O século XX caracterizou-se por uma profusão de conflitos militares ininterruptos que marcaram todo o globo e nos quais pereceram aproximadamente 200 milhões de pessoas. Dentre esses conflitos, contam-se duas guerras mundiais, uma de 1914 a 1918 e, a outra, de 1931, quando da invasão japonesa da Manchúria, até 1945, ocasião em que se renderam a Alemanha e o Japão. No ocidente, costuma-se datar o início da Segunda Guerra Mundial quando da invasão da Polônia por tropas nazistas.
Com muita propriedade, Eric Hobsbawm observa que as duas guerras mundiais podem ser interpretadas como uma só “guerra dos 30 anos ”. De fato, apresenta-se pertinente o comentário já que os Estados beligerantes foram, de uma maneira geral, os mesmos, e as causas idênticas ou assemelhadas, apenas agravadas pelos termos tanto draconianos como trágicos do Tratado de Versailles.
No início do século passado, o direito internacional público foi, nas palavras do professor espanhol Pastor Ridruejo “basicamente oligocrático, isto é, concebido por um pequeno grupo de grandes poderes para servir e para legitimar seus próprios interesses ”. Ocorre que diferentes oligocracias podiam ter, e freqüentemente tinham, interesses diversos e, às vezes, conflitantes.
Na falta de um sistema pacífico e confiável de resolução de disputas, esses conflitos resultaram no recurso às vias armadas, que trouxeram a morte, a miséria e a desesperança na maior parte do mundo. Dessa maneira, em abril de 1945, no final da referida confrontação bélica, representantes de 50 Estados, inclusive o Brasil, reuniram-se na Conferência das Nações Unidas sobre a Organização Internacional, na cidade de São Francisco, Califórnia, EUA, para deliberar sobre a Carta das Nações Unidas, que foi assinada no dia 26 de junho de 1945. Dela resultou a ONU, que passou a existir formalmente a partir de 24 de outubro de 1945, com sede em Nova Iorque, EUA.
A formatação da Carta das Nações Unidas foi inspirada principalmente pelos EUA, a principal potência ocidental vencedora do conflito mundial e, subsidiariamente, pelo Reino Unido, potência imperial em declínio, e pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) . Posteriormente, na década subseqüente, todo um sistema de direito internacional foi criado mediante convenções diversas e organismos multilaterais vários.
Dessa maneira, foram criados o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), através os chamados Tratados de Bretton Woods, de 27 de dezembro de 1945, no início instrumentos de política monetária da chamada guerra fria que se iniciava entre os EUA e a URSS. Em 1947, firmou-se o Acordo Geral de Tarifas e Comércio, o GATT, com 23 signatários originários, incluindo-se o Brasil e a China, com o objetivo de regulamentar o comércio internacional.
Todos esses tratados, que constituíam a chamada “nova ordem internacional”, visavam em última instância basicamente promover os interesses fundamentais, tanto aqueles políticos como os econômicos, de uma potência hegemônica, os EUA, e, marginalmente, do núcleo central de seus aliados, uns poucos países ocidentais e orientais.
Contudo, a voracidade da potência hegemônica era muitas vezes limitada pela então existência da guerra fria com a URSS, a qual recomendava em alguns casos a rapina com parcimônia e ações que, embora anódinas em resultados, representavam um exercício de relações públicas digno de nota.
Da mesma maneira, progressos foram feitos na construção do direito internacional público. Em 9 de dezembro de 1948, a Assembléia Geral da ONU aprovava a Declaração Universal dos Direitos Humanos e era assinada a Convenção para a Prevenção e Punição do Genocídio. Em agosto de 1949, foram assinadas as quatro convenções de Genebra para a Proteção das Vítimas de Guerra. Posteriormente, vários diplomas foram assinados visando a limitação da proliferação e o controle de armas nucleares, a promoção dos direitos humanos, dentre outros.
Com a queda do muro de Berlim, em 1989, e com a formalização do colapso da URSS, em 1991, através o Tratado de Alma Ata, os freios existentes para a contenção da única potência hegemônica remanescente, os EUA, deixaram de existir, já que a ordem jurídica internacional ainda não era forte o suficiente para opor um obstáculo de monta aos seus desígnios predatórios.
Mais ainda, estrategistas norte-americanos, vislumbraram a oportunidade de impor uma ordem unilateral global, um jus imperium, ao resto da humanidade, reservando-se, e a alguns aliados, a prosperidade e impondo a miséria aos alienados. O jus imperium caracteriza-se, de um lado, pela manipulação dos organismos internacionais existentes para a obtenção dos objetivos nacionais hegemônicos, e de outro, pelo que chamei de a deconstrução do direito internacional existente, naquilo em que limitava a ação da barbárie.
Um caso típico de manipulação dos organismos internacionais é o da Organização Mundial do Comércio, a OMC, que substituiu o GATT e iniciou atividades em 1995. Ao incluir regras iníquas a favorecer enormemente um núcleo central de países desenvolvidos, em detrimento daqueles em desenvolvimento, o organismo promove a prosperidade seletiva de uns poucos em detrimento dos muitos.
Assim, dados de organismos como a ONU, o FMI e o próprio Banco Mundial, atestam que 80% das benesses do sistema multilateral de comércio da OMC recaem para o núcleo central de países desenvolvidos, invertendo a relação de benefício para população com os países em desenvolvimento, já que estes com 80% dos habitantes globais ficam apenas com 20% das vantagens.
Tais ganhos foram obtidos através de tratados desiguais e leoninos como aquele sobre propriedade intelectual, o chamado TRIPS, que assegura um monopólio absoluto sobre o direito imaterial da parte dos grandes conglomerados farmacêuticos, sem levar em consideração questões de ordem superior como direitos humanos ou razões de ordem pública e mesmo os conhecimentos tradicionais, utilizados há milênios.
Também o chamado TRIMS, o tratado de investimentos no âmbito da OMC, permite as políticas de apoio a vantagens comparativas mantidas pelos países desenvolvidos, enquanto veda as políticas de apoio ao desenvolvimento econômico e tradicionalmente utilizadas pelos países emergentes, algumas das quais desenvolvidas por organismos da ONU.
Por sua vez, o chamado GATS, o tratado sobre serviços da OMC, ao impedir o acesso a mercado dos provedores dos países em desenvolvimento, e liberalizar aquele aos prestadores de serviços dos países desenvolvidos, aliena os países emergentes do comércio internacional de serviços, muito superior ao de bens e mercadorias. Acresce que, nesse setor, não existem mecanismos de defesas, como as salvaguardas .
De resto, a ordem jurídica multilateral da OMC permite a prática de escandalosos subsídios ao setor agrícola dos países desenvolvidos, procedimento não permitido em qualquer outra área, como na industrial, quando é naquele segmento em que os países emergentes têm uma natural vantagem comparativa por diversos fatores, inclusive pelo natural custo inferior da mão de obra.
De outro lado, o anacronismo dos organismos decisórios da própria ONU permite sua manipulação e desvirtuamento pelo vício de fraca representatividade. De fato, os poderes decisórios executivos da ONU são de competência de um Conselho de Segurança composto de 15 membros, dos quais 5, permanentes, e 10, não permanentes. Os permanentes, a República Popular da China, a França, a Federação Russa, o Reino Unido e os EUA, ex vi do disposto no artigo 27, 3 da Carta da ONU, têm o chamado “poder de veto”.
Quanto aos membros não permanentes, eleitos para um mandato não renovável de dois anos, têm sua composição determinada pela Resolução número 1991, da Assembléia Geral da ONU, que reserva 5 assentos para países africanos a asiáticos; um para a Europa Oriental; dois da América Latina; e dois da Europa Ocidental.
Em primeiro lugar, constate-se que o poder de veto é estranho ao direito e, por conseguinte, é recomendável sua substituição pelo critério democrático da maioria, simples ou qualificada. Em segundo lugar, é hoje injustificável a manutenção da dicotomia entre membros permanentes e não permanentes. Acresce que há uma desproporcional representação dos Estados Europeus.
O anacronismo da composição do Conselho de Segurança é reconhecido universalmente, porém sua estrutura atual atende aos interesses hegemônicos dos EUA e do núcleo central de seus aliados, notadamente o Reino Unido, Estado cliente do primeiro. Algumas fórmulas foram apresentadas para a reforma do Conselho, tendo se apresentado como candidatos naturais a membros permanentes o Brasil, a Índia, a África do Sul, a Alemanha e o Japão.
Considerando que a Rússia e a China já fazem parte do Conselho de Segurança como membros permanentes, constata-se o recente protagonismo internacional de Brasil, África do Sul e Índia, todos países em desenvolvimento. Vamos então analisar as razões pelas quais estes países normalmente apresentam-se aliados nas questões internacionais.
Tal como o Brasil, a África do Sul, a China e a Índia liberaram-se em passado recente ou muito recente dos infames grilhões do colonialismo ou do semi-colonialismo. Durante os anos em que foram subjugados, tais países não puderam realizar os seus respectivos potenciais naturais. Em todos os casos, até mesmo a capacidade de crescimento de médio prazo foi prejudicada pelo impedimento da formação educacional das populações nacionais, da parte dos poderes coloniais.
De fato, Brasil, China e Índia passaram a perseguir políticas nacionais e independentes quase que contemporaneamente a partir do segundo governo de Getúlio Vargas, a partir de 1951, e da vitória da revolução comunista em 1949, liderada por Mão Tse Tung. Por sua vez, a Índia teve sua independência reconhecida em 1947 e imediatamente passou a perseguir políticas nacionalistas, sob a liderança de Pandit Nehru. A África do Sul somente em 1994 libertou-se do odioso regime do apartheid.
Com altos e baixos, nas últimas décadas, esses países atingiram notáveis conquistas na área econômica e expressivos sucessos de desenvolvimento humano, social e tecnológico, da mesma maneira que promoveram uma política externa benigna e não agressiva. Há hoje muita identidade entre eles, o que veio a ser internacionalmente reconhecido.
No Brasil, o valor do PIB chegou US$ 1.8 trilhão no critério de paridade do poder de compra e de US$ 1.2 trilhão no sistema de taxas de câmbio. Suas reservas externas situam-se em aproximadamente US$ 200 bilhões. Sua população é de cerca de 200 milhões de habitantes. O comércio externo do país gera saldos de cerca de US$ 50 bilhões ano. Seu crescimento econômico é superior a 5% ao ano. Seus programas sociais são eficazes na integração social e expressiva redução da marginalidade econômica. Sua política econômica e externa são fatores de estabilidade e prosperidade regional.
A China é hoje a maior força motriz do crescimento econômico mundial. Seu PIB no critério de paridade do poder de compra é de US$ 10 trilhões e de US$ 2.5 trilhão no sistema de taxas de câmbio. Sua população é de cerca de 1.3 bilhão de habitantes. Suas reservas externas situam-se em aproximadamente US$ 1.3 trilhão e sua política de financiamento dos déficits comerciais americanos tem permitido a continuidade do crescimento econômico mundial. Seu crescimento econômico é superior a 9% ao ano. Seus programas sociais são eficazes na integração social e expressiva redução da marginalidade econômica. Sua política econômica e externa são fatores de estabilidade e prosperidade regional.
A Índia tem um PIB de cerca de US$ 4.5 trilhões no critério de paridade do poder de compra e de US$ 900 bilhões no sistema de taxas de câmbio. Sua população é de cerca de 1.1 bilhão de habitantes. Suas reservas externas situam-se em aproximadamente US$ 200 bilhões. Sua economia cresce a cerca de 9% ao ano. O país pratica eficientes programas de integração social e redução da marginalidade econômica. Sua política econômica e externa são fatores de estabilidade e prosperidade regional.
A África do Sul tem um PIB de cerca de US$ 650 bilhões no critério de paridade do poder de compra e de cerca de US$ 250 bilhões no sistema de taxas de câmbio. Sua população é de aproximadamente 35 milhões de habitantes. Sua economia cresce cerca de 6% ao ano.Seus programas sociais são eficazes na integração social e expressiva redução da marginalidade econômica. Sua política econômica e externa, e seu regime democrático, são paradigmáticos e fatores e estabilidade e prosperidade regional.
A Federação Russa tem um perfil diverso dos países que a precederam nesta análise, já que foi até pouco tempo uma das potências hegemônicas mundiais. Hoje, procura recuperar sua economia, promover a prosperidade social e buscar um novo horizonte nas relações internacionais. De qualquer maneira, o PIB da Rússia é hoje de US$ 1,7 trilhão, de acordo com o critério de paridade do poder de compra e de US$ 1,1 trilhão no sistema de taxas de câmbio. Sua população é de cerca de 145 milhões de pessoas. Sua economia cresce a 7% ao ano. Seu saldo comercial é de US$ 130 bilhões ao ano. É grande produtora e exportadora de gás e petróleo. A inconsistência da ordem política mundial hodierna é tal que a Rússia, ao mesmo tempo em que é membro permanente do Conselho de Segurança da ONU é excluída da OMC.
Os formuladores da política externa brasileira aperceberam-se dessas semelhanças e constataram que esses países partilham igualmente as mesmas vulnerabilidades externas de ordem econômica, política, militar, ideológica e cultural. Para o Brasil, tais disparidades “têm sua origem nas regras e nos mecanismos que constituíam a estrutura e a trama das relações entre o Brasil Colônia e a metrópole portuguesa, no seio da dinâmica de expansão do capitalismo a partir de seu centro de irradiação europeu, no impulso de formação do sistema econômico e político mundial ”.
Assim, qualquer que seja a estratégia de inserção internacional do Brasil, ela deverá necessariamente”, nas palavras do grande estrategista brasileiro, Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, “ser construída e executada a partir dos três desafios da sociedade brasileira, que são a redução das extremas disparidades sociais, a eliminação das crônicas vulnerabilidades externas e a realização acelerada do seu potencial .”
Ora, não é difícil concluir que os desafios dos demais países sob análise são exatamente os mesmos. Igualmente, os obstáculos de todos são aqueles constituídos pelos responsáveis pela anacrônica, injusta e egoísta ordem política e econômica internacional. Enfim, como acabar com a tirania política, com o infame jus imperium e com a nojenta política da promoção da prosperidade seletiva de uns poucos países em detrimento dos muitos?
A construção da necessária cooperação internacional entre os novos protagonistas não é tarefa fácil. Em primeiro lugar, há ainda muito desconhecimento. As relações sul-norte foram por muito tempo privilegiadas, em detrimento das sul-sul. Acresce que se há muitos e substanciais fatores que levam à cooperação, por outro lado permanece ainda a competição em muitas áreas São ainda as economias emergentes vulneráveis sob muitos aspectos, particularmente na área social, e portanto sensíveis a fortes pressões externas.
O fato é que, pouco a pouco, com a evolução do crescimento econômico dos novos protagonistas internacionais que, segundo dados da CIA em 15 anos consumirão mais energia do que os EUA e a União Européia, juntos, será muito difícil negar-lhes a correspondente quota em poder político internacional. Todavia, parece certo que a oposição haverá. Afinal, como diz o ditado, “old habits die hard”.
A política externa brasileira do governo Lula contempla a articulação da “aproximação real e prática (além da retórica) política e econômica com outros grandes Estados periféricos que têm interesse estratégico em promover a multipolaridade do sistema mundial ”. Para o Brasil, a vigorosa busca do necessário entendimento internacional com os novos protagonistas deverá ser feita levando-se sempre presente a realidade regional e sem prejuízo das excelentes relações mantidas no continente e, em especial, com a República Argentina.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).