São Paulo – A estratégia da política externa brasileira contempla “a construção de uma sociedade sul-americana próspera, dinâmica, democrática e não hegemônica”, nas palavras do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, na importante obra “Desafios Brasileiros na Era dos Gigantes”. Anteriormente, o Mercosul, constituído pelo Tratado de Assunção de 1991, era visto como o organismo supranacional apto a atingir tais objetivos.
No entanto, mais recentemente, ao invés de aprofundar e adensar as relações no Mercosul, para que o bloco possa ser gradualmente expandido, a diplomacia brasileira optou por uma iniciativa concorrente que pode não atingir os objetivos propostos e ainda dificultar a consecução dos propósitos do bloco do cone sul do continente.
De fato, no dia 23 de maio próximo passado, o Brasil, a Argentina, a Bolívia, o Chile, a Colômbia, o Equador, a Guiana, o Paraguai, o Peru, o Suriname, o Uruguai e a Venezuela assinaram o Tratado Constitutivo da Unasul (União de Nações Sul-Americanas), doando-a de personalidade jurídica de direito internacional (artigo 1).
O objetivo da Unasul (artigo 2) é a “construção, de maneira participativa e consensuada, de um espaço de integração e união no âmbito cultural, social, econômico e político entre seus povos, priorizando o diálogo político, as políticas sociais, a educação, a energia, a infra-estrutura e o meio ambiente, entre outros…” As deficiências na redação dos objetivos não nos permitem fazer uma avaliação precisa e segura do enunciado, mas tem-se, à primeira vista, a impressão de que a Unasul será apenas um foro de debates políticos.
Contudo, o artigo 3 do Tratado traz um elenco de objetivos específicos, dentre os quais a integração energética, a integração financeira, a superação das assimetrias, a integração industrial e produtiva, etc. Trata-se aqui claramente de um exercício retórico ou de um paroxismo de alucinação, pelo distanciamento do enunciado da realidade existente.
Como resolver as assimetrias em território, riquezas naturais e população, por exemplo? Como promover a integração industrial, produtiva e energética num regime de economia de mercado, que vige praticamente em todo o território da UNASUL? Como promover a integração financeira sem antes avançar na uniformização legislativa, inclusive na área fiscal, coisa que nem o Mercosul conseguiu ainda obter, não obstante os 14 anos de experiência e um número mais reduzido e menos problemático de Estados membros?
O Tratado da Unasul (artigo 4) cria os seguintes órgãos: Conselho de Chefes de Estado e de Governo; Conselho de Ministros das Relações Exteriores; Conselho de Delegados; e a Secretaria Geral, que terá sua sede em Quito, no Equador (artigo10). A Unasul terá ainda uma presidência pro-tempore, a ser exercida sucessivamente por cada um dos Estados Membros, por períodos anuais.
A convenção dispõe ainda em seu artigo 17 a respeito da criação de um Parlamento Sul-Americano na cidade de Cochabamba, na Bolívia, cujas atribuições, por ora indefinidas, serão precisadas por meio de um protocolo adicional.
Por sua vez, as normativas da Unasul serão adotadas por consenso, o que vale dizer por unanimidade (artigo 12). Num continente onde não há consenso nem ao menos para se identificar a origem do pão de queijo, a unanimidade parece um devaneio fútil em matérias como a integração industrial e produtiva. O consenso volta à baila no tocante aos temas centrais da agenda internacional (artigo 14), o que representará no mínimo um enorme desafio diplomático.
Muito embora os órgãos da Unasul sejam todos compostos de representantes oficiais, a participação da cidadania é contemplada, ao menos para os efeitos retóricos tão a gosto do continente, no artigo 18. Assim, “será promovida a participação plena da cidadania no processo de integração e união sul-americanas, por meio do diálogo e da interação ampla, democrática, transparente, pluralista, diversa e independente com os diversos atores sociais…” (sic).
Contudo, para a solução de disputas, a cidadania está excluída, direta ou indiretamente, através de órgãos independentes, pois, segundo o artigo 21 do Tratado, “as controvérsias serão resolvidas mediante negociações diretas.” Em caso dessas falharem, os Estados Membros partes na disputa poderão submeter a questão ao Conselho de Delegados, “o qual dentro de 60 dias de seu recebimento formulará as recomendações pertinentes para sua solução” (sic).
Os termos e, bem assim, a redação do Tratado da Unasul são de causar estupefação e levam à necessária indagação se não seria melhor trabalharmos seriamente para a superação das muitas dificuldades concretas no âmbito do Mercosul.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).