DUBAI – Em nenhum lugar do mundo, e sem precedentes históricos, a engenharia social chegou ao patamar existente nos Emirados Árabes Unidos (EAU), este pequeno país situado ao sul do Golfo Árabe.
Confrontada com o iminente esgotamento de suas reservas de petróleo, já há cerca de duas décadas, a liderança do país desenvolveu um plano estratégico de crescimento econômico, que contemplou a criação de um enorme centro de serviços.
Esse pólo seria concentrado na área financeira, com a fundação de novos bancos e atração de grandes instituições financeiras internacionais para a nova praça; no setor comercial, com vendas e re-exportação de mercadorias a preços mais baixos devido ao perdão fiscal; e no turismo, com a criação de uma infra-estrutura hoteleira.
Para o centro financeiro, a abundância de capital nacional e regional serviu como atrativo para a instalação de muitas instituições, inclusive do Banco do Brasil, que está prestes a inaugurar em Dubai um escritório de representação.
Ao redor dos bancos, diversos serviços foram instalados, como os de consultoria, auditoria e legais, para além dos de engenharia. Também foi instalado um centro de arbitragem, indispensável para países com déficit democrático.
No setor comercial, empresas de todo o mundo colocam, nos EAU, os seus produtos para vendas livres de impostos aos turistas comerciais. Entrepostos enormes, como o chinês, foram construídos. Marcas de todos os rincões são ali encontradas a preços cerca de 30% abaixo daqueles praticados internacionalmente.
Para abrigar os grandes contingentes do turismo comercial, foram construídos alguns dos mais modernos e eficientes hotéis do mundo, com restaurantes de grande categoria internacional. Os demais serviços do setor são igualmente de primeira grandeza, a começar pelo aeroporto internacional, um dos mais modernos do mundo.
Como resultado, os EAU livraram-se da dependência às exportações de petróleo, que foram superadas pelo setor de serviços na composição do PIB, o qual por sua vez tem crescido a cerca de 10% ao ano, tendo atingido um patamar de US$ 130 bilhões, para uma população de, aproximadamente, 6 milhões de habitantes.
Não se deixe de lembrar que tal conquista foi impulsionada por maciços subsídios diretos e indiretos, dentre eles a renúncia fiscal. Tais subsídios são inconsistentes com a ordem multilateral da Organização Mundial do Comércio, organismo ao qual os Estados da região deverão aceder com o tempo.
Aqui chegamos a um dos pontos problemáticos da experiência dos EAU. Para a expansão do setor de serviços, a imigração foi encorajada. Cerca de 80% da população do país é composta de imigrantes vindos de diversos países. A língua franca local é o inglês.
Se essa característica de transposição do Estado nação dá um caráter cosmopolita à experiência dos EAU, substancialmente reduzindo o chauvinismo, os radicalismos e bem assim promovendo a tolerância, de outro lado, o regime jurídico brutalmente discriminatório de tais contingentes populacionais promovem uma nova servidão.
De fato, os imigrantes não adquirem a cidadania. Se vêm a perceber menos que um certo patamar, não podem trazer suas respectivas famílias, o que ocorre na vasta maioria dos casos. Se têm filhos, também estes não adquirem a cidadania. Vivem todos sob o constante pesadelo da insegurança, pois podem, em tese, ser expatriados a qualquer momento.
Para funcionarem no setor de serviços, os imigrantes necessitam pagar uma taxa parasitária a um cidadão dos EAU, o seu patrocinador. O direito de propriedade é muito restritivo aos imigrantes. As normas trabalhistas não conferem uma mínima condição de garantia aos trabalhadores. O acesso à prestação jurisdicional do Estado é precário.
Politicamente, os EAU são uma ditadura extremada, já que 80% de sua população encontra-se sob o anacrônico regime da servidão e os restantes 20%, embora cidadãos beneficiados pela ordem econômica, sujeitam-se ao arbítrio de uma pequena oligarquia. É certo que o regime impõe aos oligarcas o dever da chamada “shura”, ou consulta, mas esta é informal e não é conduzida pelo voto universal.
A longo prazo, apresenta-se insustentável o regime de engenharia social construído nos EAU, pois atentatório aos direitos humanos e à dignidade da pessoa. Assim, a evolução para a democracia e para o Estado de Direito será indispensável para a sustentação do notável progresso econômico atingido no país. Então, o experimento ter-se-á justificado.
Durval de Noronha Goyos é colunista de Última Instância e foi a Dubai (Emirados Árabes Unidos) como enviado especial.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).