixos salários, dependendo mais de desenvolvimento industrial e tecnologia;

b) os países desenvolvidos continuam como exportadores líquidos de produtos industrializados;

c) o declínio do emprego no setor industrial no primeiro mundo reflete o crescimento de oportunidades no setor de serviços; e

d) as exportações dos países em desenvolvimento para os países desenvolvidos representam apenas 2% do PNB dos primeiros.

2.3.- Segundo os defensores do argumento do “dumping” social, este custo de produção inferior levaria também à transferência de algumas indústrias com intensividade de mão-de-obra para os países em desenvolvimento [3]. Tal situação faria que todos os trabalhadores perdessem, uns por perderem o emprego (aqueles dos países desenvolvidos); outros porque seriam condenados a perceber salários indignos, o que asseguraria que os mais pobres permanecessem pobres. Assim, a presente situação do sistema multilateral de comércio permitiria que as empresas possam pagar salários de terceiro-mundo para a manufatura de produtos que são posteriormente vendidos a preços de primeiro-mundo [4]. Este argumentos são apresentados normalmente sob roupagens diversas: uma mais direta, como já relatado anteriormente, pelos políticos demagogos ultra-nacionalistas; e outra, especiosa, sob o manto santimonial da proteção dos direitos dos trabalhadores. Ambas, em realidade, ultimam os mesmos objetivos: vantagens comerciais e proteção.

2.4.- Com relação à proteção dos direitos dos trabalhadores, foi criada, em 1919, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), organismo responsável pela criação e monitoração dos padrões trabalhistas. A OIT não tem poderes de impor sanções às violações de suas normas, dependendo de adesão voluntária e da pressão da opinião pública internacional. A OIT é um foro de debates entre governos, sociedade civil, sindicatos de trabalhadores e patronais, que resultam em convenções de normas, padrões e valores trabalhistas, sujeita a ratificação pelos países membros. Há mais de 170 convenções internacionais do trabalho presentemente em vigor, embora o número de países que as ratificaram varia consideravelmente [5]. Os países signatários das convenções são obrigados de acordo com seus termos, que devem ser inseridos nas normas de direito interno, e estão sujeitos à supervisão da OIT. A OIT dá assistência técnica aos países e tem poderes de investigar as violações dos termos das convenções nos países signatários.

2.5.- Os defensores da ocorrência do fenômeno do “dumping” social tem dificuldades, mas não se intimidam, na apresentação de argumentos a justificar a migração da questão de padrões trabalhistas da OIT para a OMC, da mesma forma como tem obtido sucesso na neutralização de direitos decorrentes do tratado do FMI [6]. O primeiro deles é o de que o acesso ao mercado doméstico dos países desenvolvidos, por ser um privilégio, deve ser acompanhado de maior justiça social e padrões trabalhistas de bom nível. O segundo é pertinente à idéia de que medidas relacionadas ao comércio devem ser utilizadas para promover direitos humanos e os principais padrões trabalhistas. O terceiro e último é o de que a globalização traz como decorrência o direito à harmonização dos padrões trabalhistas na base do princípio de remuneração igual por trabalho assemelhado.

2.6.- Tratam-se de argumentos especiosos, falaciosos ou cínicos. Sabe-se que os melhores padrões trabalhistas são melhor promovidos, implementados e defendidos em condições de desenvolvimento econômico. Nós, como advogados com experiência profissional em países em desenvolvimento, sabemos muito bem que muitas leis protegendo o trabalhador deixam de ser observadas quando a situação econômica é de tal forma adversa que forma-se um consenso pela sua renúncia em favor do bem maior da sobrevivência. Por outro lado, sabe-se que o maior promotor de direitos humanos é o desenvolvimento econômico e o emprego. Por último, a “harmonização” salarial seria a garantia do desemprego absoluto nos países em desenvolvimento. Qual o negócio e que país em desenvolvimento “harmonizaria” a renda proporcionada apenas pelos infames subsídios da Política Agrícola Comum da UE, da ordem de US$ 350 bilhões anuais?
3.1.- Se o conceito de “social dumping” vier a ser consagrado pelo sistema multilateral de comércio e, consequentemente, inserto nos tratados que fazem parte do universo da OMC, será permitida a imposição de direitos “anti-dumping” contra os países acusados de tal prática. A questão do “dumping”, objeto do “Acordo Anti-Dumping” é uma das mais controversas no âmbito da OMC. Velho instrumento protecionista, o “dumping” foi regulamentado nos EUA já em 1916 e ensejou a criação de todo um sistema abusivo, arbitrário e unilateral, mantido até hoje por aquele país, já que o situa acima dos tratados da OMC, na hierarquia constitucional das normas jurídicas.

3.2.- Para fins do “Acordo Anti-Dumping”, configura-se o “dumping” quando um produto é introduzido no comércio de um outro país por menos do seu valor normal, se o preço de exportação do produto exportado de um país para outro for menor do que o preço comparativo, no curso normal de negócios, para o produto semelhante quando destinado ao consumo interno no país do exportador. [7] A constatação da prática do “dumping” permite a imposição de direitos ou medidas “anti-dumping”, tarifas excepcionais, com o objetivo de proteger a indústria doméstica da prática ilícita, mediante a neutralização da vantagem indevida e consistente no diferencial entre o preço praticado no mercado doméstico e aquele pelo qual foi introduzido no mercado externo. A possibilidade da imposição do direito “anti-dumping” nas questões sociais possibilitaria a criação de uma tarifa, a ser arrecadada pelo país consumidor, equalizando o diferencial do efeito do salário do trabalhador da Índia com o da Holanda, por exemplo, no produto final. O trabalhador da Índia nada ganharia com o fato; ao contrário, provavelmente perderia o emprego!

3.3.- Se o efeito do emprego do arsenal “anti-dumping” for tão devastador sobre o país em desenvolvimento que haja a ruptura da observância do ordenamento jurídico doméstico, pela opção forçada à sobrevivência, então este país será acionado pelos seus parceiros desenvolvidos nos autos-da-fé do sistema de resolução de disputas da OMC, onde serão decisiva e inapelavelmente condenados e sujeitos a compensações horizontais sobre seus produtos de exportação, também por meio de majoração de tarifas de importação. Por sua vez, a criação do sistema de etiquetagem social dos produtos de cada país, uma idéia possivelmente inspirada nos trajes degradantes impostos pelos tribunais da Santa Inquisição ou nas estrelas de David amarelas de Hitler, criará países párias, à margem da comunidade internacional, dificultando as oportunidades de desenvolvimento econômico e afirmação social de suas populações, pela falta de acesso de seus produtos aos mercados externos.

3.4.- Com relação à etiquetagem social, foi apresentada uma proposta neste sentido na 85a reunião anual da OIT, por seu diretor-geral, Sr. Michel Hansenne. [8] Segundo tal proposta, tratar-se-ia apenas de uma informação sobre as condições de trabalho da produção e que nada teria a ver com a mesma iniciativa no âmbito da OMC. Certos países em desenvolvimento com grande representatividade, como a China, a Índia, Brasil, Indonésia, Paquistão, Egito e as Filipinas, recusaram tal proposta de etiquetagem social e denunciaram-na como uma cláusula social disfarçada, cujo propósito final seria o uso de padrões trabalhistas como protecionismo comercial. A proposta foi retirada, para grande desapontamento dos defensores do conceito de “dumping” social. [9]
4.1.- No direito interno dos EUA, que por decorrência de suas normas constitucionais idiossincráticas tem primazia sobre os tratados internacionais, já de há muito existe o elo entre padrões trabalhistas e comércio externo. Todavia, governos norte-americanos sucessivos tem deixado de aplicar a legislação, em face de sua inconsistência e conseqüente ilegalidade face ao direito do comércio internacional. A principal lei, mas de nenhuma forma a única, a vincular os dois temas é a denominada Sistema Generalizado de Preferências, que elimina tarifas aplicáveis sobre um certo número de produtos. De um modo geral, as convenções principais da OIT a consagrar os julgados princípios básicos trabalhistas são:

a) Convenção 87 (direito à associação);

b) Convenção 98 (direito de organização e negociação coletiva);

c) Convenções 100 e 111 (isonomia na oportunidade de emprego e não-discriminação);

d) Convenções 29 e 105 ( proibição de trabalho forçado); e

e) Convenção 138 ( proibição de trabalho infantil).

Tais princípios devem ser complementados, segundo a posição dos EUA, por provisões específicas relacionadas a salários e condições de trabalho. [10]

4.2.- A posição da EU difere daquela dos EUA apenas na apresentação retórica obnubilada, no sentido de que propõe a colaboração entre os diversos organismos internacionais sobre a questão das cláusulas sociais, eufemismo que significa apoio ao vínculo entre comércio internacional e os temas trabalhistas, mas desprovido de sanções. [11] Ora, as sanções fazem parte da essência do comércio internacional, quer seja na ordem multilateral do GATT e da OMC, quer seja nos ordenamentos unilaterais de direito interno. Semelhantemente, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) tem apoiado sistematicamente o vínculo entre as cláusulas sociais e a OMC. Tal atitude não surpreende, pois a OCDE age freqüentemente como o grupo de pressão dos poderes hegemônicos, tendo sido a organizadora do chamado “cartel da vergonha” durante a Rodada Uruguai por ter patrocinado a adoção das normas internas de imigração dos EUA por seus principais membros, de forma a impossibilitar o acesso de prestadores de serviços dos países em desenvolvimento, para fins do Acordo Geral de Comércio em Serviços, outro dos tratados assinados em Marraqueche. [12]

4.3.- Os países em desenvolvimento, em geral, opuseram-se veementemente ao intento dos EUA e UE, denominado de protecionista, embora defendendo a prevalência dos princípios no âmbito da OIT [13]. Segundo tais países, o primeiro efeito do vínculo das cláusulas sociais ao sistema multilateral seria o do fortalecimento dos grupos de pressão protecionistas e encorajamento da proliferação dos embargos unilaterais e boicotes já praticados por alguns países. Isto reduziria as exportações de manufaturados e de algumas mercadorias de alguns países em desenvolvimento. Nesta primeira fase, seriam atingidas as economias menos desenvolvidas. Num segundo momento, a infecção alastrar-se-ia para as economias emergentes como China, Índia, Brasil, Argentina etc. De mais a mais, esta iniciativa é arbitrária e contrária à letra e ao espírito do direito do comércio internacional. [14]

4.4.- Na primeira conferência ministerial da OMC, realizada em Singapura em Dezembro de 1996, tratou-se do lançamento de uma nova rodada de negociações do sistema multilateral de comércio. Na ocasião, as duas correntes supra expostas entraram em acerbo conflito. O consenso resultante foi:

a) que os países membros da OMC apoiam os princípios sociais básicos consagrados pelas convenções da OIT;

b) que a OIT é o organismo relevante para tratar das cláusulas sociais;

c) que os padrões sociais são melhor promovidos por crescimento e desenvolvimento; e

d) que as cláusulas sociais jamais devem ser utilizadas para fins de protecionismo comercial ou para diminuir a competitividade relativa dos países. [15]

4.5.- Tal consenso não impediu que a questão do vínculo entre as cláusulas sociais e as trocas internacionais ressurgisse por ocasião da conferência ministerial da OMC, realizada em Seattle, em Dezembro de 1999, quando se tratou do lançamento de uma nova rodada de negociações do sistema multilateral de comércio. Não obstante os claros termos da Declaração de Singapura, os EUA e a UE tipicamente pretenderam voltar ao tema, nas mesmas bases e com os mesmos argumentos de sempre. Tal posição levou o Grupo dos 15, na reunião preparatória para Seattle, realizada em Bangalore, na Índia, a “rejeitar qualquer vínculo entre comércio e as cláusulas sociais. Lembrou-se que esta questão havia sido conclusivamente decidida na Declaração Ministerial de Singapura. Decidiu-se opor resolutamente qualquer renovada tentativa de levantar a questão na OMC”. [16]
5.1.- Apesar dos termos da Declaração de Singapura e do retumbante fracasso da terceira reunião ministerial da OMC, em Seattle, correm os países em desenvolvimento o risco de se defrontarem com o tema na agenda de uma nova rodada de negociações do sistema multilateral. Se tal ocorrer, será o início do desastre, pois a experiência do sistema indica que, uma vez aceita uma área como parte da agenda de negociações, sua inclusão no âmbito da OMC é inexorável e, pior, sempre nos exatos termos e precisos contornos desejados pelas potências hegemônicas.

5.2.- Assim, cumpre resistir a tal intento. A questão, parece-nos deva ser tratada apenas no âmbito da OIT e na esfera de governança corporativa das empresas envolvidas em atividades comerciais internacionais, pois são estas que tem atuação no mundo todo e condições de dar o exemplo do tratamento eqüitativo dos trabalhadores em escala global.