1.- O Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), assinado em 1992, mas que entrou em vigor em 1.1.1994, entre os EUA, México e Canadá, nasceu, de um lado, das frustrações dos EUA decorrentes da não-imposição de sua vontade na primeira fase da Rodada Uruguai e, de outro, do desejo de criar um mercado regional cativo. O fato que o NAFTA foi negociado pelo México por uma administração notoriamente corrupta e incompetente, que se caracterizou, nas palavras de C. Fred Bergsten, “pela aceitação virtual de tudo o que se lhe pediu e por fazer todas as concessões”, permitiu aos EUA a formatação de um modelo idiossincrático de acordo regional comercial altamente vantajoso, para aplicação a outros países. Este modelo tem as seguintes características básicas [1]
:
1.1 – AGENDA AFIRMATIVA:
a) criação do modelo do cubo e dos raios [2], segundo o qual as trocas industriais e de serviços, em como os investimentos de terceiros, vem do cubo para os países raios;
b) a abertura dos mercados de serviços dos países raios;
c) redução tarifária nos países raios;
d) formulação de regras de origem de modo a favorecer largamente os produtos do bloco, particularmente os do país cubo;
e) fluxo livre de moedas e garantia de conversibilidade dos estados raios para os créditos públicos ou particulares do cubo;
f) imposição de critérios legislativos próprios do cubo aos raios nas mais diversas áreas, mas notadamente na área trabalhista, previdenciária e no Judiciário;
g. emasculação do Judiciário dos países raios para questões comerciais, mediante o desvio de competência para o Judiciário cubo e para tribunais arbitrais; e
h. colheita precoce do que for possível.
1.2 – AGENDA DEFENSIVA:
a) preservação dos subsídios agrícolas do cubo;
b) manutenção da legislação unilateral idiossincrática, incluindo a pertinente a medidas anti-dumping;
c) preservação do regime constitucional que coloca a legislação ordinária acima dos tratados internacionais, incluindo os comerciais;
d) admissão aos países raios apenas de acesso ao fornecimento ao país cubo de produtos baratos de consumo com baixo valor agregado; e
e) dilação de quaisquer concessões para o futuro o mais distante possível, preferencialmente no âmbito do sistema multilateral da Organização Mundial do Comércio (OMC).
2 – Tal modelo funcionou admiravelmente bem, para os EUA, no âmbito do NAFTA. Como resultado, as exportações norte-americanas para o México cresceram 50% e a dependência comercial de trocas mexicanas com os EUA aumento de, aproximadamente, 72%, para cerca de 90% nos anos subseqüentes à assinatura do NAFTA. Mais ainda, os EUA dominaram as principais áreas dos mercados de serviços, principalmente no setor financeiro, o mais relevante do segmento, que foi totalmente desnacionalizado. Curiosamente, já em 1995, Noah Chomsky previu tal acontecimento e prognosticou ominosamente que o México perderia, como conseqüência, “a soberania para formular planos econômicos e promover um desenvolvimento independente” [3]
. E assim foi. Em 2001, um estudo do Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade Autônoma do México, conduzido pela Doutora Leticia Campos, chegou à nada surpreendente conclusão de que “o governo mexicano já perdeu o comando da economia local” diante da realidade de que 95% do mercado daquele país, incluindo o setor financeiro, encontra-se sob o controle do capital estrangeiro [4]
.
3 – Nas outras áreas de serviços, o México perdeu a economia de escala devido a falta de acesso de seus nacionais aos mercados dos EUA (e também do Canadá), sujeitos a uma infame e reduzidíssima quota de 5.000 pessoas por ano. Consequentemente, o setor nacional de serviços de alta especialização mexicano deixou de existir. Por exemplo, o México tem apenas um milhão e meio de usuários de internet, contra dez milhões e quatrocentos mil de usuários no Brasil e de um milhão na Argentina, que tem um terço da população mexicana. Seus prestadores de serviços ficaram relegados às tarefas meniais, como cabeleireiras, cozinheiros, atendentes, motoristas, etc.
4 – A UE aprendeu rapidamente as lições dos EUA, tendo adotado quase que a totalidade de sua agenda [5]
para a negociação de tratados comerciais regionais com países em desenvolvimento, que agora atingiu o número impressionante de 27 acordos diversos, inclusive um com o México [6]
. Outros 15 tratados comerciais estão presentemente sendo negociados pela UE. Por sua vez, os EUA tem, no momento, três acordos regionais [7]
e perseguem um número grande deles, inclusive a “Área de Livre Comércio das Américas” (FTAA), esforços que estão sendo prejudicados pela falta de autorização apósita do poder legislativo ao poder executivo [8]
.
5 – Para países como a Argentina e o Brasil, o modelo consagrado pelo NAFTA, que é a plataforma da ALCA, seria um grande desastre econômico e social, que certamente teria conseqüências políticas graves [9]
. Em primeiro lugar, o setor agrícola, em ambos os países, seria destruído pelos subsídios praticados pelos EUA, no valor de US$ 150 bilhões. Isto comprometeria os setores de trigo, soja, algodão e açúcar, este último responsável por cerca de 1.200.000 empregos rurais no Brasil e 300.000 na Argentina. O setor algodoeiro gera aproximadamente 500.000 empregos apenas no Brasil. Por conseqüência, os segmentos de reciclagem de proteína vegetal em animal, tanto granjeiro, como suíno e bovino, seriam dramaticamente afetados de forma adversa. À guisa de comparação, no México o PIB agrícola diminuiu 17.6% durante o NAFTA, sendo que a produção de grãos caiu 27.6% e a de carnes decresceu 34.6% [10]. Por sua vez, a importação de alimentos aumentou de US$ 1,7 bilhão em 1982 para US$ 8,6 bilhões em 99 decorrente da perda de competitividade do setor agrícola local. Mais ainda, no México do NAFTA, o setor açucareiro encolheu cerca de 34% [11]
. No Brasil, um efeito semelhante, muito provável no cenário da ALCA, ameaçaria a paz social no campo!
6 – Mais ainda, os setores de serviços de alta complexidade seriam desnacionalizados, inclusive pela perda de economia de escala decorrente da falta de acesso aos mercados dos EUA por decorrência das barreiras horizontais de movimento de prestadores de serviços. Assim, os bancos comerciais serão estrangeiros e os de investimentos serão situados em Nova Iorque. As Bolsas de Valores e de Mercadorias regionais desaparecerão. Os advogados, auditores, contadores e consultores especializados em tarefas de alta complexidade serão os estrangeiros. O mesmo ocorrerá com os serviços médicos e hospitalares, de arquitetura, de engenharia e de informática. O setor educacional sofrerá grandemente pois estará fornecendo a educação mínima necessária para o desempenho de tarefas meniais, como servir merendas gordurosas e refrigerantes gasosos.
7 – De fato, os setores domésticos de serviços dos raios serão condenados à função de “depósitos de mão de obra não-qualificada” [12]
, fábricas de pobreza. No sistema formatado pelo NAFTA, um país é competitivo na direta dimensão de sua miséria. No México de hoje, 80% da população vive abaixo do nível de pobreza. Os salários industriais caíram de US$ 127 em 1982 para US$ 74 em 1999. O país virou um exportador de miséria, de vez que os elementos mais ativos da economia são as remessas dos emigrantes, de cerca de US$ 6.3 bilhões em 1999, e as maquiladoras. A emigração do México para os EUA aumentou de 278.229 entre 1991 e 1997, para 366.000 entre 1998 e 1999, resultado do modelo econômico perverso que gera um défice anual de 500 mil empregos [13].
8 – Por sua vez, numa ALCA erigida sobre os infames alicerces do NAFTA, o setor de audiovisuais mostrará apenas produtos americanos, confeccionados a um preço baixíssimo pela escala, o que eliminará a possibilidade de competição. Desta forma, a produção cultural dos demais países, outros que os EUA, entrará em inexorável declínio. As línguas regionais tornar-se-ão um patoá do dialeto americano.
9 – Na área industrial, devido ao fato de que as tarifas sul-americanas são ainda relativamente altas, a celebração de um acordo comercial regional com um poder hegemônico tem o condão de alienar o outro. Os produtos manufaturados pelo poder excluído perderão drasticamente sua competitividade. No caso, tanto no Brasil como na Argentina, dentre EUA e UE, o principal parceiro econômico é a UE. Mais ainda, aproximadamente 60% dos investimentos estrangeiros recebidos na Argentina, como no Brasil, vem da UE. No Brasil, 82% dos investimentos estrangeiros são hoje direcionados ao setor de serviços!
10 – A diversidade dentre os países tenderá a ser ignorada. Padrões e valores sub-culturais serão impostos para a legislação interna, para as relações sociais, para a vida acadêmica e cultural, para a expressão artística e para o funcionamento dos Poderes Judiciários. Decorrerá um agravamento do fenômeno perverso da globalização, magistralmente lembrado por Ernesto Sabato: “La humanidad está cayendo en una globalización que no tiende a unir culturas, sino a imponer sobre ellas el único patrón que les permita quedar dentro del sistema mundial” [14]
. Haverá, por conseguinte, uma grande derrogação de soberania também na formulação de política de desenvolvimento social e de afirmação individual. Como corrolário natural, seguir-se-á a transferência total de soberania na formulação das políticas monetária e econômica.
11 – Acresce que Argentina e Brasil, bem como Paraguai e Uruguai, continuarão vítimas do unilateralismo e do arbítrio praticado pelos EUA mediante suas medidas idiossincráticas, como no caso do anti-dumping. Seu direito constitucional continuará a colocar seu ordenamento jurídico interno acima de suas obrigações internacionais e a legislação de implementação de um eventual tratado subordinará sua eficácia às normas domésticas. Um tal acordo comercial valerá contra os países raios, mas não necessariamente contra o cubo.
12 – Um exemplo prático e interessante a respeito da questão da hierarquia das normas do direito americano e o relativo à matéria dos transportes rodoviários. O NAFTA assegurou aos transportadores rodoviários mexicanos o acesso ao território dos EUA. Todavia, as barreiras horizontais administrativas impostas por este país impediu sua ocorrência. Inconformado, México solicitou a formação de um painel de arbitragem para dirimir a questão, havendo recentemente prevalecido a seu favor. Derrotado no painel, o Congresso americano imediatamente aprovou uma lei interna derrogando os direitos mexicanos provenientes do NAFTA.
13 – Mas este cenário dantesco não seria largamente compensado pelo acesso ao mercado dos EUA dos produtos de consumo de baixo valor agregado, que requerem o emprego de mão de obra barata? – Absolutamente, não! O modelo de importação de tais produtos pelos EUA já está esgotado e não se presta para a ampliação em grande escala. De fato, os EUA já tem um défice comercial de US$ 500 bilhões por ano! Até que ponto o consumidor americano tem condições de engordar mais ou de comprar um maior número de camisas e de calçados esportivos do que já adquire? Até que ponto o sistema bancário norte-americano vai conseguir sustentar a alavancagem e endividamento financeiro do consumidor, quando mais expandir o que já é claramente excessivo? Lembre-se que os países da Ásia já exportam para os EUA cerca de 37% do Produto Interno Bruto (PIB) regional [15]
e buscam empenhadamente a formulação de estratégias alternativas, regionais e internacionais, pelo esgotamento do presente modelo. Dentre tais alternativas está a criação de uma rede trocas regionais apoiada por US$ 100 bilhões de suporte monetário dentre os membros da ASEAN mais Japão, China e Coréia do Sul [16].
14.- CONCLUSÃO: O MERCOSUL FACE AO GARROTE HEGEMÔNICO.
14.1.- A teoria do realismo orienta os EUA à dominação das estruturas multilaterais existentes com o objetivo da obtenção de vantagens comerciais e políticas que possam promover a prosperidade do povo norte-americano. Esta teoria foi expandida após o final da chamada guerra fria para se tornar também cânone de segurança nacional daquele país. Como o sistema multilateral da OMC permite apenas uma larga vantagem hegemônica e não uma dominação econômica completa, os estrategistas americanos procuraram aproveitar-se dos pactos regionais de comércio para atingir o seu objetivo. De fato, segundo tal linha de raciocínio, não haveria lugar melhor para começar do que na América Latina, região definida pela Doutrina Olney, em prática ininterrupta pelos EUA desde o final do século 19, como sujeita a “direito hegemônico” daquele país [17]. Já em 1822, o embaixador Mexicano, Zozaya, escrevia a respeito dos EUA “Eles tem um profundo amor por nosso dinheiro, não por nós, e não conseguem celebrar um tratado de aliança ou comércio a não ser no seu direto interesse, sem nenhum pensamento de reciprocidade” [18]
.
14.2.- Este infame imperialismo norte-americano, às vezes denominado eufemisticamente de unilateralismo agressivo [19], tem crescido desde o ocaso da URSS, porque o desaparecimento da competição política trouxe a eliminação da auto-contenção, da parcimônia e da moderação no trato dos países em desenvolvimento, dos estados clientes e dos demais países. Assim, o mundo assiste estupefato à derrocada da ordem jurídica nas relações internacionais e a falência da transposição dos valores democráticos e do império da lei dos ordenamentos jurídicos internos para as relações entre estados soberanos. Mais ainda, o mundo testemunha um militantismo fundamentalista do exercício arbitrário das próprias razões nas relações internacionais pelos EUA, em detrimento da ordem jurídica e de princípios basilares do direito.
14.3.- Por outro lado, as negociações regionais são conduzidas pelos EUA com o único objetivo de aprofundar as vantagens comerciais e econômicas hegemônicas. Suas leis domésticas prevalecerão sobre qualquer acordo. Assim, a iniciativa da ALCA, sob a perspectiva econômica, seria um desastre para os países do Mercosul. Teme-se que o governo brasileiro, apesar de fortes reações da sociedade civil e do legislativo pátrio [20]
, tenha levado as negociações a um ponto muito adiantado, assumindo compromissos que comprometerão o futuro do País. Alguns agentes do governo brasileiro têm defendido o argumento falacioso de que como os países das Américas, em conjunto, representam os maiores parceiros comerciais do Brasil, uma não participação na ALCA teria o condão de alienar esta corrente comercial. Trata-se de um falso dilema. Basta negociar de maneira competente com todos, isoladamente ou em blocos específicos.
Senhoras e Senhores, muito obrigado.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).