SÃO PAULO – O regime jurídico da arbitragem no âmbito do Mercosul foi lançado com o “Protocolo de Brasília sobre a Solução de Controvérsias”, de 17 de dezembro de 1991, e que entrou em vigor em 22 de abril de 1993. Posteriormente, foi aprovado o “Protocolo de Ouro Preto”, em 17 de dezembro de 1994, que entrou em vigor em 15 de dezembro de 1995, com o objetivo declarado de adaptar o processo de resolução de disputas a uma união aduaneira. Mais recentemente, em 18 de fevereiro de 2002, foi assinado o “Protocolo de Olivos”, que modifica e consolida o regime de arbitragem no Mercosul.
A inspiração do regime da arbitragem no Mercosul foi, desde o seu início e até o presente momento, de ordem diplomática, com muito baixa influência jurídica. De fato, os estrategistas brasileiros de relações internacionais, no Ministério das Relações Exteriores, o Itamaraty, têm de maneira consistente defendido a visão de que, devido às assimetrias econômicas e sociais no bloco, a maior juridicidade no Mercosul desatenderia aos interesses do Brasil. Isto ocorreria pela renúncia à soberania que o Brasil teria que fazer para aceitar um órgão jurisdicional eficaz.
Assim, a opção por um regime diplomático de solução de disputas (chamadas equivocadamente controvérsias no Mercosul) permitiria o controle político por agentes governamentais de todas as questões legais e conflitos resultantes dentro do bloco. Este controle, evidentemente, compreenderia o poder de veto a ser exercido pelos Estados membros individual ou coletivamente, ao acesso ao sistema de resolução de disputas por interesses particulares.
A falta de acesso à Justiça comunitária por particulares é um grande obstáculo à consolidação da união aduaneira pois impede a prevalência da lei nas relações econômicas regionais. A sujeição da procedência ou pertinência de um pleito particular a um critério político a ser exercido por agentes governamentais não deixa de ser um arbítrio. De fato, como conciliar as liberdades democráticas dos quatro Estados membros do Mercosul com tais critérios de seleção política?
Sem juridicidade no bloco, não há credibilidade institucional, resultando profundamente comprometidos o clima empresarial e a atração de investimentos. É certo que o Mercosul configura também uma iniciativa política para além de uma putativa união aduaneira. Nada impede que as questões de natureza política sejam resolvidas dentro de critérios apósitos, deixando os conflitos de natureza legal serem resolvidos de acordo com o império da lei.
Dessa maneira, do ponto de vista da cidadania, que compreende diversos interesses particulares, inclusive de ordem econômica, a experiência do sistema de resolução de disputas do Mercosul é um completo e retumbante fracasso. Nos quase 14 anos que decorreram desde o “Protocolo de Brasília”, apenas oito casos foram decididos pelos sistemas de arbitragem do bloco. Esse número é insignificante sob qualquer critério que se queira usar para avaliar o seu grau de relevância.
De fato, se levarmos em consideração o valor das trocas regionais, que se situam acima de US$ 30 bilhões ao ano, não se pode crer com seriedade que o número de conflitos situe-se em cerca de meio caso por ano, em média. Da mesma maneira, todos os países do Mercosul são vibrantes democracias com pleno acesso à prestação jurisdicional dos Estados membros. Cada ano, há milhões de novas ações distribuídas nos tribunais dos países do bloco.
Se conflitos há e se eles não são dirimidos por um sistema jurisdicional, como são processados os interesses no Mercosul hoje? Da mesma forma que nas ditaduras e nos regimes de exceção: por meio de contatos e pressões políticas. O resultado, naturalmente, é o pior que se poderia esperar: uma fonte de injustiças, frustrações e descrédito. Sem contar com o estímulo à corrupção.
É mais do que chegada a hora de uma mudança radical no sistema de resolução de disputas do Mercosul, de tal maneira que se assegure o pleno e irrestrito acesso à prestação jurisdicional no bloco e que possa prevalecer na região o estado de Direito, da mesma maneira que ocorre internamente nos Estados membros. Sem Justiça, não se faz um bloco regional de livre comércio!
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).