Publicado em São Paulo, SP, Brasil, 22 de março de 2016.
Os chamados tribunais da Inquisição foram uma criação havida na baixa Idade Média, no século XIII, inicialmente estabelecidos com o objetivo de manter o poder das casas monárquicas absolutistas, mas foram rapidamente apropriados pela Igreja Católica, desejosa de manter o seu poder temporal e rivalizar com os braços seculares da sociedade. A Inquisição foi estabelecida na Espanha em 1478 , em Portugal, em 1531 e em Roma, logo após.
A Inquisição ficou conhecida na História como sinônimo de tirania, crueldade, violência, intolerância e iniquidade. Dentre suas vítimas estiveram, dentre milhares de infelizes anônimos, Galileu Galilei, Ignazio de Loyola, Giordano Bruno, o escritor brasileiro Antônio José da Silva e o Padre Antônio Vieira. Quando as ações da Inquisição intensificaram-se no Brasil, por volta de 1708, insurgiu-se contra ela Alexandre de Gusmão, em nome do progresso, da justiça e do interesse econômico e social da nação.
Com frequência, a Inquisição foi apoiada pelo peso da opinião pública dos países onde esteve instalada, principalmente quando manipulava os preconceitos raciais e religiosos contra os muçulmanos, os judeus e mesmo aos convertidos à fé católica. Os autos-de-fé, a execução das sentenças dos tribunais da Inquisição, tinham um apelo de mórbido divertimento público ao facultar a humilhação dos “condenados”, ou mesmo sua execução pública.
O saque das propriedades dos “condenados”, havidos nas judiações, permitia alguns pequenos ganhos econômicos à população em geral. Os grandes ganhos, contudo, cabiam aos inquisidores e às demais autoridades eclesiásticas. Muitos caíram vítimas da Inquisição ao recusar o pagamento de letras de câmbio sacadas contra eles por Inquisidores, em ações que caracterizavam a extorsão. Quando o Marquês de Pombal acabou com o cruel instituto em Portugal, por volta de 1750, seus apoiadores disseram que a Inquisição significava quatro “is”: a injustiça, a infidelidade, a ignorância e a indigência. Para Pombal, um iluminista, o despotismo da Inquisição, por sua violenta tirania, era pior do que o absolutismo.
Mas a Inquisição, como um pseudo-instituto jurídico, tinha também a sua processualística. O Manual dos Inquisidores, escrito por Nicolau Eymerich em 1376, revisto e ampliado por Francisco de la Peña em 1578, é o mais famoso código de normas, que foi publicado no Brasil com um rico e substancioso prefácio de Leonardo Boff1. O poder inquisitorial era o de “investigar, interrogar, convocar, prender, torturar e sentenciar.” De acordo com o Manual, o inquisidor se apresentava com poder apostólico, investido da autoridade papal ou mesmo como “um enviado de Deus”.
A probatória no processo da Inquisição era assentada sobre a tortura. “A tortura serve apenas como paliativo na falta de provas.” A confissão é o objeto principal do inquisidor e a tortura o seu instrumento. Há sete regras sobre a aplicação da tortura: 1) tortura-se o acusado que vacilar nas respostas; 2) tortura-se o suspeito contra quem há uma só testemunha; 3) tortura-se o acusado que tenha contra si um ou vários indícios; 4) tortura-se quem tiver contra si um único depoimento em matéria de heresia; 5) tortura-se aquele que tiver contra si vários indícios de culpa; 6) tortura-se quem, além de tudo, ainda tiver contra si o depoimento de uma testemunha; 7) tortura-se quem tiver contra si uma difamação cumulada com uma testemunha adversarial e um único indício. Em suma, no regime inquisicional todos podem ser torturados (Omnes torqueri possunt).
Como bem lembrou Leonardo Boff no referido prefácio, “ a confissão é tudo na Inquisição, não as provas, contrariamente ao senso do direito universal, pois, sabemos, a confissão pode ser extorquida sob coação.” O processo da Inquisição igualmente admitia testemunhas secretas e acusações anônimas, bem como prisões prolongadas sem culpa formada.
Segundo o Manual, são cinco as causas da demora dos processos e do atraso na promulgação das sentenças, a saber:
1) o grande número de testemunhas;
2) a participação da defesa;
3) a destituição do inquisidor;
4) a apelação;
5) a fuga do acusado.
O fato de se dar o direito de defesa ao réu também é motivo de lentidão processual. O Manual ensina que “ o papel do advogado é fazer o réu confessar logo e se arrepender, além de pedir a pena para o crime cometido.” Por outro lado, pairava sempre sobre a defesa a ameaça de que, quem direta ou indiretamente atrapalha o exercício da Inquisição é um forte suspeito de heresia, crime naturalmente sujeito à jurisdição do Santo Ofício. Ademais, o advogado não podia consultar o processo nem assistir aos atos interrogatórios.
A conclusão dos processos se dava mediante uma das treze maneiras elencadas, sendo a primeira a absolvição e as demais condenações diversas igualmente válidas para quem acolhe, defende, protege ou favorece a heresia ou os hereges. Admitia-se a condenação por confissão incompleta, ainda que obtida mediante pressão psicológica ou tortura. A apelação não era admitida nos processos.
Os procedimentos da Inquisição serviram para a afirmação do poder temporal da Igreja Católica, para o seu enriquecimento, para opulentar os inquisidores e para aterrorizar e intimidar o povo ( ut alii terreantur) mantendo-o sob controle absoluto, mas jamais para praticar a Justiça. Nos séculos que se seguiram, os mesmos preconceitos da processualística da Inquisição foram usados por ditaduras no mundo todo, para continuar a patrocinar a barbárie e a injustiça.
Felizmente, após a Carta da Organização das Nações Unidas de 1945, a Humanidade reafirmou os direitos humanos básicos e desenvolveu institutos de direitos universais e de suas respectivas garantias, que devem ser assegurados pela ordem jurídica democrática interna de seus membros. Neste sentido, a Convenção Internacional sobre Direitos Civis e Políticos inter alia veda em seu artigo 7 o uso da tortura ou do tratamento cruel, desumano ou degradante. Por sua vez, o artigo 9 proíbe a prisão arbitrária e determina que presos acusados sejam separados dos condenados. O artigo 14 determina que o acusado seja informado do teor do libelo e o 17 preserva a sua privacidade, honra e reputação de ataques arbitrários.
Com tais ações, o regime jurídico multilateral acabou com a noção de que nos dias de hoje se pode combater a presumida ilegalidade com a força, com a violência e com o arbítrio, ainda que em nome da justiça divina ou por outro motivo alegadamente messiânico. Pelo contrário, para a garantia de toda a sociedade e das suas instituições, e bem assim da ordem jurídica internacional, o ato presumivelmente ilegal deve ser combatido e punido dentro das normas do Estado de Direito, e somente através delas. O ordenamento legislativo brasileiro acolheu plenamente todos estes desenvolvimentos inclusive através das normas do devido processo legal.
Espera-se, nestes dias conturbados, que o Brasil não regrida às práticas de Torquemada.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).