(9.6.1930 – 16.9.2020) – uma perspectiva familiar.
Faleceu hoje na capital de São Paulo o Professor Doutor Elisaldo Luiz de Araújo Carlini, um dos maiores cientistas brasileiros de todos os tempos e uma referência mundial na área de pesquisas psicofarmacológicas na medicina. Elisaldo Carlini nasceu em Ribeirão Preto, Estado de São Paulo, no dia 9 de junho de 1930, filho de Francisco Araújo Carlini, comerciante, e Ana Ferreira Goyos, de tradicional família da aristocracia portuguesa e brasileira. Seu avô materno, Elisaldo Ferreira Goyos, médico formado pela Faculdade Nacional de Medicina, no Rio de Janeiro, em 1901, foi seu inspirador para a vocação, como também de muitos outros de sua família. Sua mãe, Ana Ferreira Goyos, era uma senhora tanto digna quanto severa, cujo nome havia sido dado em homenagem à sua avó paterna, a formidável Ana Leopoldina de Noronha Goyos.
Quando criança, Elisaldo Carlini conviveu intensamente com o avô materno, falecido em 1937, tios e tias, no solar de propriedade da família em Ribeirão Preto. Naquele ano, a sorte econômica dos Goyos havia tido um viés adverso com os efeitos da chamada Grande Depressão, já que o café, principal produto das fazendas familiares, deixara de ter valor econômico. Até então, Elisaldo Carlini vivia harmonicamente com a família Goyos na grande residência familiar e principalmente com a avó materna, Maria Batista Ferreira Goyos, Dona Liquita, com quem sempre teve uma relação muito amorosa. Destituída economicamente, e sob o comando dos tios, João de Noronha Goyos e Durval de Noronha Goyos (o sênior), a família transferiu-se para São José do Rio Preto, no noroeste paulista, então uma zona de fronteira da civilização, de maneira a permitir o início da carreira dos dois, advogado e cirurgião-dentista, recém-formados.
A casa alugada pelos tios, na área central da cidade, era muito ampla, de maneira a acomodar a avó, a mãe Ana, os irmãos Priscila, Paulo Francisco, Anna Maria, e Joaquim Eduardo (Wilson viria mais tarde), eventualmente o pai, que viajava a trabalho, os três tios, João, Durval e Rui de Noronha Goyos, além das tias Íris, Esperança, Marina, Glória e Heloisa, todas professoras. Rui seguiu uma carreira militar na artilharia do Exército do Brasil e servia, na ocasião, no Rio de Janeiro. Posteriormente, integrou a Força Expedicionária Brasileira (FEB), no teatro de guerra da Itália. Os irmãos, Priscila e Paulo Francisco, também cursaram medicina, ela na Nacional, no Rio de Janeiro, e ele na USP, em Ribeirão Preto.
A família frequentemente organizava encontros culturais domésticos em Rio Preto, incluindo concertos e pequenos bailes frequentados pelos amigos, naquele deserto intelectual que era São José do Rio Preto daqueles tempos. Ocasionalmente, H. Delboni Filho, posteriormente colega de Elisaldo Carlini como professor na Faculdade de Medicina da Santa Casa, era ali levado por sua irmã mais velha, que namorava um dos tios, para brincar com o coetâneo. Eram duros os tempos, pois muitas as pessoas e limitadas as fontes de renda, o que apenas permitiu a sobrevivência da família devido, em primeiro lugar, ao forte sentimento de dignidade e, depois à solidariedade, o respeito e à disciplina monástica.
Com o passar dos anos, Elisaldo Carlini foi matriculado, após exame de seleção, em São José do Rio Preto, na escola pública Instituto de Educação Monsenhor Gonçalves (IEMG), aquele inesgotável celeiro de grandes mulheres e homens que ilustram a história de São Paulo e do Brasil. Se é verdade, como uma vez disse H. Delboni Filho na Santa Casa, que Rio Preto exporta talentos, então Elisaldo Carlini se mostraria com o passar dos anos, e sem dúvidas, o maior deles. Francisco Carlini, Ana e filhos, incluindo Elisaldo, transferiram-se para a cidade de São Paulo, no final da Segunda Guerra, e a matrícula deste foi aceita no tradicional Instituto Caetano de Campos para o curso científico, feito à noite já que as dificuldades financeiras familiares o levaram a trabalhar ainda adolescente como estafeta numa empresa multinacional.
Em 1952, Elisaldo Carlini ingressou na Escola Paulista de Medicina (EPM), uma das principais do País, e fez o curso com as dificuldades típicas de um estudante carente. Após a residência, já se destacava como uma inteligência brilhante, o que lhe proporcionou uma bolsa de estudos da Fundação Rockfeller, para um programa na Tulane University, em Nova Orleans, nos Estados Unidos da América (EUA), em 1960. Com um notável desempenho acadêmico, Elisaldo Carlini chamou a atenção de seus coordenadores americanos, que o indicaram para um programa de mestrado e pesquisas na famosa Yale University, em New Haven, Connecticut, também nos EUA, na época o maior centro de psicologia e farmacologia nos EUA, de 1961 a 1965. No final de sua estada naquele país, foi também professor de pesquisas na Faculdade de Medicina Mount Sinai, de Nova Iorque.
Ao se transferir para os EUA com a então mulher, a Professora Doutora Jandira Masur, e filhos, Elisaldo Carlini convidou a tia Marina Ferreira Goyos, hábil professora e amorosa preceptora voluntária de muitos sobrinhos, a acompanhar a família, com o intuito de ajudar na administração doméstica, o que foi prontamente aceito, no melhor espírito de abnegação e solidariedade familiar. Elisaldo Carlini dedicava-se às pesquisas, a Professora Jandira também, e tia Marina geria com simpatia, inteligência e calor humano os afazeres domésticos. Embora a importância do trabalho de pesquisas de Elisaldo Carlini tivesse sido reconhecida em Yale desde o início, o seu extraordinário alcance só foi percebido pelos americanos quase meio século após, ocasião em que ele se tornou um ícone mundial da área da psicofarmacologia, segundo reportagem publicada pelo importante jornal americano, The New York Times.
De regresso ao Brasil, em 1965, o Professor Elisaldo Carlini foi contratado pela recém-criada Faculdade de Medicina da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, onde já trabalhavam grandes médicos, como o Prof. Doutor Hugo João Filippozzi, o verdadeiro e inconteste fundador da cirurgia cardíaca no Brasil, e o próprio Professor Doutor H. Delboni Filho, precursor brasileiro na área de análises clínicas, seu velho conhecido de São José do Rio Preto. Em 1970, o Professor Elisaldo Carlini transferiu-se para sua alma mater, a Escola Paulista de Medicina (EPM), na qual se tornou professor titular em 1978, em psicofarmacologia, uma disciplina da qual foi o fundador no Brasil.
Na EPM, hoje faculdade de medicina da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), o Professor Elisaldo Carlini continuou em seu incansável trabalho de pesquisas científicas de toda uma vida, sempre pautado pelo espírito humanístico e de responsabilidade social que o distinguiram perante todos que o conheceram, a começar pelos próprios familiares. Neste processo, publicou mais de 700 importantes trabalhos científicos, mais da metade dos quais em revistas estrangeiras de grande importância como Lancet, British Journal of Pharmachology, Life Sciences, Pharmachology, Psychofarmachology, Journal of Psychoactive Drugs, Brazilian Journal of Pharmachology, Pharmachology, Biochemistry and Behaviou e UNIFESP. Quase todos os trabalhos, mesmo os publicados no Brasil, foram escritos em língua inglesa, devido ao desinteresse nacional pelo tema na comunidade médica. Não obstante, estas publicações foram citadas mais de 12 mil vezes mundo afora, numa extraordinária repercussão.
Como resultado, o Professor Elisaldo Carlini tornou-se consultor de diversas entidades e publicações mundo afora, inclusive da Organização das Nações Unidas (ONU); da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Congresso dos EUA, em matéria de políticas públicas de drogas, toxicologia e psicofarmacologia. Por sua atuação científica, foi condecorado duas vezes pela presidência da República Federativa do Brasil e pelo Ministério da Saúde de Portugal. O Professor Elisaldo Carlini recebeu ainda títulos de doutor honoris causa em algumas importantes universidades. No Brasil, criou o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID), entidade pioneira de interesse público que tem tido uma atuação destacada na área científica e educacional, inclusive com uma importante editora vocacionada para a publicação de trabalhos científicos no setor.
Publicou o Professor Elisaldo Carlini diversos livros sobre sua área de atuação, incluindo Drogas, Subsídios para Discussão, com sua ex-mulher, a Professora Jandira Masur; Protocolos em Psicologia Comportamental; Drogas – Por que as pessoas usam?; e Cannabis Sativa em Medicina – Quem disse que eu não diria? Mesmo depois de aposentado, o Professor Carlini continuou a trabalhar em seus projetos de pesquisa na UNIFESP, onde recebeu o título de Professor Emérito, como também no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Foi diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) pelo período de dois anos, à frente de uma gestão conhecida pelo combate à corrupção, além do rigor científico. Há hoje uma iniciativa para denominar o PL 399/2015, que trata do uso medicinal da Cannabis Sativa, como Lei Elisaldo Carlini, em homenagem ao grande cientista brasileiro.
Apesar de toda sua nomeada e reconhecimento mundo afora, o Professor Elisaldo Carlini, aos 87 anos foi intimado a responder por apologia ao crime, por um delirante representante do Ministério Público do Estado de São Paulo, devido ao fato de estar a coordenar um simpósio científico internacional sobre o uso medicinal da maconha, área em que foi o maior especialista mundial. A comunidade científica ergueu-se em peso em sua veemente defesa, numa unanimidade raramente vista. Pronunciaram-se, dentre meia centena de expressivas entidades, a Academia Brasileira de Ciências; a própria UNIFESP e a EPM; a União Brasileira de Escritores – UBE; e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC, em firme defesa do pesquisador. O caso, felizmente, não prosperou.
O Professor Carlini casou-se, em segundas núpcias, com a Professora Doutora Jandira Masur e, em terceiras núpcias, com a Professora Doutora Solange A. Nappo, ambas suas colegas de pesquisas na UNIFESP e no CEBRID, e também especialistas em drogas psicotrópicas. A Professora Doutora Solange Nappo tem diversos trabalhos produzidos em coautoria com o Professor Elisaldo Carlini e ademais foi, nas últimas décadas, sua dedicada companheira de todas as horas. Do primeiro casamento, o Professor Carlini teve os filhos Célia, professora universitária, Beatriz, professora universitária, Álvaro, professor universitário e, do segundo casamento, Cláudia, médica. Do terceiro, teve as filhas Jackie, psicóloga e Michelle, professora. Deixa também, irmãos, irmãs, netos e netas, além do seu notável exemplo como homem e acadêmico.
Professor Doutor Elisaldo Luiz de Araújo Carlini (*1930 – +2020)
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).