Artigo publicado no sítio eletrônico Vermelho.org, São Paulo, 13 de janeiro de 2021.

É costumeiro, nos meios jurídicos, o uso do brocardo de que “o advogado em causa própria é um incompetente que tem um cretino por cliente”, situação que, infelizmente, ainda está a ocorrer com alguma frequência em nosso país, dentro e fora dos tribunais. Um exemplo recente foi a publicação, por Michel Temer, do livro “A ESCOLHA – Como um presidente conseguiu superar grave crise e apresentar uma agenda para o Brasil”, sob a forma de uma entrevista servil combinada com o jornalista Denis Rosenfield, pela Editora Noeses. A obra tem 205 páginas e é ilustrada com fotografias.

Trata-se, basicamente, de um trôpego esforço para mascarar fatos históricos e justificar um golpe de Estado levado a efeito em diversas frentes, que culminou com o impedimento da presidente Dilma Rousseff e, concomitantemente, com a inabilitação da candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições presidenciais de 2018. Certamente, o Autor, Michel Temer, consciente que a História o colocará no rol dos governantes infames, e sabedor que nenhum historiador sério iria considerar sua versão, optou por este exercício de desinformação como o canto de morte de sua triste vida pública. Reside aí o primeiro grande erro conceitual do livro.

Como já havia bem observado o grande poeta clássico Ovídio (43 a.C. – 18 d.C.) em Tristia, obra em cinco volumes escrita no ano 8 d.C.: “causa patrocinio non buona peior erit” ou uma causa ruim se torna pior quando se a defende. “A ESCOLHA” tem um caráter biográfico apresentado cronologicamente desde a infância, os estudos, as aulas nas faculdades de Direito da PUC e no interior, passando por sua pretensa literatura e seguido pela carreira política, que compreende inter alia a atuação como deputado constituinte em 1986, a presidência da Câmara dos Deputados por três vezes, a vice-presidência e a presidência da República, após o golpe.

A descrição dos respectivos episódios é redolente de inverossimilidade. Trata-se do sobrevoo de um anjo bom (Temer), sobre um curioso mundo miasmático, onde o protagonista não tem inimigos, recebe a todos e tudo faz, de acordo com o melhor interesse público. Neste particular, o livro procura falsamente evocar, apenas no estado de espírito, o otimismo ingênuo de Candide, na obra homônima de Voltaire. A falsidade permeia e sobra abundantemente pelas palavras e não resta alguma assertiva com aparência de verdade. À exceção do próprio sórdido relato, as sujeiras da política estão ausentes em “A ESCOLHA”, talvez porque o meio no Brasil seja absolutamente antisséptico.

Por exemplo, conforme indicado por André Singer, faltam esclarecimentos sobre certos fatos como “segundo o procurador-geral, Temer liderava um grupo formado por Cunha, Padilha, Moreira Franco, Alves, Geddel e Rodrigo Loures, que supostamente teria recebido ao menos 587 milhões de reais de propina²”. De fato, foi perdida a oportunidade de separar o joio do trigo, de maneira correta. Afinal, o PMDB foi partido presidido por Temer por 15 anos e ensejou comentários nada edificantes do importante historiador britânico, professor da Universidade da California – Berkeley, nos seguintes termos “o PMDB já era sinônimo de pilhagem de recursos públicos nos estados e municípios que governava³…” De fato, o Autor apenas observa que “eu nem sei se havia outros interesses ou não⁴” (sic)

São omissos ainda esclarecimentos sobre sua fala de treze minutos vazada pela mídia social para influenciar a votação do impedimento. Faltam, igualmente, maiores detalhes a respeito da “conversa política” mantida com o General Villas Boas, então na ativa. São inexistentes os esclarecimentos sobre as influências dos lobbies bancários e empresariais no programa denominado “Ponte para o Futuro”, conforme denunciado pelo maior historiador brasileiro de todos os tempos, Luiz Alberto Moniz Bandeira, no sentido de que há fortes indícios da aliança entre o capital financeiro internacional e os grupos nacionais “para nutrir a crise política e institucional, aguçando feroz luta de classes no Brasil⁵”.

No mesmo sentido, Perry Anderson observou que, por ocasião do processo de impedimento, “Temer já havia abandonado Dilma meses antes e vinha preparando terreno com um programa econômico que deixava claro que, caso assumisse, o país estaria em boas mãos. O pacote consistia em um plano de estabilização convencional, incluindo privatizações, reforma previdenciária, suspensão de gastos em saúde e educação⁶…” Tais ações foram contempladas no “Ponte para o Futuro”, lançado no final de 2015, como parte da campanha de desestabilização da presidente Dilma.

Note-se aqui que, como observado pelo Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, “o sistema financeiro e bancário é o principal instrumento de concentração de riqueza no Brasil. Ao reduzir as taxas de juros… a Presidenta diminuiu a transferência de riqueza da sociedade e do Estado para os bancos privados⁷…” Da mesma maneira, o papel do Judiciário no impedimento da presidente não foi tratado em “A ESCOLHA”, como impõe uma análise objetiva. O grande pensador brasileiro, Jessé Souza, observou que “o golpe não teria acontecido sem a politização do judiciário. Ninguém guardou ou defendeu efetivamente a Constituição… Foi, na realidade, em grande medida, um golpe jurídico – um golpe que articula capitalismo selvagem de rapina e enfraquecimento das garantias democráticas⁸”.

O segundo erro de aproximação na obra é o tanto forçado quanto cínico “jogo do contente”, conforme concebido pela escritora Eleanor Porter, em “Pollyanna Moça”, que consiste em procurar extrair algo de bom e positivo em tudo, mesmo nas coisas aparentemente mais desagradáveis. Uma terceira impertinência diz respeito à desconsideração da lei em favor de um benevolente, distorcido e cínico juízo idiossincrático, algo inusitado mesmo para Temer, um autoproclamado jurista de dúbia qualidade.

Assim, para o constitucionalista Temer a prática de pagamentos injustificados conhecida como “caixa dois”, configurada ilícito penal em diversas leis, não seria crime, como na questão das propinas⁹. A perda da legitimidade da presidente Dilma teria ocorrido em função das manifestações de rua, brilhante conclusão jurídica corroborada por seu prefaciador, Delfin Netto para quem o impedimento teria ocorrido pela “indisposição da então presidente para o exercício da política¹⁰”. É igualmente de causar estupefação que o constitucionalista Temer, mesmo se declarando bolsonarista, tenha a audácia de denominar a ditadura militar brasileira de “sistema mais fechado” e nossa democracia de “sistema mais aberto¹¹”. Qualquer cidadão honesto saberia melhor a diferença.

Desta maneira, se a economia do Brasil andava mal em seu governo, o Autor se vangloriou do pífio crescimento do PIB em 1%, em 2017, tomando como base um crescimento negativo causado inter alia pelo processo de desestabilização do governo Dilma, movido por Temer e seus aliados na política, indústria e serviços em geral, particularmente os de natureza financeira. O fato de ser a sua popularidade no final do governo negativa em 62%, e seu mandato decorrente de um claro golpe, não caracterizava a ilegitimidade de seu mandato. O pujante movimento “Fora Temer”, que tomou conta do País, teria sido contrabalançado por um suposto “Fica Temer” (sic), do qual ninguém ouviu falar.

Na realidade, “A ESCOLHA” é um apenas um lamentável testemunho da opção, da parte de um velhaco, pela fraude, pela falsidade e pela vigarice, em detrimento da moralidade pública e da ética jurídica. Como bem observado por Fernando Pessoa, “ninguém se admira a si mesmo, salvo um paranoico com o delírio das grandezas¹²”.

NOTAS

(1) Advogado qualificado no Brasil, Inglaterra e Portugal.

(2) Singer, André, “O Lulismo em Crise”, Companhia das Letras, São Paulo, 2018, página 266.

(3) Anderson, Perry, “Brasil à parte – 1964-2019”, Boitempo, São Paulo, 2020, página 103.

(4) Temer, Michel, “A ESCOLHA”…, op. cit. Página 146.

(5) Proner, Carol et al, org., “A Resistência Internacional ao Golpe de 2016”, Canal 6 Editora, Bauru, 2016, página 339.

(6) Anderson, Perry, op. cit., página 118 et seq.

(7) Proner, Carol, op. cit., página 453

(8) Souza, Jessé, “A Radiografia do Golpe”, Leya Editora, São Paulo, 2016, página 131.

(9) Temer, Michel, “A ESCOLHA”, op. cit., página 24.

(10) Temer, Michel, “A ESCOLHA”, op. cit., página V.

(11) Temer, Michel, “A ESCOLHA”, op. cit., página 150.

(12) Pessoa, Fernando, “O provincianismo português”.