São Paulo – Como parte do longo e oneroso processo de acessão à Organização Mundial do Comércio, que ocorreu em 11 de dezembro de 2001, após 15 anos de árduas negociações, a República Popular da China mudou mais de 9 mil leis e regulamentos de leis, com o objetivo de adaptar o ordenamento jurídico doméstico aos aceitáveis critérios internacionais. Este processo de atualização legislativa, que é na realidade contínuo, foi e é levado a efeito de uma maneira eficiente e os resultados têm sido altamente positivos.
No entanto, uma das áreas em que a atualização era necessária, e está por ocorrer, é a pertinente ao conflito de leis. Como é sabido, o conflito de leis é a aplicação extraterritorial das leis de um Estado noutro. Em muitos países, como na América Latina e na UE (União Européia), há uma lei ou um tratado a regulamentar esse importante fenômeno jurídico para um mundo de crescentes inter-relações pessoais e empresariais em âmbito internacional.
No Brasil, por exemplo, a importante matéria é objeto da chamada Lei de Introdução ao Código Civil, ou Decreto-Lei 4657, de 4 de setembro de 1942. Na UE, a questão é objeto dos tratados de Bruxelas e de Lugano sobre o conflito de leis, de consulta quase que quotidiana para os profissionais do direito, em virtude da grande internacionalização das atividades naquele bloco.
Contudo, na China a matéria não se encontra consolidada num único diploma legal, mas sim esparsa em várias leis e decisões jurisprudenciais, a partir de 1986, com a adoção do Código Civil, apenas dez anos após o término da Revolução Cultural. O Código de Processo Civil de 1991 também traz algumas normas sobre conflitos de leis, da mesma forma que a Lei de Contratos da China de 1999.
Acresce que a Corte Suprema do Povo emitiu em 1988 suas “Opiniões sobre Diversas Questões a respeito da Implementação dos Princípios Gerais de Direito Processual Civil”, que contribuiu para esclarecer alguns pontos obscuros na legislação esparsa e bem assim estabelecer diretrizes para as cortes de hierarquia inferior.
As leis processuais chinesas permitem a eleição de um foro, nacional ou estrangeiro, bem como as partes de um negócio internacional de natureza econômica, comercial, de transporte ou marítima de eleger uma cláusula de arbitragem no respectivo contrato. No entanto, como o conceito de incompetência de foro, forum non conveniens, ainda não foi plenamente acolhido no ordenamento processual chinês, há dificuldades para a afirmação de uma eleição de foro nos tribunais chineses.
Por outro lado, o Código de Processo Civil da China, ex vi de seu artigo 34, expressamente atribui à exclusiva jurisdição dos tribunais chineses quando uma propriedade imobiliária for localizada na China; quando a questão decorrer de operações portuárias; e quando a matéria for relativa à sucessão causa mortis.
Mais ainda, o artigo 246 do Código de Processo Civil chinês determina a exclusiva jurisdição dos tribunais chineses em matérias pertinentes a parcerias societárias ou contratuais ou ainda em contratos de exploração e desenvolvimento de recursos naturais.
Tanto o Código Civil de 1986, como a Lei de Contratos de 1999 da República Popular da China, reconhecem o princípio legal da autonomia da vontade e, assim, permitem as partes num contrato de eleger a lei de regência das respectivas obrigações e de seu adimplemento.
Contudo, tal autonomia é limitada e a eleição de lei estrangeira, que deverá ser feita necessariamente por escrito, poderá ter sua nulidade declarada se feita em contrariedade às normas de ordem pública e social da China.
Na ausência de uma cláusula de eleição de leis, aplica-se o princípio da “relação mais próxima”. Como o termo não é definido por lei, serão aplicáveis os critérios da opinião da Suprema Corte do Povo, supra mencionada, que tratam de forma diferenciada os diversos contratos.
Por exemplo, um contrato para a venda internacional de mercadorias, a “relação mais próxima” será com a jurisdição do comprador, se o negócio foi concluído em seu escritório, de acordo com suas especificações. Para um contrato de serviços, a jurisdição será aquela em que os mesmos foram prestados.
Há diversos esforços no momento para racionalizar a legislação chinesa de regência sobre conflito de leis num único diploma legal. Espera-se para um futuro próximo evoluções nessa importante área. Entretanto, os profissionais do direito e agentes empresariais com atuação na República Popular da China deverão ter em conta as idiossincráticas normas atuais.
Quarta-feira, 3 de setembro de 2008
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).