Georgia Jordan

“Uma coisa que odiamos no jornalismo é legislação”. A frase é do jornalista Marcelo Beraba, ex-ombudsman da Folha de S. Paulo e atual presidente da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), e traz à tona uma questão pouco discutida no meio: a tendência entre veículos de imprensa de ignorar os aspectos jurídicos dos fatos, seja pela aversão de jornalistas ao “juridiquês”, ou pelo foco maior que dão ao sentimentalismo em coberturas como de crimes de grande repercussão.

Já nos conflitos internacionais, essa tendência é ainda mais evidente, com coberturas jornalísticas no Brasil dependentes de relatos superficiais das agências de notícias. Além disso, as notícias tendem a ignorar os tratados e convenções internacionais que regulam a guerra.

Conflitos recentes —como os entre Rússia e Geórgia, Israel e Líbano em 2006 e a “guerra contra o terror” dos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão— são exemplos marcantes dessa cobertura superficial. Acordos pós-queda da União Soviética que garantiam a autonomia das províncias georgianas de Ossétia do Sul e Abkházia, a ilegalidade do uso de bombas anti-pessoal, que não distinguem um civil de um combatente nos ataques de Israel ao sul do Líbano e notícias sobre as ocupações americanas no Iraque e da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) no Afeganistão se limitam a discursos oficialistas sem apurar o mérito legal das ações.

No caso do resgate da ex-senadora colombiana Ingrid Betancourt, seqüestrada pelas Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) em 2002 e libertada em julho deste ano, a operação de resgate do exército colombiano, que libertou 15 reféns dos guerrilheiros, foi considerada um enorme sucesso alardeado pela imprensa internacional. O êxito da “Operação Xeque”, no entanto, dependeu inteiramente de uma grave violação das normas da Convenção de Genebra, que regulamentou o Direito Internacional Humanitário, conhecido entre militares como Direito de Guerra, além de quebrar a própria legislação colombiana.

De acordo com o jornalista João Paulo Charleaux, ex-diretor de comunicação do CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha), as ações dos soldados no resgate constituíram crime de perfídia, já que eles se passaram por civis para conseguir acesso aos reféns. Um deles, inclusive, teria usado o símbolo da Cruz Vermelha. A notícia foi recebida com repúdio pela organização, uma vez que a atitude dos militares poderia prejudicar seu trabalho na região, mas foi pouco noticiada na imprensa mundial.

Direito de Guerra
O Direito Internacional Humanitário é um documento baseado nos tratados internacionais das Convenções de Genebra, que datam de 1864, e que deram origem à Cruz Vermelha e ao conceito de Direitos Humanos. Trata-se de um regulamento para a prática da guerra, que visa humanizar os efeitos dos conflitos armados, restringindo os meios (armas e munições) e os métodos de guerra (forma como as operações são conduzidas). O objetivo é proteger quem não está envolvido no conflito, o que inclui civis, feridos, combatentes capturados ou rendidos, médicos, organizações humanitárias e jornalistas, entre outros. Além disso, essas restrições buscam regulamentar o conflito também para quem participa diretamente da luta armada.

No caso da “Operação Xeque” na Colômbia, há divergências sobre se a estratégia do Exército constitui crime de perfídia. Este crime consiste em cometer um ato hostil com a intenção de enganar o adversário, sob a cobertura de uma proteção legal prevista pelo DIH (como é a Cruz Vermelha ou o jornalista), de acordo com o artigo 37 do Protocolo 1 de Genebra. O argumento empregado pelas autoridades colombianas é a de que a operação “não matou, portanto não houve baixa”. A alegação foi enfaticamente contestada por João Paulo Charleaux. “Foi sim (uma operação militar criminosa), não é abstração jurídica”, disse o jornalista.

Imprensa
Charleaux usa o exemplo colombiano para ilustrar os problemas da falta de informação de jornalistas sobre as regras da guerra. Para ele, as coberturas de conflitos bélicos na grande imprensa tendem ao sentimentalismo, pois se restringem a descrever apenas o clima geral da região em conflito. Ignora-se, portanto, o status jurídico da situação, como foi o caso da “Operação Xeque”, em que pouco ou quase nada se discutiu nos veículos de comunicação a respeito dos aspectos legais da conduta dos militares na libertação dos reféns.

O advogado Durval de Noronha Goyos Jr., árbitro do Brasil na OMC (Organização Mundial do Comércio) e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ), acredita que a parcialidade dos órgãos de notícia também contribui para essa deficiência nas coberturas de guerra. “A informação freqüentemente vira propaganda”, diz, em referência às agências de notícias internacionais, que produzem notícias com uma perspectiva etnocêntrica, sempre de acordo com o que favorece os poderes ocidentais.

“No caso de guerra, há sempre esta propaganda dirigida”, conta Noronha. Ele cita os casos da Ossétia do Sul e do Kosovo, em agosto e fevereiro de 2008 (muitos países, incluindo EUA e Reino Unido, reconheceram a independência do Kosovo, província reivindicada pela Sérvia, que conta com o apoio da Rússia). “A Rússia ainda é discriminada como um potencial inimigo estratégico do Ocidente”, explica o advogado.

O jornalista Marcelo Beraba, além de comentar a cobertura de conflitos internacionais, falou de diversos temas que têm pautado a agenda nacional recentemente, como os casos de corrupção no futebol, a crise econômica do sistema financeiro, a exploração do petróleo da camada do pré-sal e a desestatização do sistema de telefonia brasileiro. “Todos esses assuntos terminam em legislação”, segundo o jornalista. “A lei faz parte do mundo real,” diz Durval de Noronha, “e o bom jornalista sempre se atém à lei”.