Prefácio do livro A História da Literatura Erótica e meus Contos Malditos, Rio de Janeiro, 18 de fevereiro de 2018.

O projeto inicial deste livro contemplava apenas uma modesta seleção de contos eróticos, na qual as atividades sexuais apareceriam dentro de um contexto social maior, de maneira a dar um aspecto mais realista às respectivas histórias, utilizando o humor, sempre que possível. Do total de nove contos, sete são inéditos e um deles, “Otavianinho do Som”, foi objeto de censura por uma revista ligada a uma academia de letras, por ter conteúdo e vocabulário “forte e incompatível com os valores e padrões morais do povo brasileiro” (sic). Pretenderam os representantes daquela entidade que fosse suprimido o conteúdo “forte”, ou então que o conto fosse substituído por outro, mais condizente com seus critérios.
A exigência, claramente inaceitável, provocou a saída do Autor da referida associação e ensejou a inserção, nesta obra, de um capítulo a tratar da história da literatura erótica. O objetivo do referido capítulo é demonstrar que o gênero existe há milhares de anos e grandes autores da literatura mundial na mesma senda caminharam com brilhantismo, não obstante a sistemática perseguição movida por intolerantes e fanáticos de todos os tipos. Um destes autores, em particular, o escritor peruano Mário Vargas Llosa, chegou mesmo a declarar numa recente entrevista a um importante jornal espanhol que “sem erotismo, não há grande literatura”.
Produziram literatura erótica grandes escritores como, por exemplo, o Imperador Chien Wen, da Dinastia Liang, na China; Homero, Platão e Safo de Lesbos, na Grécia; Catulo e Ovídio, em Roma ; Ganjavi, na Pérsia; al Nefzawi, no mundo árabe; e durante o Renascimento, Bocaccio, Aretino e Fortini, na Itália; Gil Vicente, em Portugal; Rabelais em França; e Shakespeare, na Inglaterra, dentre outros. No Brasil do século 17, o grande poeta brasileiro, Gregório de Matos Guerra, dedicou-se ao gênero com brilhantismo. No século 18, Portugal testemunhou o gênio de Bocage, da mesma forma que Goethe, na Alemanha, que também celebrou a sensualidade, num livro que foi publicado apenas postumamente.
No século 19, Flaubert e o poeta Baudelaire escreveram obras eróticas, da mesma forma que o extraordinário Aluísio de Azevedo, no Brasil, e Gabrielle D’Annunzio, na Itália, que foi um ídolo nacional. No século 20, desenvolveu-se bastante bem a literatura erótica até mesmo em países mais conservadores como nos Estados Unidos da América (EUA), onde despontou Henry Miller, dentre outros autores, e mesmo em Portugal, com o genial Miguel Torga. Na Itália, destacou-se o grande escritor e notável jornalista, Alberto Moravia; na Inglaterra, D.H. Lawrence; e em França, Anaïs Nin.
Foi certamente a literatura fantástica, sensual e erótica, que projetou alguns dos maiores escritores brasileiros e latino-americanos do século 20, com merecido sucesso internacional: o poeta Pablo Neruda, no Chile; Gabriel Garcia Marques, na Colômbia; Mario Vargas Llosa, no Peru; e Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Hilda Hist, Caio Fernando Abreu e João Ubaldo Ribeiro, no Brasil, dentre muitos outros. Estes autores inseriram, em suas obras, a sensualidade num contexto histórico, político e social atinente à região da América do Sul, para além de seus respectivos países.
Portanto, é de causar estupefação um movimento de tentativa de censura moral à literatura erótica num país naturalmente multicultural, para além de sensual, como o Brasil. A perplexidade decorre não apenas de nossas origens étnicas, históricas e de nosso clima, mas também do ordenamento jurídico brasileiro, que incorpora as normas internacionais a assegurar a liberdade de expressão como um dos direitos fundamentais, da maneira que faz a própria Declaração Universal sobre Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1948.
A liberdade de expressão é um termo genérico que compreende a liberdade de opinião, a liberdade da imprensa, de acesso à informação, de associação, pensamento, consciência, opção política e religião. É certo que a liberdade de expressão tem limites assentados e limitados por lei, todas as vezes em que é abusada, como na apologia ao crime, na prática de ilícitos penais, e também, como ocorre hoje frequentemente, no discurso de ódio. Esse se manifesta na disseminação de ideias de superioridade racial, de intolerância às diferenças culturais, de discriminação de gênero e de orientação sexual ou, ainda, na violência pelo exercício arbitrário das próprias razões ou opiniões.
Hoje, o discurso de ódio, frequentemente manifestado pela Internet, mas não apenas, é usado de maneira a restringir, ilegalmente, a liberdade de expressão em suas manifestações lícitas. O discurso de ódio é uma manifestação de intolerância alimentada quase sempre pelo fanatismo religioso ou político, que vem nas mais das vezes cumulada com a ignorância e a arrogância. Voltaire, o sábio que foi também um grande filósofo iluminista via a tolerância como “o apanágio da Humanidade”. Ele, por sua vez interpretava todo fanatismo como decorrente da superstição, que leva o seu agente a trocar a própria loucura pelo delito.
Segundo Voltaire, uma vez que o fanatismo gangrenou um cérebro, a doença se torna incurável. O seu livro, “Tratado sobre a Tolerância”, se tornou novamente uma obra mais vendida na França mais de duzentos e cinquenta anos após sua publicação original, por conta dos incidentes terroristas envolvendo a publicação Charlie Hebdo. O seu “Dicionário Filosófico”, uma obra de grande importância e de leitura altamente recomendável, também trata da referida temática. De fato, o fanático é essencialmente um intolerante, mas nem sempre um intolerante é um fanático, às vezes ele é apenas medíocre. Veja-se, neste sentido, a obra de Amós Oz, “Como Curar um Fanático”.
Da mesma maneira, o filósofo Immanuel Kant desvinculou o seu pensamento ético e epistemológico de toda vinculação com normas transcendentes de caráter religioso, promovendo ao contrário a moral sem fé, no que se aproximou consideravelmente dos iluministas. Kant dedicou duas de suas obras ao tema: “A Metafísica dos Costumes” e “Antropologia Pragmática”, datadas de 1797 e 1798, respectivamente. Nelas, ele introduziu o conceito de respeito à dignidade do próximo como uma virtude, a qual deveria ser praticada com o caráter de dever.
Frequentemente, o fanático tenta impor suas próprias razões a terceiro(s) pela violência emanada do discurso de ódio, pela intimidação direta ou, ainda, indiretamente pelo clima generalizado e institucionalizado de pavor. Ao fazê-lo, o tresloucado ataca a liberdade de pensamento e a liberdade de expressão. A motivação de suas agressões é quase sempre religiosa, de falsa moral ou ainda política, e tende a se radicalizar sempre que seu intento não é obtido, o que leva o fanático a aumentar de maneira não apenas habitual, mas também crescente, a violência de seus atos.
Refletindo uma maior percepção humanística do fenômeno, a tendência é clara no sentido da evolução da legislação internacional de regência para coibir o discurso de ódio e de suas manifestações, inclusive naquilo em que afeta o direito de expressão. Menciono apenas algumas das muitas manifestações desta evolução: a Convenção Europeia sobre Direitos Humanos; a Convenção Interamericana de Direitos Humanos; e a Carta Africana sobre os Direitos Humanos e da Cidadania.
O discurso de ódio e suas intimidações, alimentadas pelo fanatismo, levaram a censura a uma nova dimensão. Esta velha prática execrável, teve início com a intolerância religiosa e foi institucionalizada pelos Estados imperialistas em suas colônias. Subsequentemente, a censura foi aplicada pelos regimes ditatoriais contra o seu próprio povo e também àquele de suas conquistas. No dia 10 de maio de 1933, de triste memória, as autoridades nazistas alemãs levaram a efeito a maior queima de livros da história, esvaziando o acervo das principais bibliotecas do país. Um dos autores com obras apreendidas e incineradas, o poeta Heine, havia escrito ominosamente décadas antes que “ali onde se queimam os livros também os homens serão queimados”.
O regime fascista italiano não apenas exerceu a censura e a apreensão de livros, mas também a distribuição de obras com real, percebida ou imaginada ideologia marxista, os quais eram submetidos a sequestro. O regime tentou até mesmo influenciar o conteúdo dos romances. O ministro da cultura popular de Mussolini, Dino Alfieri, determinou despudoradamente aos escritores pátrios: “os assassinos não podem absolutamente ser italianos e não podem, de qualquer forma, fugir da justiça.” Até mesmo o grande Alberto Moravia teve obras apreendidas, foi proibido de publicar em seu país e, como consequência, partiu para o exílio.
O mesmo fenômeno ocorreu na América Latina, no Estado Novo, Jorge Amado teve centenas de exemplares apreendidos do seu romance “Capitães de Areia” queimados em praça pública. A ditadura militar brasileira instalada em 1 de abril de 1964 promoveu não apenas a censura, mas a concentração editorial em mãos ideologicamente confiáveis. Dentre os autores proibidos estiveram Caio Prado Jr., Darcy Ribeiro, Plínio Marcos, Oduvaldo Viana Filho, Nelson Werneck Sodré, Luiz Alberto Moniz Bandeira, Márcio Moreira Alves, José Serra e Fernando Henrique Cardoso. Também o contista Rubem Fonseca e os romancistas Ignácio de Loyola Brandão, Renato Tapajós e Cassandra Rios tiveram obras proibidas e/ou apreendidas.
Em Portugal, no período sombrio do salazarismo, a censura proibiu até mesmo grandes autores e lançou às trevas grandes talentos lusos, como o magnífico Miguel Torga, recipiente do Prêmio Camões, o qual a respeito escreveu “numa época em que tantos portugueses de carne e osso emigraram por fome de pão, exilaram-se eles, lusitanos de papel e tinta, por falta de liberdade.” Mais recentemente, vítima da intolerância em pleno regime democrático, o grande José Saramago transferiu-se de Portugal para a Espanha. No Chile de Augusto Pinochet milhares de livros foram apreendidos e destruídos. Em ambos países, como também no Brasil ditatorial, a mera posse de um livro julgado “subversivo” era uma evidência de crime nos tribunais de exceção.
Uma das censuras mais longevas, aplicada em certos períodos cumulativamente com a tortura e a pena de morte, foi a instituída pelo Index Librorum Prohibitorum, da Igreja Católica, que vigorou de 1559 até 1966, quando foi abolido pelo Papa Paulo VI. Nele constaram, dentre outros, autores como Galileu, Copérnico, Giordano Bruno, Maquiavel, Erasmo, Espinosa, Locke, Diderot, Pascal, Hobbes, Descartes, Rousseau, Montesquieu, David Hume, Kant, Milton, Voltaire, Victor Hugo, Zola, Stendhal, Flaubert, Freud, Balzac e Sartre.
A prática da censura foi, a duras penas, contida pelo Estado de Direito, mesmo nas democracias como nos EUA e no Reino Unido, já que nos referidos países, e em outros, foi ela mantida de diversas formas alternativas, como através do controle “moral e dos bons costumes”, nosso velho conhecido, pelas bibliotecas. Todavia, a funesta manifestação de intolerância, motivada por conveniências políticas, religiosas ou de falsa moralidade, ressurgiu das sombras com o crescimento do discurso de ódio, cuja força é potencializada pela penetração dos novos meios digitais, notadamente pela Internet. Trata-se, como resta claro, de um grande retrocesso civilizatório.
Portanto, o discurso de ódio e suas manifestações devem ser refreadas dentro da Lei. Isso é certamente um trabalho para os organismos e instituições do Estado de Direito, mas uma diminuição do fanatismo pela conscientização de seus agentes e pela educação generalizada seria, sem sombra de dúvidas, mais eficaz. Desta maneira, a batalha das ideias na promoção da tolerância, e demais valores humanísticos, não deve ser negligenciada pelas pessoas iluminadas e pelas instituições democráticas. A presente Introdução, e bem assim o primeiro capítulo deste livro, é um modesto esforço que visa a contribuir naquele sentido.
Com a única exceção do capítulo intitulado “A História da Literatura Erótica”, este livro, em todos os seus contos, tem o caráter ficcional de maneira absoluta. Naquele referido capítulo, as citações das obras dos diversos escritores com alguma frequência, mas nem sempre, são feitas na língua portuguesa por traduções do Autor, quando a língua base foi o inglês, o italiano, o espanhol e o francês, já que o material usado como referência não foram necessariamente as versões oficiais traduzidas disponíveis em vernáculo.
O Autor alerta que os personagens fictícios constantes nos contos objeto desta obra são suas criações puramente imaginárias de natureza artística e literária e não guardam absolutamente nenhuma semelhança, correspondência ou relação com quaisquer pessoas da vida real, vivas ou mortas, no Brasil ou no exterior. Qualquer real ou aparente semelhança com pessoas vivas ou mortas, não referida aqui na Introdução, terá sido uma mera coincidência de caráter total e plenamente involuntário.
Por vezes, alguns personagens da vida real, ou mesmo personalidades históricas, como no conto “O Crime do Restaurante Piselli”, aparecem numa situação fictícia em sua totalidade e se relacionam ou não com os personagens fictos ou entre elas mesmas, em situações imaginárias. Todos os referidos contatos são absolutamente o resultado da imaginação do Autor, não ocorreram e não apresentam juízos de valores sobre as pessoas reais ali mencionadas, as quais têm a sua irrestrita admiração.
O conto “Guardas Revolucionários Tupiniquins” foi parcialmente baseado numa história real, relatada em termos genéricos pelos protagonistas, importantes políticos e grandes homens brasileiros, ao Autor, em prazerosas reuniões sociais onde foram consumidas quantidades navegáveis de vinho. A trama foi desenvolvida de maneira criativa e fictícia e dois dos quatro personagens protagonistas são total e absolutamente fictos. Os nomes foram modificados para a preservação da privacidade das pessoas envolvidas. Todavia, o substrato político e econômico da China, durante a Revolução Cultural, é real, mas expressa unicamente as opiniões e visões do Autor sobre aquele país e no respectivo momento histórico específico, já manifestadas noutras obras diversas escritas com um nome distinto.
O livro “A História da Literatura Erótica e meus Contos Malditos” foi escrito aos poucos nas cidades de São Paulo, Lisboa e São José do Rio Preto, em Caaporanga, sob a sombra da Mata Atlântica, e concluído no Rio de Janeiro. Durante grande parte dos trabalhos objeto deste livro, o Autor teve o reconforto da companhia de seus cães labradores, Juba e Yara, os quais altruisticamente emprestaram seus nomes aos codinomes de dois fictícios membros da Ação Popular (AP) a fazer um estágio na República Popular da China, com os Guardas Revolucionários, no conto “Guardas Vermelhos Tupiniquins”. Muito obrigado, Juba e Yara.
Alguns amigos e amigas, com muita generosidade, leram algumas versões dos contos e demais partes desta obra e ofereceram seus comentários, contribuições e sugestões. Em especial, Vivian Salomon dedicou-se sobremaneira neste auxílio, na consultoria sobre o erótico e sensual. As demais pessoas que contribuíram aqui e acolá, de uma forma ou de outra, umas mais e outras menos, são muito numerosas para um elenco completo nesta Introdução. Vai a todas elas a mais sincera gratidão do Autor, a quem aprecia testar as diversas minutas com a percepção daqueles que lhe são, de fato, próximos. Muitas vezes, o relato assume vertente diversa ou complementar como resultado de tais enquetes e recomendações. Como é natural, o Autor assume a exclusiva, ampla e completa responsabilidade pelos eventuais erros e inconsistências a serem eventualmente aqui encontradiços.
Este livro, que intitulei “História da Literatura Erótica e Meus Contos Malditos” é dedicado a dois grandes homens latino-americanos, recentemente falecidos, Luiz Alberto Moniz Bandeira, do Brasil, e Jayme Cézar Lipovetzky, da Argentina. Moniz Bandeira foi o maior historiador brasileiro de todos os tempos e o mais traduzido em todo o mundo. Recebeu, em 2006, o prestigioso Prêmio Juca Pato, da União Brasileira dos Escritores (UBE), da qual foi conselheiro por muitos anos. A obra de Moniz Bandeira compreende, dentre muitos outros, os livros “ Presença dos Estados Unidos no Brasil – Dois Séculos de História”, “Fórmula para o Caos – A derrubada de Salvador Allende” e “De Martí a Fidel – A Revolução Cubana e a América Latina”. Seu livro “Formação do Império Americano”, a melhor história dos EUA jamais publicada, de leitura obrigatória, foi traduzido do português para o inglês, alemão, mandarim e espanhol, dentre outras línguas. Na República Popular da China, este livro é vendido nas Livrarias do Povo, com destaque na seção de relações internacionais.
Jayme Cézar Lipovetzky, como Moniz Bandeira, foi um herói do embate pela democracia, pelas liberdades civis e pelo Estado de Direito, na Argentina e na América Latina. Advogado militante na área sindical e vítima da repressão da cruel ditadura argentina, foi o principal líder, no âmbito do Mercosul, para a integração legislativa e adensamento progressivo do bloco, sempre pautado pelos melhores critérios humanísticos. Sua obra sobre o tema é vasta e permanecerá por muitos anos como uma referência absolutamente necessária. As entidades que criou sobre o tema, tanto na Argentina, como nos outros países do Mercosul, inclusive no Brasil, permanecem como testemunhos veementes de seus nobres feitos e impulsionam os seus altos objetivos.
Por último, António Paixão é um pseudônimo literário devidamente registrado no Nono Cartório de Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da cidade de São Paulo, para os devidos fins de direito. Com este mesmo heterônimo, o Autor escreveu também o romance “Shanghai Lilly”, publicado pela Chiado Editora, de Lisboa, Portugal. Com o seu próprio nome, escreveu em diversas línguas mais de sessenta livros sobre direito internacional, linguística, história, economia, comércio, relações internacionais e memorialística, publicados por diversas editoras nacionais e estrangeiras e, no seu conjunto, em seis continentes.

Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa,

em 18 de fevereiro de 2018.

António Paixão