A etapa actual é, essencialmente, dominada pelo Programa do Genoma Humano.
O seu principal objectivo é estabelecer uma carta genética que cubra a integralidade do genoma e permita identificar os genes responsáveis por todas as doenças genéticas.
Penso que a ciência nunca trouxe à colação oportunidades e problemas de tal magnitude e complexidade.
A descoberta do genoma humano abrirá uma nova era na investigação da natureza, estrutura e funções dos genes.
Poderemos compreender qual o papel dos factores genéticos numa multiplicidade de doenças – como o cancro, Alzheimer e a esquizofrenia – que afectam a vida de milhões de pessoas e, assim, facilitar a sua cura.
Será, também, viável definir a identidade individual com uma exactidão sem precedentes e com detalhes até agora impossíveis.
Estes avanços científicos vão acarretar benefícios incontáveis. Trata-se nada mais nada menos que do futuro do Homem.
Assistimos ao terceiro grande marco da história da Humanidade, depois do fogo e da roda.
Efectivamente, a descoberta do genoma humano, conjunto de genes nucleares responsáveis pela transmissão dos caracteres hereditários e localizados nos cromossomas, ao permitir o acesso à totalidade do nosso material genético, equaciona a grande aposta do século XXI.
Os testes genéticos permitem já diagnosticar, com bastante antecedência, a doença de Alzheimer, fibrose quística, Tay Sachs, Lou Gehrig, hemofilia, talassémia, a Coreia de Huntington, etc. A sua utilização permite identificar as pessoas com risco de padecer de uma enfermidade concreta, bem como, a maior ou menor probabilidade de a transmitir à descendência.
É já possível conhecer o amanhã: o destino, a sina, o futuro que se adivinhava na palma da mão passa a verdade cientifica quando se investiga a profundidade do genoma.
Com inúmeras vantagens, como é lógico, mas também, com muitas interrogações a perfilarem-se no horizonte.
Felizmente, o Homem controla o destino quando cura doenças resultantes das fatalidades da hereditariedade .
A análise do genoma possibilita detectar genes responsáveis por certas enfermidades como a Coreia de Huntington ou a muscoviscidose e, ainda, predisposições para o desenvolvimento de determinados tipos de cancro ou para a doença de Alzheimer.
Logo que o mapeamento e a sequenciação do genoma se completem, a biologia molecular do Homem iniciará uma nova fase. É viável que se encontrem genes cuja interacção se exprima em diferentes comportamentos, e que estejam relacionados com capacidades intelectuais, volitivas, religiosas, criminosas, etc.. O conhecimento, mais pormenorizado, da função desempenhada pelos genes nessas características poderá modificar as nossas atitudes face a nós próprios e aos outros.
E, em certos casos substituirá a dúvida se escolhemos livremente, como pensávamos, ou se fomos determinados por motivações decorrentes dos genes que possuímos.
Desta forma, toda a problemática da liberdade de escolha e da responsabilidade moral tem de ser repensada.
A ciência poderá revelar que, em diversos aspectos, somos geneticamente mais iguais do que pensávamos. Assim sendo, igualdade de oportunidades na área da formação adquirirá uma relevância dramática na perspectiva da justiça social, por se tornar determinante do nível a alcançar pela pessoa.
Contudo, é provável que, em muitas outras situações, se chegue à conclusão que somos geneticamente mais diferentes do que julgávamos.
Nessa hipótese, podemos deparar com novas modalidades de eugenismo.
A hominicultura, quando orientada para certas finalidades, tende a conduzir a resultados bastante pejorativos ao possibilitar determinar, de modo precoce, características hereditárias das pessoas antes que se cheguem a revelar. Pode configurar um instrumento de ilegítima discriminação, nomeadamente em questões laborais, empréstimos bancários, contratos de seguros , etc. .
Da democracia pode passar-se à genomacracia com as entidades bancárias e as companhias de seguros a procurarem saber o tempo de vida que resta aos seus clientes.
As companhias de seguros ou as entidades patronais poderão ter acesso a diagnósticos genéticos relativos aos seus potenciais segurados ou empregados e "agrupá-los" em classes biológicas em função dessa análise? [1]
Em sede de direito do trabalho e numa comunicação subordinada ao tema: Os Direitos Fundamentais na Europa. Testes Genéticos no Local de Trabalho – Uma Perspectiva Jurídica que apresentei no Congresso do Groupe Européen d´ Èthique des Sciences et des Nouvelles Technologies auprès de la Comission Européene adiantei, elaborei uma proposta de legislação para a problemática das repercussões dos novos testes genéticos no contrato de trabalho. A principal questão que já se coloca actualmente em diversos países é a de saber se o trabalhador tem o dever de revelar a informação que detém sobre a previsibilidade da sua saúde futura e a entidade patronal tem o direito de exigir que o candidato ao emprego ou o trabalhador se submeta a testes genéticos predizentes para efeitos de selecção ou de despedimento. A decisão final do empregador teria por base não uma incapacidade actual (pessoas presentemente aptas) mas, uma mera predição de doenças futuras ou predisposições [2].
Por sua vez, a nível dos seguros de vida ou de saúde está latente um conflito de interesses entre, por um lado, o segurando e, por outro, a companhia de seguros: o primeiro pretende fazer um seguro sem ter de se submeter a testes genéticos predizentes; a segunda quer obter o maior número possível de dados sobre a saúde actual e futura do segurando para proceder ao calculo dos prémios ou, mesmo, recusar fazer o seguro em função dos riscos de saúde.
As indiscutíveis vantagens trazidas pela ciência vieram, desta forma, suscitar algumas dúvidas e inquietações, nomeadamente no domínio dos seguros pessoais que chamo, hoje, aqui, à colação: o potencial segurado ao saber que padece de uma doença genética ou tem uma predisposição para determinada enfermidade poder-se-á sentir aliciado a "esconder", sonegar esses dados e contratar com a companhia valor excessivo para seu beneficio ou de terceiros. Assim, os segurandos poderiam utilizar os testes genéticos para preverem as suas necessidades de cobertura e, aproveitarem-se, indevidamente do sistema de seguros.
Enquanto grupo, estes indivíduos têm maior probabilidade de adoecer e/ou morrer e, consequentemente, onerar as seguradoras com indemnizações que excedem largamente os prémios pagos. Se um número elevado de pessoas subscreverem seguros sob estas condições, as companhias terão que elevar os prémios, forçando os "pequenos" segurados a desistirem dos seguros. A médio ou longo prazo, as consequências negativas deste ciclo vicioso darão origem a uma diminuição da procura, podendo, até, levar a falência algumas seguradoras.
Por seu turno, a lógica dos seguros da origem a efeitos tão nocivos como poderosos. É predominantemente desigualitária, obtendo o melhor partido da clientela rentável, suprimindo os segurados com riscos e, na prática, aumentando os excluídos .
Deste modo, as seguradoras serão tentadas, por razões económicas, a tirar partido dos genes de susceptibilidade para o cálculo dos prémios respectivos ou mesmo para recusar celebrar o contrato.
Considero indispensável a elaboração de um regime jurídico do contrato de seguro que comporte uma distinção entre as denominadas doenças monogénicas (A) e as simples predisposições para enfermidades que só se manifestarão em determinadas condições ambientais (B).
Nas monogénicas existe uma certeza quase absoluta que a doença se manifestará; só há incerteza relativamente ao momento (quando) da sua revelação. Pelo contrário, nas predisposições para enfermidades que só se concretizarão em determinadas condições de ambiente não só o momento do seu aparecimento é incerto, como também o é o próprio facto de que a enfermidade, na realidade, se manifeste.
Por outro lado, nas predisposições o interessado pode tomar medidas para impedir o surgimento da doença. Por exemplo, mudando alguns hábitos alimentares. Ao passo que nas monogénicas a única possibilidade de reacção da pessoa geneticamente afectada é a sua mentalização, preparação psicológica .
Nas monogénicas como há uma probabilidade de cerca de 100% de que a doença se vai manifestar posteriormente, sendo apenas uma questão de mais ou menos tempo, parece-me legítimo que a companhia de seguros tenha o direito de exigir que aquele se submeta ao teste. Pois não é possível esquecer que já é prática corrente o potencial segurado ter de se sujeitar a exames médicos (sobre a saúde actual) antes da celebração do contrato sem que isso seja posto em causa.
No que concerne ao dever de informação igual argumentação pode ser carreada. O segurando não pode mentir, omitir, falsear, esconder que padece de enfermidade monogénica. O não cumprimento deste dever dá lugar à invalidade do negócio .
A par dos tradicionais experts em fuga ao fisco surgirá uma nova classe de "peritos" especializados em "esconder" às seguradoras os seus defeitos genéticos.
O direito à privacidade não pode justificar a ma fé do segurando. O princípio da boa fé deve presidir ao contrato de seguro. As partes têm deveres de lealdade a cumprir.
Além de que, os actuais questionários das companhias são cada vez mais completos e detalhados [3], de tal forma que o dever de declaração do segurando se transformou num dever de resposta na medida em que tem de responder às perguntas equacionadas com verdade, sem reservas e sem omitir ou desvirtuar nenhum dado, tendo sempre em consideração que estas declarações constituem a base que a seguradora examina e estuda para uma adequada apreciação do risco.
Assim, não encontro razões que justifiquem a criação de um regime jurídico privilegiado das doenças monogénicas (que, volto a frisar, quase de certeza absoluta se vão concretizar), relativamente às restantes enfermidades (inclusivamente genéticas) que já são há muito tempo "penalizadas" pelas companhias.
Se as seguradoras não puderem exigir que o segurando se submeta a estes exames ou se não existir um dever de informação sobre o estado de saúde, o segurando que tiver realizado previamente o teste poder-se-á aproveitar desse facto e contratar prémio excessivo.
Situação diametralmente oposta diz respeito as predisposições genéticas para doenças que só surgirão em determinadas condições ambientais. Nestas hipóteses, defendo que prevalecem os direitos dos segurandos.
Desde logo, é viável argumentar que as predisposições genéticas são meras probabilidades. A interacção entre os diversos genes envolvidos não foi suficientemente investigada de modo que não se pode afirmar com segurança que determinada enfermidade se irá concretizar. E mesmo que se manifeste não é possível prever quanto tempo vai demorar até que isso aconteça. E, não se pode saber qual o grau de gravidade com que se vai exteriorizar, pois depende de caso para caso.
Há todo um conjunto de factores, incluindo os ambientais, que podem exacerbar ou minimizar essas predisposições. Por exemplo, a idade, o sexo, a alimentação, os medicamentos, o stress, o tabaco, o consumo de drogas e/ou de álcool desempenham, frequentemente, um papel fundamental nesta área.
Ao interesse da companhia de seguros de excluir ou limitar certos riscos, contrapõe-se, desde logo, o interesse do potencial segurado em preservar a sua privacidade. A revelação da sua constituição genética é, por vezes, desvantajosa para o próprio não só por proporcionar condições de seguro desfavoráveis, como, também, pela possibilidade de revelar a terceiros dados do seu foro íntimo. Toda a pessoa deve ter o direito de conhecer os elementos de investigação médica que lhe digam respeito e em paralelo o direito de preservar o conhecimento desses dados exclusivamente para si numa concepção mais ampla de privacidade.
A sujeição a um exame genético pode pôr em causa direitos de personalidade. É necessário reconhecer a existência do já chamado direito a não saber. Este direito, também, denominado de direito à autodeterminação informativa, consagra que compete apenas ao próprio decidir se quer ou não conhecer o seu mapa genético. Há pessoas que preferem não saber para não viverem aterrorizadas com algo que até nem é certo acontecer.
O indivíduo que se sujeitou ao teste ao tomar conhecimento das suas características genéticas pode ficar com profundas perturbações do foro psíquico e viver num estado de permanente "stress".
Subsiste o perigo dos médicos que trabalham para a companhia seguradora violarem o segredo medico a que estão adstritos e revelarem os resultados das análises.
E uma vez violado o direito à confidencialidade há hipótese de, por abuso ou negligência, terceiros acederem a essa informação do foro estritamente privado.
Acresce ainda que o direito à saúde é reconhecido internacionalmente como um direito social fundamental.
No entanto, a efectividade deste direito esta intimamente dependente da acessibilidade financeira dos cuidados de saúde.
As companhias de seguros ao pretenderem usar simples predisposições genéticas como instrumentos de discriminação ameaçam perigosamente este direito.
O acesso à saúde está, muitas vezes, dependente destas entidades. Assim sendo, as companhias tem um papel social importantíssimo a desempenhar.
E as predisposições não podem dar origem a tratamentos médicos diferenciados ou, mesmo, a situações de exclusão.
As consequências sociais negativas do conhecimento das predisposições genéticas do segurando ou segurado (exemplo, rejeição do seguro ou agravamento do prémio) são ainda mais gravosas pelo facto de se assistir a um progressivo aumento da necessidade de realizar seguros de vida, saúde, etc.
Se se mantiver a tendência internacional para reduzir os fundos públicos da segurança social e simultaneamente aumentar a interacção entre o emprego e o seguro privado as pessoas tornam-se, cada vez mais, dependentes deste sistema .
A eventual consagração de um direito das seguradoras exigirem o teste genético poderia conduzir à criação de classes genéticas de insegurados, com todas as consequências que logicamente daí decorreriam. A passividade do ordenamento jurídico determinaria a rendição do direito ante um novo culto da desigualdade.
A rotulação e decorrente categorização da pessoa em função dos genes configura inconcebível forma de discriminação.
Como escrevi no meu livro Direito ao Património Genético [4] , quando hoje, por exemplo, se fala em "direito à diferença", pode, desde logo, definir-se ao lado do "direito à saúde", o "direito à doença" que não permita qualquer discriminação por razões de inferioridade física. Só nesta linha se pode evitar o risco da criação de "classes biológicas" com reflexos inevitáveis na obtenção de seguros, créditos, empregos e noutras formas de relacionamento e participação na vida em sociedade.
O teste genético ao determinar que uma criança virá a padecer de doença incurável, aos 30, 40 ou 60 anos, suscita inúmeras questões, designadamente as repercussões do conhecimento desse facto na sua vida.
Como tratará a sociedade os indivíduos que nesses exames revelem predisposição genética para certas enfermidades? Serão marginalizados?
E, como já referi, se, apesar de possuírem essas características constantes do diagnóstico, estas, na pratica, por razões exógenas como o ambiente familiar, trabalho, etc., nunca se chegarem a manifestar?
Os políticos e outras figuras públicas terão que colocar à disposição da sociedade o seu "curriculum genético"?
As pessoas serão avaliadas mais pelos genes que têm do que propriamente por aquilo que são e que fazem?
Seres humanos "etiquetados" pelos genes?
Da democracia pode passar-se a genomacracia.
Será a mãe de todas as revelações reconstruir o Homem por dentro do genoma.
Não estaremos envolvidos numa mecânica própria, com efeitos preversos, na medida em que somos deuses, senhores e actores da nossa existência e simultaneamente escravos e espectadores do futuro por nós traçado?
Uma civilização com outras temáticas ?
É, sem dúvida, o desafio superior, "a grande aposta" do novo milénio.