Publicado no sítio eletrônico do Conselho da Justiça Federal (http://www.cjf.jus.br), em outubro de 1997, São Paulo, Brasil.

RESUMO

Desenvolve uma série de argumentos para demonstrar que a celebração de tratados internacionais com os Estados Unidos, sobretudo aqueles de natureza comercial, não oferece segurança jurídica, porque esse país, no entender do autor, exerce arbitrariamente suas próprias regras no plano internacional, não reconhecendo a primazia do Direito Internacional. Como argumentos, o autor faz uma análise do Direito interno norte-americano no que diz respeito à tipificação dos tratados internacionais e de seu posicionamento na hierarquia das normas internas, observando que naquele país uma lei federal conflitante com um tratado internacional prevalece sobre este último. Comenta a implementação dos tratados no Direito norte-americano, criticando a postura desse país, segundo a qual um tratado somente poderá ser aplicado se não for incompatível com qualquer lei interna. Critica, ainda, a não-ratificação, pelos EUA, da Convenção de Viena sobre a Lei dos Tratados; a seção 301 do Ato sobre Tarifas e Comércio dos EUA, que autoriza o governo norte-americano a aplicar sanções comerciais contra países que tomem medidas comerciais contrárias aos seus interesses; a postura desse país com relação ao Gatt, caracterizada como intransigente na aceitação de regras multilaterais; e a utilização abusiva da legislação anti-dumping norte-americana.

ABSTRACT

It is beyond argument that the celebrations of international treaties with United States do not offer juridical safety, because this country, according to the author, exercises with despotism his rules in international plan. United States does not recognize the international Law’s superiority.

The writer considers the internal north American Law paying attention to international treaty and his position in hierarchy of internal rules. He mentions a conflicting situation between federal laws and international treaty, both in the same level in that country.

A treaty will only be applied if it is not in conflict with another internal Law in this country. The author also criticizes that United States do not ratify Vienna’s Convention about treaty laws; 301 section of rate and commerce’s act of United States; this country’s position in relation to the Trade Negotiations Committee and the abusive utilisation of antidumping legislation in United States. The 301 Section authorizes north American government to apply commerce sanctions against countries that take commerce measures against their interests.


1 INTRODUÇÃO

O Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt), assinado originalmente em 1947 por vinte e três países, entre os quais o Brasil, estabeleceu entre os seus princípios básicos, no art. 1º, o da Cláusula da Nação Mais Favorecida (MFN), que nada mais é do que a automaticidade da generalização a todos parceiros comerciais de uma concessão feita a um deles. A cláusula MFN é incompatível com o conceito da reciprocidade nas relações comerciais internacionais, mas ao menos teve o mérito de estabelecer o patamar mínimo sobre o qual se podem assentar os alicerces da construção do grande edifício da juridicidade no comércio mundial. Durante a Rodada Uruguai do Gatt, encerrada em 1994, e que resultou na criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1995, uma das maiores reinvindicações dos países em desenvolvimento, entre os quais o Brasil, foi o aperfeiçoamento da estrutura jurídica das relações comerciais internacionais, de tal forma a se limitar o arbítrio e o exercício das próprias razões.

O Gatt, em seu art. 24, permite exceções ao princípio da cláusula MFN no tocante a zonas de livre comércio e mercados comuns, desde que tais exceções representem não um obstáculo à liberalização comercial, mas uma fase intermediária nesse propósito. Para os Estados em geral, todavia, a cláusula MFN e o sistema multilateral representam uma âncora e uma garantia de tratamento dentro do ordenamento jurídico internacional. Iniciativas regionais, se não fundadas na ordem jurídica equitativa, podem subverter as relações e resultar na subordinação de um Estado a outro. Desses conceitos básicos decorre a importância fundamental do Direito do comércio internacional nos dias de hoje para o diagnóstico de situações presentes concretas; para informar decisões específicas; bem como para orientar na busca da equidade nas relações comerciais entre Estados soberanos.

De todos os parceiros comerciais, os EUA têm sido, desde a fundação do Gatt, o qual inspiraram nas virtudes e nos defeitos, não somente o país mais litigioso em questões comerciais, mas aquele que sistematicamente tem mais violado o Direito do comércio internacional, das mais diversas formas, inclusive pela postura unilateral no tocante às desavenças comerciais e pela inconsistência de parte importante de seu ordenamento jurídico interno em face do Direito Internacional.

O estudo do Direito comparado é sempre muito importante nas questões de comércio internacional, por proporcionar a base para um diagnóstico de questões atinentes às práticas desleais de comércio, acesso a mercados e, de um modo geral, da conformidade com o ordenamento jurídico multilateral e com o Direito Internacional. No momento, todavia, diante da iniciativa para a formação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), seu exame se reveste de significado estratégico para que se possa avaliar o alicerce jurídico sobre o qual os EUA assentariam sua participação na projetada zona de livre comércio.

2 TIPOS DE TRATADOS INTERNACIONAIS NO DIREITO DOS EUA

No Direito interno dos EUA, há que se fazer uma distinção entre tratados e acordos executivos, ao passo que, no âmbito do Direito Internacional, ambas as modalidades são consideradas tratados. O Direito Constitucional dos EUA classifica os acordos internacionais como: tratados, acordos executivos congressuais e acordos executivos presidenciais.

Tratados: devem ser obtidos através de aconselhamento e consentimento do Senado.
Acordos Executivos Congressuais: são divididos em duas categorias, previamente ou subseqüentemente autorizados.
Acordos Executivos Presidenciais: são os celebrados pelo Poder Executivo com base em uma autorização constitucional específica, como pela cláusula de “comandante-em-chefe” das forças armadas.

A Constituição dos EUA determina que o presidente do país possui o poder para, através do aconselhamento e consentimento do Senado, assinar tratados, desde que dois terços dos senadores presentes concordem1.

O poder para celebrar tratados é, portanto, dividido entre o Executivo e o Legislativo do governo dos EUA. A função do Senado é aconselhar e consentir sobre a assinatura de um tratado; as funções do presidente são celebrar, ratificar ou concordar com a assinatura de um tratado. O Senado pode incluir uma ou mais condições para o seu consentimento, requerendo que o tratado seja emendado pelo presidente, ou que o presidente imponha certas reservas. O presidente somente poderá ratificar o aceder ao tratado com as alterações propostas pelo Senado2.

Essa sistemática bipolarizada do poder de celebrar tratados teve o condão de tirar a credibilidade dos negociadores internacionais dos EUA, diante da constatação de que o respectivo tratado resultante poderia muito bem ser retalhado pelo Senado daquele país. Evidentemente, os tratados comerciais, por sua vasta complexidade e por cobrirem ampla gama de interesses, são os mais vulneráveis a generalizadas modificações.

Tendo em conta tal realidade, o Ato sobre Acordos Comerciais de 19743 estabeleceu um mecanismo que permitiria, ao mesmo tempo, dar credibilidade para os negociadores americanos encarregados das tratativas internacionais, visando a um acordo comercial, e manter a plena autoridade constitucional do Senado dos EUA. Tal mecanismo dispõe que o resultado dessa negociação deveria ser adotado ou recusado em bloco4 pelo Senado dos EUA, dentro de um determinado período, geralmente de 90 dias, desde que os negociadores tivessem se pautado dentro de diretrizes previamente autorizadas pelo Senado. A esse processo convencionou-se chamar de “via rápida”5.

No tocante à hierarquia das normas, nos EUA, as leis federais e os tratados são tecnicamente considerados como se estivessem no mesmo patamar. Por conseguinte, na ocorrência de um conflito entre uma lei federal e um tratado internacional, os tribunais interpretarão aquele que tiver sido constituído em último lugar como sendo a lei aplicável para a solução de uma situação litigiosa específica. Por outro lado, os tratados, na hierarquia das normas, situam-se acima das leis estaduais6.

3 A FORMAÇÃO E A IMPLEMENTAÇÃO DOS TRATADOS NO DIREITO DOS EUA

A Constituição dos EUA7 determina que todos os tratados celebrados pelo país passam a ser a lei local e reza que os casos derivados de sua aplicação são de competência do Poder Judiciário municipal, ou seja, doméstico8. O primeiro dos dispositivos supramencionados foi inserto pelos constituintes, motivado pelo receio que se tinha do cumprimento das obrigações internacionais dos EUA pelos estados federados, em função das especificidades momentâneas na época da independência.

Todavia, a prática constitucional americana evoluiu no sentido de que, apesar de a Constituição ordenar que os tratados devem ser interpretados como leis, nem sempre os acordos internacionais podem ser invocados por qualquer pessoa, a qualquer tempo. Esta situação se apresentou como resultado da evolução jurisprudencial que distinguiu o acordo auto-executável do acordo não auto-executável, no caso Foster versus Neilson, decidido em 18299. Mais ainda, em Foster, a Suprema Corte decidiu que há uma presunção no sentido de que os tratados não são auto-executáveis, desde que carecem de autorização legislativa e que, por conseguinte, podem ser alterados.

Posteriormente, a jurisprudência dos EUA aprofundou os requisitos para que um tratado internacional venha a ser considerado com auto-executável. Dessa forma, o fecho tradicional Todos os países-partes desta convenção comprometem-se a aprovar, de acordo com sua Constituição, as medidas necessárias para assegurar a aplicação da presente convenção, foi interpretado pelo Judiciário americano como evidenciando o caráter não auto-executável do tratado em questão10.

Essa particularidade é agravada pela prática legislativa de aprovação dos tratados internacionais pelo Senado do EUA, segundo a qual a validade do acordo internacional é subordinada à inexistência de conflitos com a legislação federal interna, um feito extraordinariamente raro em questões comerciais. Um exemplo dessa situação é a legislação interna dos EUA no que diz respeito à implementação dos acordos da Rodada Uruguai, que estabelece na seção 102 (a) que nenhum dispositivo de qualquer dos tratados da Rodada Uruguai, nem a aplicação de qualquer dispositivo com relação a qualquer pessoa ou circunstância, que seja incompatível com algum preceito legal dos EUA, deverá ter eficácia11.

Da mesma forma, com relação ao Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta)12, a lei dos EUA que aprovou sua vigência naquele país, na seção 102 (a) 1 determina que nenhum dispositivo do acordo, nem a aplicação de qualquer dispositivo a uma pessoa ou circunstância, que seja incompatível com qualquer lei dos EUA, deverá ter eficácia13.

Tais especificidades advém da relutância profundamente enraizada nos EUA, tanto no Legislativo, como também no Judiciário, de fazer prevalecer a lei interna sobre o Direito Internacional. A conseqüência direta de tais circunstâncias é que, em toda probabilidade, um Estado que assine um tratado comercial com os EUA assumirá o ônus de compromissos com os EUA que os EUA não necessariamente terão como seus, do que resulta uma situação bizarra, incompatível com o Direito Internacional.

Dessa situação advém potencialmente conseqüências adversas graves para o setor empresarial dos países parceiros comerciais dos EUA, nos tratados regionais de integração comercial, de vez que há uma forte tendência de se permitir o direito privado de ação nestes casos. Isso é hoje permitido no âmbito da União Européia, bem como no do Nafta e também do Mercado Comum do Sul (Mercosul). Em tese, é possível que uma parte privada dos EUA exerça um direito conferido pelo Nafta, por exemplo, contra uma parte mexicana, sem que a parte mexicana possa exercer o mesmo direito contra uma parte dos EUA14.

4 A CONVENÇÃO DE VIENA SOBRE A LEI DOS TRATADOS E SEUS EFEITOS PERANTE O DIREITO DOS EUA

Muitos dos problemas discutidos no parágrafo anterior e derivados das especificidades apontadas na lei dos EUA não persistiriam se a Convenção de Viena sobre a Lei dos Tratados — CVLT, concluída em 23 de maio de 1969 e em vigor desde 27 de janeiro de 1980, tivesse sido ratificada por aquele país15. De fato, a CVLT tenta codificar o Direito Internacional no que diz respeito à lei dos tratados, bem como promover um certo desenvolvimento progressivo na área.

No Direito Internacional, distinguem-se as figuras de Estado-parte da de Estado signatário de um tratado. De acordo com o artigo 11 da CVLT, apenas os Estados-partes devem ser obrigados por um tratado internacional, o que se dá mediante a troca de instrumentos, ratificação, adesão ou qualquer outro meio convencionado no corpo do tratado. Assim, os dispositivos da CVLT são obrigatórios apenas às partes do tratado e aplicam-se somente aos acordos celebrados após a vigência da CVLT. Vários dispositivos da CVLT já faziam parte do Direito Internacional costumeiro, tendo sido apenas codificados pelo tratado.

Assim, as grandes inovações introduzidas pela CVLT dizem respeito ao que foi inserto para um desenvolvimento progressivo, no que chama a atenção ao disposto sobre as reservas nos tratados internacionais (arts. 19 a 23). Dessa forma, o artigo 19 permite a formulação de reserva, a menos que:

a) a reserva seja proibida pelo tratado; ou

b) o tratado permita que apenas reservas específicas possam ser feitas, que excluem uma reserva pretendida.

Além disso, o artigo 17 da CVLT estabelece que o consentimento de um Estado de ter um tratado obrigatório apenas para si será válido apenas na eventualidade de existência de dispositivo expresso a respeito no texto do respectivo tratado e se as outras partes contratantes assentirem.

O artigo 26 da CVLT estabelece a regra pacta sunt servanda com referência à lei dos tratados e o princípio da boa fé nos acordos internacionais. O artigo 27 determina que um Estado soberano não pode invocar uma lei interna como uma justificativa legal internacional para deixar de cumprir suas obrigações decorrentes de um tratado; e esse dispositivo deve ser interpretado em conjunto com o artigo 46, que não permite que um Estado justifique o inadimplemento de uma obrigação internacional com base em alegação fundada em vício de consentimento, a menos que tenha sido violada uma norma interna de fundamental importância.

Os EUA, não obstante signatários do tratado, não ratificaram a CVLT. Em 1971, o presidente dos EUA enviou o texto respectivo ao Senado para ratificação, que pretendeu modificá-lo para sustentar a legislação americana em vigor que conflita, inter-alia, com os artigos 12 (consentimento em estar obrigado a um tratado pela assinatura); 13 e 14 (consentimento); 19 (formulação de reservas); 24 (vigência); 26 (pacta sunt servanda); 27 (lei interna e observância dos tratados); 31 (regra geral de interpretação); 32 (meios suplementares de interpretação); 42 (validade); e 46 (uso de lei interna como justificativa para descumprimento de tratado).

5 A LEGISLAÇÃO COMERCIAL DOS EUA E A SEÇÃO 301 DO ATO SOBRE TARIFAS E COMÉRCIO DE 1974

A seção 301 do Ato sobre Comércio e Tarifas de 197416 autoriza o escritório do representante comercial dos EUA17 (USTR) a investigar e sancionar práticas comerciais consideradas “desleais” aos interesses norte-americanos. Essas sanções, tanto de caráter tarifário como não-tarifário, são estabelecidas de forma a impactar adversamente as importações dos países que de forma “injustificável” ou “não-razoável” restringirem as exportações dos EUA. Em 1988, a lei foi emendada para criar três novas categorias: a Super 301; a Special 301; e a 301 de Telecomunicações. A Super 301 requer que o USTR prepare uma lista negra de países de práticas “não-razoáveis”; um cronograma para sua eliminação e um programa de sanções a serem aplicadas. A Special 301 é bastante semelhante e aplica-se à área de propriedade intelectual e a 301 de Telecomunicações visa abrir mercados “fechados” nessa área.

Entre as sanções disponíveis na seção 301, está a possibilidade de suspensão, retirada ou não aplicabilidade de benefícios conferidos por acordos multilaterais ou regionais, como o Nafta, OMC ou Alca, se este um dia vier a ser assinado. Tudo isso multilateralmente, é claro.

Durante a Rodada Uruguai do Gatt, medidas tomadas sob o amparo da seção 301 pelos EUA eram freqüentemente justificadas com o argumento de que o sistema multilateral não tinha um mecanismo eficaz de resolução de disputas. Esse argumento foi utilizado para fins de propaganda, mesmo sendo os EUA o país líder em não aceitação de laudos arbitrais adversos no Gatt18. Essa posição também motivou iniciativas norte-americanas de melhoria da solução de controvérsias no âmbito do Gatt, que foram endossadas pela comunidade internacional, na esperança de que a maior juridicidade do sistema viesse a estabelecer a primazia do Direito no comércio internacional19.

Mesmo com o novo sistema de resolução de disputas bastante aperfeiçoado, com a criação da OMC, os EUA não abandonaram suas práticas unilaterais, ilegais frente ao Direito Internacional de forma que, tecnicamente, os EUA estão em violação fundamental aos tratados da Rodada Uruguai. De acordo com um estudo preparado pela US National Association of Manufacturers20, somente no período de quatro anos, entre 1993 e 1996, mais de 61 leis e atos administrativos diferentes autorizando sanções unilaterais foram promulgadas nos EUA, tendo como alvo 35 países, entre eles a Argentina, o Brasil, o Canadá e o México, justamente as maiores economias da proposta Alca.

Há outros instrumentos no arsenal unilateral dos EUA que permitem a imposição de sanções econômicas incompatíveis com o Direito Internacional, entre os quais a Lei de poderes internacionais de emergência econômica de 197721; a Lei de comerciar com o inimigo de 191722; a Lei de assistência ao exterior de 196123; a Lei de controle de exportação de armas de 1968; a Lei de energia atômica de 195424; e a Lei de adesão à Organização das Nações Unidas de 1945. Tudo isso sem mencionar as leis chamadas Helms-Burton e D’Amato.

De qualquer forma, há quase um consenso geral dentre os juristas no sentido de que as ações unilaterais embasadas na seção 301 violam, em ao menos três aspectos diferentes, o Gatt. Em primeiro lugar, qualquer retaliação baseada na imposição de tarifas ad valorem aplicada seletivamente irá violar o princípio da cláusula MFN (art. 1º). Por serem tais tarifas estabelecidas acima do teto consolidada na Rodada Uruguai, haveria também a violação do art. 2º do Gatt. Por derradeiro, o fato de os EUA arrogarem-se o direito de serem, ao mesmo tempo e no mesmo caso, juiz e parte de um tribunal não sancionado pelo Direito Internacional representa igualmente uma aberração em face da ordem jurídica multilateral.

6 A LEGISLAÇÃO ANTI-DUMPING DOS EUA

Dumping pode ser definido em linhas gerais como sendo a venda, no mercado externo, a preços inferiores àqueles praticados no mercado doméstico. A prática do dumping é vedada pelo art. 6º do Gatt de 1947. Se tal prática causa um dano à indústria doméstica, então um direito compensatório anti-dumping sancionado pelo Direito Internacional pode ser imposto pela autoridade do país que teve a indústria local prejudicada.

Esse assunto tem sido controverso desde a Rodada Tóquio (1979) e o foi também durante a Rodada Uruguai (1986 a 1994). Se, por um lado, a prática do dumping tinha de ser coibida, de outro tornava-se difícil a obtenção de um consenso a respeito e, na falta deste, o instrumental anti-dumping poderia se tornar, como se tornou, um mecanismo de protecionismo exarcebado. Desgraçadamente, foi nessa última categoria que o mecanismo floresceu em diversos países em geral, mas na União Européia e nos EUA em particular. Durante a década de 80, houve, no mundo, cerca de 1.500 casos anti-dumping; sendo que entre 1990 e 1991 o número de casos duplicou25.

A legislação anti-dumping dos EUA, originária do Ato de Tarifas de 1930, foi posteriormente alterada em 1979, em 1984, em 1988 e, mais recentemente, em 1994, pela legislação de implementação dos tratados da Rodada Uruguai26. Essa legislação encontra-se presentemente codificada no código de leis federais dos EUA27 e tem uma reputação fortemente protecionista, de tal forma que o economista chefe do Banco Mundial declarou que dumping é qualquer coisa que se consiga convencer o governo americano de combater e perseguir nos termos da lei local28.

De acordo com o artigo 19 do US Code, seção 1.673, uma vez ocorrido o dumping e um dano material ao mercado doméstico, um direito anti-dumping será imposto, para além das tarifas normais, correspondendo à diferença entre o valor doméstico e o valor posto nos EUA. O procedimento anti-dumping, nos EUA, fica a cargo de duas agências governamentais distintas: a Administração do Comércio Internacional29 (ITA) e o Departamento Internacional de Comércio30 (ITC). A primeira das duas entidades supramencionadas é parte do Departamento de Comércio31 e a segunda é uma agência governamental sem dependência específica a um dado ministério. Em um procedimento anti-dumping, a ITA determina se os produtos importados estão sendo vendidos a preço inferior ao justo e a ITC apura se houve dano à indústria doméstica e trata de quantificá-lo. Por sua vez, a alfândega nacional32 aplicará eventuais direitos anti-dumping.

O espírito de maior juridicidade havido na Rodada Uruguai impactou de forma positiva o acordo anti-dumping que, uma vez implementado como legislação ordinária nos EUA, teve o condão de reduzir alguns dos notórios abusos do sistema norte-americano. Entre tais abusos situava-se a metodologia de se misturar os mesmos produtos de países diversos para a determinação do dano. Essa prática revelou-se infame no caso contra a Fundação Tupy, em que a ITC, para conseguir comprovar um dano à indústria doméstica, somou dados do Brasil, da Coréia e de Taiwan para fazer uma conta de chegar33. O Brasil é uma grande vítima do uso iníquo, pelos EUA, do regime anti-dumping como instrumento do protecionismo, tendo setores importantes de sua economia prejudicados, como os de calçados e suco de laranja.

Outra prática americana que se procurou debelar foi a de se manter direitos anti-dumping por prazo indeterminado que, em alguns casos, chegavam a 20 anos. Isso se procurou fazer através da chamada cláusula “pôr do sol”34, que obriga a uma revisão decorrido o prazo de cinco anos35.

De qualquer forma, não obstante os progressos alcançados no âmbito da Rodada Uruguai, ainda permanecem, na legislação interna dos EUA, algumas enormes inconsistências com a ordem jurídica multilateral, que permitem o uso abusivo da legislação anti-dumping como instrumento do protecionismo comercial. Tais inconsistências apresentam-se, por exemplo, na questão da determinação do ponto de equilíbrio; na questão da produção cativa; na questão do preço médio e na do preço de exportação.

7 CONCLUSÃO: RISCOS LEGAIS DOS ACORDOS COMERCIAIS COM OS EUA

A globalização das economias e bem assim as relações econômicas internacionais entre os Estados não prescindem do alicerce legal do império da lei e do estado de direito. Ao contrário, seus objetivos jamais serão alcançados fora de um arcabouço legal equitativo e exequível. Certamente, ao prevalecerem, seja a anomia, seja o unilateralismo e o exercício arbitrário das próprias razões em matéria internacional, teremos a subversão das relações entre os Estados, com a subordinação de um Estado a outro. Mais ainda, as conseqüências para os nacionais dos Estados subordinados serão efetivamente dramáticas, porque serão eles condenados à miséria e ao oblívio, em triste sacrifício aos bolsões de afluência estabelecidos em uns poucos Estados dominantes.

Assim, tanto como decorrência da ordem natural das coisas, bem como do bom senso e de um sentimento básico de justiça, uma efetiva juridicidade internacional deve preceder os acordos regionais e mesmo os multilaterais devem atentar para essa condição absolutamente essencial. Dentro dessa perspectiva, não somente são de fundamental importância iniciativas visando a dar uma formatação jurídica básica às relações internacionais, como é o caso da Convenção de Viena sobre a Lei dos Tratados, bem como aquelas que visam, na ordem jurídica interna dos países, a aceitar a existência e a prevalência do Direito Internacional.

Os EUA representam um altíssimo risco jurídico, no mundo de hoje, para seus parceiros comerciais, tanto nas relações regionais, como nas multilaterais. Isto sucede porque, no Direito dos EUA, na hierarquia das normas, os tratados internacionais situam-se no mesmo nível que a legislação ordinária federal interna. Não bastasse isso, as leis federais internas de implementação dos acordos comerciais internacionais, como já visto exemplificadamente nos casos do Nafta e da OMC, sujeitam sua vigência à inexistência de conflitos com leis internas no país, uma freqüência desgraçadamente constante. O direto corolário dessa situação é que, na prática, o tratado internacional situa-se abaixo da lei federal na hierarquia de normas nos EUA. A existência de leis internas, nos EUA, que promovem o unilateralismo e o arbítrio, como o caso das legislações 301 e anti-dumping, além de dezenas de outras aludidas, só vem agravar consideravelmente o quadro.

Assim, dentro desse quadro, é perfeitamente possível que uma parte privada dos EUA, dentro de acordos comerciais como o Nafta, possa exercer um direito a ela conferida dentro desse acordo comercial, cujo direito não é reconhecido a uma parte privada nacional de um outro país signatário do mesmo acordo. Esta bizarra situação é agravada pelo quadro adjetivo do sistema de resolução de disputas pois, em acordos como o Nafta, os EUA tendem a querer impor seus valores a respeito da administração da Justiça, em seguimento a campanhas de desmoralização do Judiciário de outros países, como lamentavelmente ocorreu anteriormente à visita do Presidente Clinton ao Brasil. Assim, dá-se de fato uma transferência das atribuições do Judiciário para a arbitragem privada em questões não somente comerciais mas também de relevante interesse de ordem pública, como ocorreu recentemente no México36.

Dessa forma, do ponto de vista do risco jurídico, é hoje uma temeridade pretender-se negociar e celebrar um tratado comercial com os EUA, pela absoluta falta de consistência jurídica interna daquele país com uma ordem legal internacional, pela falta de vocação daquele país em aceitar a prevelência da lei internacional, e pela altíssima probabilidade de se estar celebrando um acordo do qual derivam obrigações, mas que não confere direitos.

NOTAS

1 Artigo II, seção 2, da Constituição dos EUA.

2 V., neste sentido, por Durval de Noronha Goyos Jr., Reflections on Certain US Law Specificities that Constitute Obstacles to the FTAA: A Brazilian Perspective, Inter-American Law Review, Florida-EUA:University of Miami, 1997.

3 V. seção 101.

4 Single undertaking, em inglês.

5 fast track, em inglês.

6 V. Missouri v. Holanda, 252 EUA 416 (1920).

7 Em seu artigo VI, também conhecido como “cláusula da supremacia”.

8 V. artigo III.

9 Foster v. Neilson, 2. Pet. 253 (EUA, 1829).

10 Conforme Mannington Mills, Inc. v. Congoleum Corp., 595 F. 2d 1287, 1298 (3rd Circuit 1979).

11 19 United States Code.

12 Para maiores informações sobre o Nafta, V. GOYOS Jr., Durval de Noronha. Gatt, Mercosul & Nafta. 2. ed., São Paulo:Obs. Legal Editora, 1996.

13 19 United States Code 3312.

14 V., nesse sentido, de Durval de Noronha Goyos Jr., Certas Especificidades do Ordenamento Jurídico dos EUA Vistas como Obstáculos à Alca: uma perspectiva brasileira, in: LAMPREIA, NORONHA et alli. O Direito do Comércio Internacional. São Paulo:Obs. Legal Editora, 1997.

15 O Brasil também não a ratificou.

16 Pub. L. 93-618, && 031-09.88 Stat. 1978, 2041, emendado pelo Ato de Comércio e Tarifas de 1988, pul. L. 100-418.102 Stat. 1107,1164, codificado no 19 U.S.C. &&2411-2419 (1988).

17 United States Trade Representative, departamento do governo dos EUA, em nível de ministério, que dentre outras atribuições conduz as negociações comerciais internacionais daquele país.

18 V. HUDEC, Rober E. Aggressive Unilateralism. United Kingdom:Hauster Weatsheaf, 1991.

19 V. GOYOS Jr., Durval de Noronha. A OMC e os Tratados da Rodada Uruguai. São Paulo:Obs. Legal Editora, 1995.

20 National Association of Manufacturers, A Catalog of New Unilateral Economic Sanctions for Foreign Policy Purposes 1993-1996, Washington D.C., 1997.

21 International Emergency Economic Powers Act (IEEPA) de 28 de outubro de 1997, alterada posteriormente.

22 Trading with the Enemy Act of October 16, 1997, alterada posteriormente.

23 Foreign Assistance Act of 1961, de 4 de setembro de 1961, alterada posteriormente.

24 Atomic Energy Act of 1954, alterada posteriormente.

25 CROOME, John. Reshaping the World Trading System. Genebra:World Trade Organization, 1995.

26 Para maiores especificidades a respeito do Acordo Anti-Dumping, reporte-se a GOYOS Jr. A OMC e os Tratados da Rodada Uruguai, op. cit.

27 United States Code, ou US Code.

28 US antidumping rules shown to be arbitrary, Financial Times, 13/10/1994, p. 4.

29 International Trade Administration, em inglês.

30 International Trade Department, em inglês.

31 Equivalente ao Ministério da Indústria e Comércio.

32 U.S. customs, em inglês.

33 V. a respeito, JACKSON, John et alli. International Economic Relations. St. Paul-Minn:West Publishing Co., 1995.

34 Sunset clause, em inglês.

35 V. GOYOS Jr. A OMC e os tratados da Rodada Uruguai, op. cit.

36 V. U.S. Company Plans to Present Argument Against Mexico in Trade Arbitration Case, International Trade Reporter, 15/10/97.