Conforme já tive a oportunidade de expor em minha obra “Tratado de Defesa Comercial”, o regime jurídico multilateral da OMC combate as chamadas práticas desleais de comércio, a saber os subsídios ilegais, contra os quais oferece o remédio das medidas compensatórias, e o dumping, contra o qual existe a defesa chamada anti-dumping. Por sua vez, o Acordo Salvaguardas da OMC permite a aplicação, por um país, de medidas de salvaguardas para um produto quando este está sendo importado em quantidades tais que causam ou ameaçam causar um dano sério à industria doméstica, ex vi de seu artigo 2.1. Logo em seguida, o artigo 2.2 determina que as medidas de salvaguardas sejam aplicadas de maneira abrangente a todos os países de proveniência do produto.
Assim, a recusa às tentativas de abandono da ordem jurídica multilateral para um comércio idiossincrático administrado de acordo com a prevalência de fatores extra legais, não implica absolutamente na renúncia à ordem legal internacional, o que resulta na continuada afirmação dos institutos de defesa comercial no âmbito das relações econômicas tanto multilaterais como regionais.
De fato, o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT 47), em seu artigo XXIV, estabelece as condições que permitem a celebração de acordos de áreas de livre comércio e de uniões aduaneiras dentre suas partes signatárias. O artigo XXIV representa por isso uma exceção ao princípio da não discriminação consagrado no regime multilateral do comércio.
Há quem tenha sustentado que a natureza jurídica das uniões aduaneiras implicariam na não aplicação das medidas de salvaguardas no respectivo âmbito interno, já que tal procedimento contrariaria o princípio da livre circulação de mercadorias. Esta foi a posição adotada pelo Tratado de Assunção, em seu Anexo IV, que dispõe, em seu artigo 5 no sentido de que “em nenhum caso a aplicação de cláusulas de salvaguarda poderá estender-se além de 31 de dezembro de 1994”.
No entanto, na realidade, o Tratado de Assunção de 26 de março de 1991 é um acordo internacional de hierarquia inferior aos tratados multilaterais da OMC, tanto pela inferioridade intrínseca, lex inferior, dos primeiros e pela superioridade extrínseca dos segundos, lex superior, conforme critérios que já expus em meu livro “Arbitration in the World Trade Organization”. Desta maneira, o Tratado de Assunção não teria o condão de revogar os tratados da Rodada Uruguai, ainda que tivesse sido assinado posteriormente àqueles. Como não o foi, vigoraria ainda o princípio lex posterior derogat priori a afirmar a superioridade do regime multilateral sobre o regional do Mercosul.
De fato, a Convenção de Viena sobre a Lei dos Tratados, que neste particular codifica direito internacional consuetudinário, determina, ex vi do disposto em seu artigo 30, que quando uma exceção não é explicitamente mencionada no tratado posterior, no caso os tratados da Rodada Uruguai, o tratado anterior, no caso o do Mercosul, só se aplica na medida em que não for incompatível com o posterior.
Mesmo nas uniões aduaneiras, as salvaguardas somente excluem os respectivos países membros quando existe um mecanismo comunitário de defesa comercial, que aplicará a medida face aos demais Estados Membros da OMC, da forma com o que ocorre com a União Européia (UE). Como é sabido, o Mercosul não criou tal mecanismo e também neste particular difere-se das uniões aduaneiras. Por outro lado, nas áreas de livre comércio, existem apenas as autoridades nacionais de defesa comercial, como é o caso do próprio Mercosul e do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA).
Indo além, alguns acordos de livre comércio, como é o caso daquele celebrado entre a UE e o México em março de 2000, expressamente permitem as medidas de salvaguarda pelos respectivos signatários, contra inclusive um signatário ou Estados Membros de um signatário, conforme o caso. No caso do Acordo de Livre Comércio entre a UE e o México, são incorporadas medidas não incompatíveis com o Acordo Salvaguardas da OMC, mas que representam uma tentativa de minoração dos danos eventualmente resultantes das medidas, como aquela contemplada em seu artigo 15, 4.
Dessa forma, ainda que não haja juridicidade na pretensão de corretivos assimétricos, como desejado pela Argentina, permanecem em vigor os remédios de defesa comercial, disponíveis a todos os sujeitos dos Estados membros do Mercosul, inclusive aquele das salvaguardas. Nesse sentido, já decidiu expressamente o Órgão de Resolução de Disputas da OMC, tanto em primeira instância quanto em grau de apelação, no caso Argentina – Medidas de Salvaguarda na Importação de Sapatos (DS121/AB) que é insubsistente o argumento de que um país do Mercosul está “proibido pelo artigo XXIV, 8, do GATT 47 de aplicar medidas de salvaguarda a todas as fontes de fornecimento, i.e., terceiros países como também Estados Membros do Mercosul.”
O painel de apelação no mesmo caso foi além, criando o ônus para o eventual tratamento excepcional da comprovação do cumprimento dos requisitos para a formação do mercado comum. Ocorre que, conforme já apontado pelos Estados Unidos da América (EUA), União Européia (EU) e Indonésia no caso sob exame, o Mercosul não foi registrado como acordo de livre comércio ou união aduaneira para fins do artigo XXIV do GATT 47, mas sim como acordo diferencial conforme Decisão de 28 de Novembro de 1979, um dos acordos da Rodada Tóquio.
Num outro caso, Turquia – Restrições sobre Importações de Roupas e Produtos Têxteis (DS34/AB), o painel de apelação corroborou contrario sensu a decisão acima mencionada ao decidir que medidas quantitativas jamais serão consideradas como exceções ao artigo XXIV do GATT 47. O estudo da jurisprudência da OMC também revela que os principais parceiros econômicos, como a UE e os EUA, não aceitarão a inclusão das importações do Mercosul para cálculo do dano com a simultânea exclusão dos exportadores das medidas de salvaguardas, o que também levará ao inexorável fracasso a sustentação da posição de não aplicação de salvaguardas contra sujeitos dos Estados Membros do bloco. A insistir na disparatada tese, o Mercosul ficará sem salvaguardas contra terceiros países.
Assim, conclui-se que embora os corretivos assimétricos desejados pela Argentina não tenham respaldo legal nos ordenamentos jurídicos de regência mas, ao contrário do que se tem alegado, as medidas de salvaguardas são um instrumento de defesa comercial válido do âmbito do Mercosul, inclusive contra produtores dos países de seus respectivos Estados Membros ou associados. Isso não significa que, à semelhança do avençado entre a UE e o México, o Mercosul não possa avançar no tratamento das salvaguardas dentro do bloco, respeitando naturalmente a precedência da ordem jurídica multilateral da OMC. Bastará, para tanto, alterar o Tratado de Assunção.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).