Londres – Numa ominosa deliberação, imediatamente antes do início da Cúpula das Américas, realizada em Mar del Plata, Argentina, dias atrás, os advogados argentinos reunidos no III Congresso Nacional, em Rosário, aprovaram, por aclamação e por unanimidade, uma moção de repúdio à iniciativa da chamada Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Seguiu-se uma mobilização social sem precedentes, que foi o marco digno de nota da cimeira havida entre os 34 chefes de governo do hemisfério.
A iniciativa da ALCA foi promovida pelos Estados Unidos da América (EUA), na reunião de cúpula realizada em Miami em dezembro de 1994. Através dela, os EUA procuravam estender para o resto do hemisfério as vantagens comerciais sem precedentes que haviam extraído do México através de negociações desiguais conduzidas pela então corrupta e incompetente administração do país latino-americano.
Segundo os termos que formataram para a ALCA, os EUA manteriam seus escandalosos subsídios agrícolas praticados em valores superiores à produção agrícola conjunta de Brasil e Argentina, teriam acesso aos mercados de serviços dos demais países latino-americanos, enquanto manteriam os seus fechados, e promoveriam uma tarifa regional zero para produtos industriais.
Para os países sul-americanos, tal formatação seria altamente desastrosa. Os subsídios agrícolas americanos arrasariam com o setor primário do continente. A torpe equação de serviços impediria o crescimento do setor, enquanto a redução tarifária seletiva alienaria os parceiros tradicionais dos países sul-americanos, enquanto favoreceriam artificialmente aqueles industriais dos EUA. Note-se que os parceiros tradicionais são também as maiores fontes de investimentos e créditos para o continente.
Embora nada menos do que 32 dos 34 países a negociar tão tenebrosa iniciativa, formatada unilateralmente, fossem países emergentes, a estrutura da ALCA não contemplava meios e medidas para a promoção do seu crescimento econômico e desenvolvimento social, ao contrário por exemplo do que ocorre no âmbito da União Européia (UE), onde sempre houve uma preocupação, e ademais um histórico de sucesso, neste sentido.
De acordo com a sua tradicional insensibilidade e costumeiro egoísmo, os EUA acreditavam que a promoção do pérfido, bizarro e cruel jogo da soma zero, em que os ganhos de um são as perdas do outro, cujos resultados favoráveis seriam garantidos a seus agentes econômicos através das cartas marcadas, atenderia aos interesses daquele país.
Na realidade, as sórdidas intenções embutidas no abominável pacto foram, desde logo pressentidas pelas sociedades civis do hemisfério, que a ele se opuseram consistentemente por mais de uma década. Em alguns países essa visão iluminada das negociações veio a prevalecer como política de Estado.
Assim, em Mar del Plata, de um lado posicionaram-se os EUA, a promover o seu unilateralismo nas relações internacionais, a sua seletividade da prosperidade econômica e a exclusão social alheia. De outra parte, resistiram à agenda os países do MERCOSUL, Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, mais a Venezuela. Em posições diversas entre os dois pólos ficaram os demais países. Não se obteve consenso para a continuidade das negociações da ALCA.
Os países do MERCOSUL defenderam a prevalência do direito nas relações internacionais, da mesma forma que uma equação que promovesse a prosperidade coletiva e que atendesse para as assimetrias regionais e, bem assim, para a imperiosa necessidade de realizar o desenvolvimento econômico e social dos povos das Américas. De fato, maior contradição com a agenda dos EUA não poderia haver.
Alguns observadores procuraram veicular a propaganda dos EUA, no sentido de que o MERCOSUL e a Venezuela teriam se isolado no âmbito continental. Tais observações foram infundadas tanto sob uma perspectiva política quanto econômica. Na primeira delas, porque a rede de tratados regionais do MERCOSUL está a se adensar. Na segunda, porque os países do MERCOSUL representam mais de 75% da economia regional e seu comércio com os vizinhos é preponderante.
Assim, resulta claro que, com a anunciada morte da iniciativa da ALCA, sucumbiu igualmente a única política regional econômica que os EUA tiveram para o continente americano em mais de uma década. Que a única política econômica abrangente para a região, por parte da superpotência, tivesse tal formatação, tanto medonha quanto cruel, é um fato bastante preocupante. Que não tenham outra é lamentável, mas também um sinal de que os EUA não esperavam e não aceitarão facilmente a derrota sofrida.
As consciências públicas no âmbito internacional, regional e doméstico não tolerarão a utilização daquela velha arma do arsenal imperialista: a desestabilização dos governos dos países dissidentes. Por outro lado, ressurge o desafio da configuração de uma nova agenda de colaboração hemisférica, que seja fundada no direito internacional e promova os valores humanísticos reclamados pelos povos do sul.
Enquanto tal não ocorre, que a ALCA descanse em paz.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).