O desenvolvimento tecnológico na electrónica veio a colidir com os padrões e critérios do comércio internacional enraizados na Organização Mundial do Comércio (OMC) desde a assinatura do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), em 1947. Nem mesmo o Acordo sobre Comércio em Serviços (GATS), assinado em 1994 como parte dos Tratados de Marraqueche que concluíram a Rodada Uruguai do GATT, levou em consideração o novo meio de trocas. De fato, ficou desde logo definido, para fins do comércio multilateral em serviços, que as modalidades de prestação seriam: a) a transfronteiriça; b) o movimento de consumidor; e c) a presença comercial. De acordo com esta classificação, o meio electrónico equivaler-se-ia à telefonia para a prestação de serviços além fronteiras.

Não se contemplaram, na ocasião, as decorrências potenciais das enormes possibilidades comerciais advindas do processo de digitação, cuja tecnologia permite a venda electrónica com o descarregamento virtual de programas de computador; projectos de arquitectura; livros; música; filmes; tecnologia; e serviços regulamentados, como consultoria médica e legal, dentre outros. Tal lapso levou os países desenvolvidos, os grandes inspiradores e fatores do GATS, a um paroxismo de culpa pela imperdoável omissão no propósito de afirmação de seus interesses económicos hegemónicos.

Essa constatação levou os países desenvolvidos, sem exceção, a uma furiosa atividade no sentido de recuperar o terreno perdido, por meio da proposição de alternativas que viessem, dentro do sistema multilateral da OMC, a) em um primeiro momento, evitar a erecção de empecilhos à venda de produtos digitados, ainda que tarifários, muito embora estivessem elas em grande parte em violação aos termos do GATS; e, b) em segundo lugar, assegurar a aceitabilidade transitória de tais descumprimentos ao regime legal. Assim, a Segunda Conferência Ministerial da OMC, realizada em fins de 1997 adoptou uma declaração sobre comércio electrónico que afirmava terem os ministros atingido um consenso político no sentido de continuar a prática da não imposição de tarifas alfandegárias até a próxima Conferência Ministerial; e determinava ao Director – Geral a elaboração de um estudo objectivando a levantar todas as questões comerciais atinentes à questão do comércio electrónico em escala global. Para fins deste estudo, definiu-se o comércio electrónico como sendo “a produção, distribuição, mercadologia, venda ou entrega de bens e serviços por meios electrónicos.”

De acordo com uma perspectiva pura e exclusivamente legal poder-se-ia afirmar que há dois elementos a se considerar para um estudo a respeito da temática, sob o prisma único do comércio multilateral, que seriam a) a formatação jurídica, com as devidas definições e classificações; e b) as questões pertinentes ao acesso a mercado, com definições do que se constituiriam barreiras ao comércio electrónico e de como se faria a liberalização. Numa perspectiva ainda jurídica, embora um pouco mais restrita, por dizer respeito mais ao ordenamento jurídico nacional ou regional, dever-se-ia considerar as implicações do comércio electrónico com respeito ao direito das obrigações, no tocante à manifestação da vontade (assinatura electrónica e certificação) e à formação dos contratos; bem como aos chamados direitos difusos, como os da privacidade e os do consumidor.

Assim, logo que foi adotada a declaração sobre comércio electrónico, puseram-se países e organizações internacionais a preparar estudos e/ou projectos que pudessem influenciar o trabalho desenvolvido no âmbito da OMC, tendo em conta que, para a Terceira Conferência Ministerial programada para Seattle, nos Estados Unidos da América (EUA), cogitava-se do lançamento da chamada Ronda do Milénio[1]
,o topo de cuja agenda colocavam a questão a União Europeia (UE); os EUA e o Japão, todos não coincidentemente. Assim, apressou-se no âmbito da Organização para a Cooperação e para o Desenvolvimento Económico (OCDE), que em questões de comércio internacional funciona como um cartel dos interesses hegemónicos, a elaborar um alentado plano de acção[2]com o declarado objectivo de influenciar os governos dos países membros da OMC para a ronda de negociações que se vaticinava.

Da mesma forma, mas com objectivos totalmente diversos, a Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (UNCITRAL) preparou um modelo de lei [3]sobre comércio electrónico a tratar exclusivamente das questões legais da certificação e da validação de assinaturas electrónicas, bem como da formação de contratos, num esforço dissociado dos interesses que seriam discutidos no âmbito da Ronda do Milénio da OMC. O projecto contempla igualmente a regulação de documentos electrónicos pertinentes ao transporte físico de mercadorias.

Concomitantemente, reagiam os países em desenvolvimento, para os quais as promessas de prosperidade feitas durante o curso e no fechamento da Ronda Uruguai resultaram especiosas, quimeras que aprofundaram o fosso que os separa dos países desenvolvidos, de vez que ficou amplamente caracterizada a maior concentração de renda nestes últimos, nos anos que seguiram à assinatura dos Tratados de Marraqueche. Assim, o Grupo dos 15, na reunião ministerial preparatória para a Conferência Ministerial de Seattle, alertou para os problemas decorrentes da análise etnocêntrica da questão do comércio electrónico e clamou que a mesma fosse vista sob o prisma dos países em desenvolvimento[4]. Esta reunião já havia sido precedida de outra, realizada em Genebra[5], na qual Organizações Não-Governamentais de alta representatividade haviam denunciado que, de acordo com as propostas dos países desenvolvidos e pelo secretariado da OMC, os benefícios da inserção do comércio electrónico no sistema multilateral reverteriam “quase que exclusivamente” para as empresas dos países afluentes e que os países em desenvolvimento perderiam a opção por fonte de receita fiscal.

Nas cinzas da procelosa Reunião Ministerial de Seattle constatou-se, de forma inequívoca, a ampla percepção na opinião pública internacional de que o comércio multilateral continua um jogo de cartas marcadas a beneficiar alguns poucos interesses hegemónicos em detrimento da maioria da população mundial, relegada à mais absoluta miséria pela cupidez, ganância e insensibilidade institucionais, alçadas como vil lábaro da rapace pirataria moderna, que agride sob o imerecido epíteto de livre comércio global. Mais ainda, tristemente para o direito internacional, disseminou-se em Seattle a impressão de que o secretariado da OMC não tem transparência; nem governança; e tampouco independência suficientes para que a organização funcione como instrumento de afirmação do império da lei e da juridicidade no sistema do comércio multilateral.

Assim, para a questão da regulação do comércio electrónico deve-se necessariamente fazer uma dicotomia entre as questões puramente legais de direito doméstico, nacional ou regional, tendentes a regulamentar uma modalidade de comércio que já é uma importante realidade[6]
,da tentativa de locupletamento institucional, que é o esforço presentemente conduzido no âmbito da OMC, sob a falaciosa argumentação da liberalização do comércio internacional. Com relação à regulação doméstica, regional ou nacional, é importante o esforço realizado pela UNCITRAL. Da mesma forma, deve-se aprofundar a protecção do consumidor de produtos e serviços do comércio electrónico, bem como preservar sua privacidade.

Por outro lado, sob o prisma do direito multilateral do comércio a questão se apresenta com grande complexidade. Quesitos de grande relevância devem ser profundamente examinados e suas repercussões amplamente avaliadas e debatidas pela sociedade civil. Por exemplo, como fica a questão das profissões regulamentadas e seu exercício em um dado território? Pode um paciente fazer uma consulta virtual com um médico habilitado(?) em outro país? Mais ainda, como fica a questão dos serviços financeiros face à fuga de capitais para os países da OECD, sem normas de cooperação fiscal objectivando o combate à fraude e ao crime organizado? Ou ainda, como fica a protecção às indústrias nascentes nos países em desenvolvimento? E a questão do “dumping” cultural? A lista é praticamente interminável, de grande complexidade e enorme relevância para o futuro dos povos e a prosperidade das nações.

Enquanto tais questões não forem amplamente debatidas em um foro internacional independente com a merecida credibilidade e ensejarem resultados equitativos, a regulação do comércio electrónico deve cingir-se apenas ao direito nacional ou regional.