A resgatar, parcialmente, o papel histórico desses últimos empresários empenhou-se Elio Gaspari, no excelente trabalho “A Ditadura Escancarada” (Companhia das Letras, 2002), no qual relata o processo utilizado pelos algozes ditatoriais para a economia privada brasileira.
Naquele trabalho, Gaspari revela que o alvo político inicial pretendido pelas forças ditatoriais nos momentos que antecederam a decretação do Ato Institucional no. 5, em 13 de dezembro de 1968, foi o importante banqueiro, Walter Moreira Salles, “herdeiro de uma pequena casa bancária em Poços de Caldas, que fora embaixador em Washington no segundo governo de Getúlio Vargas e ministro da Fazenda do primeiro gabinete parlamentarista de João Goulart. Dono da União de Bancos Brasileiros, o quinto grupo financeiro do país, captava depósitos em 333 agências e aplicava sua influência a torto e a direita”.
Instado a praticar o arbítrio contra o banqueiro, ainda segundo Gaspari, o Ministro Delfin Netto aplacou seus senhores e “as pressões militares contra a plutocracia pedindo o confisco dos bens dos diretores de uma pequena fábrica de cigarros.” Aqui termina, quase numa nota de rodapé da importante obra supra mencionada, o relato de uma das maiores injustiças empresariais jamais praticadas em solo brasileiro e uma que maculará para sempre a consciência jurídica nacional.
A “pequena fábrica de cigarros” era a Fábrica de Cigarros Sudan S.A., então detentora de aproximadamente 25% do mercado de cigarros no Brasil e a maior empresa de capital nacional do setor. A empresa tinha uma vocação de grande responsabilidade social para a época, mantendo o principal hospital brasileiro de cirurgia cardíaca. Como tal, foi a pioneira das ações empresariais corporativas na América Latina. Suas políticas de relações humanas eram paradigmáticas de excelência no mercado de trabalho brasileiro.
O principal executivo da Sudan era o sr. Agostino Janequine, um filho de imigrantes italianos que sustentou a família e seus estudos vendendo jornais na cidade de São Paulo. Formou-se em economia e foi presidente do sindicato patronal da indústria do fumo e presidente do Sindicato dos Economistas do Estado de São Paulo. Era um homem de bem, que usufruia de merecido prestígio na comunidade paulista e brasileira.
Aqueles que bem se recordam dos tenebrosos tempos ditatoriais seguramente lembrar-se-ão que, no período, as disputas empresariais eram resolvidas na esfera política e as disputas políticas tinham sérias repercussões empresariais. Provavelmente pelos dois motivos, foi a Sudan individualizada para o papel de vítima sacrificial. O pretexto escolhido foi a posição fiscal da empresa.
Tendo a Sudan aceito uma tese tributárias proposta pelos então jovens e promissores advogados, drs. Ives Gandra da Silva Martins e José Carlos Graça Wagner, de uma nova e mais econômica metodologia de cálculo do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), sofreu ela a investida do absoluto e incontido poder ditatorial.
Nos termos da Portaria n° 1, de 1 de setembro de 1968, um ato meramente administrativo, sem portanto o due process of law, o devido processo legal, assinado pelo ministro Delfin Netto, “constatou-se” a fraude fiscal e decretou-se a prisão administrativa sumária dos diretores da Sudan, inclusive de seu presidente, Agostinho Janequine, por 90 dias. Determinou-se, ainda, sem a quantificação do alegado dano ao erário, a busca e apreensão e o confisco de todos os seus bens móveis e imóveis, inclusive moeda corrente, depósitos bancários e “quaisquer outros valores de propriedade das pessoas mencionadas” (sic). Nem o tribunal da santa inquisição, nem Adolf Hitler haviam ousado tamanho arbítrio. Os advogados dos diretores da Sudan sofreram constrangimentos diversos e acusações de co-autoria, por promoverem sua defesa.
O resultado de tal bárbara ação, na perspectiva institucional, resultou na submissão quase que total do segmento empresarial brasileiro aos desmandos da ditadura. Conforme lembrado por Gaspari, por cerca de 8 anos, as instituições empresariais brasileiras deixaram de fazer estudos econômicos. Muitos empresários brasileiros, emasculados, subalternos e pusilânimes, resignavam-se a um patético papel nas cerimônias de beija-mão dos poderosos.
Do ponto de vista dos diretores da Sudan e de suas famílias, bem como da obra assistencial mantida, a situação foi uma tragédia sem limites. O hospital deixou de funcionar, enquanto os indivíduos perderam todos os bens e foram vilificados, demonizados e denegridos perante a opinião pública, através uma imprensa amordaçada pela pesada mão da ditadura. As vitórias judiciais com respeito a todas as falsas alegações foram tardias e não repararam, como infelizmente ocorre com freqüência, os danos sofridos.
No centenário de nascimento de Agostinho Janequine (1904/1976), este grande homem e empresário brasileiro, pioneiro no País das ações corporativas de responsabilidade social, chegou a hora da reabilitação de sua memória.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).