RIO – O Mercado Comum do Sul (Mercosul), criado pelo Tratado de Assunção de 1991, é uma iniciativa política e econômica meritória, mas que padece desde os seus primórdios de uma adequada segurança jurídica que permita um funcionamento sem a demasiada interferência dos diversos agentes governamentais com atuação no bloco.
A excessiva interferência governamental advém de dois fatores diversos, um de ordem interna dos países membros e, outro, de ordem externa.
O elemento endógeno diz respeito à determinação doentia da parte do Ministério das Relações Exteriores a controlar de maneira absoluta todas as inúmeras variáveis da inserção internacional do Brasil, inclusive a econômica. A exógena, diz respeito à debilidade econômica dos nossos parceiros, causada ora por fatores geográficos assimétricos, como no caso de Paraguai e Uruguai, ora por erros macroeconômicos crassos de administrações passadas, como no caso da Argentina.
O quadro é agravado com a percepção no ethos cultural de nossos parceiros regionais que o preço a ser pago pela liderança política do Brasil é o de concessões econômicas tanto ilimitadas e diversificadas quanto idiossincráticas.
O cinismo que frequentemente orienta a ação do Itamaraty aceita em tese essa demanda, já que o preço será pago pelos agentes da iniciativa privada, normalmente dissociados daquilo que se compreende como interesse nacional pela Casa de Rio Branco.
Assim é que o Mercosul não tem um sistema eficaz de resolução de disputas, porque não permite aos agentes privados do bloco o direito de ação sem a aprovação de seus respectivos governos. Dessa maneira, todas as pendengas passam pelos governos que negociam acordos recíprocos de contenção voluntária, quotas diversas, preços e outros ajustes que são vedados tanto pela ordem jurídica do comércio multilateral como pela legislação concorrencial de âmbito interno.
O comércio administrado do Mercosul permite ainda as fraudes nas regras de origem, com operações de triangulação diversas pelos menores sócios, já que politicamente, como entendido pelo Itamaraty, não é conveniente o cumprimento da lei. Da mesma forma e por idêntico motivo, o Uruguai não consta da lista brasileira de paraísos fiscais para fins do combate às fraudes financeiras. As fronteiras brasileiras estão abertas ao contrabando pela mesma inspiração.
Igualmente, a Tarifa Externa Comum (TEC) do bloco apresenta hoje tantas exceções quanto regras não tendo, por conseguinte, nenhuma credibilidade. A TEC tornou-se um grande obstáculo para o desenvolvimento de uma rede de acordos comerciais pelo Brasil, num momento que o colapso do sistema multilateral da Organização Mundial do Comércio (OMC) exige as alternativas de pactos diversos, feitos por diversos países que são nossos parceiros estratégicos, como a China, a Índia, a África do Sul, o México, a União Européia, o Chile, dentre outros.
Pois bem, as medidas protecionistas lançadas em todo o mundo após a fase aguda da presente crise mundial econômica e financeira, a partir dos países desenvolvidos, também tiveram repercussões regionais no âmbito do Mercosul, embora em escala muito menor. Dentre tais ações, conta-se um aumento expressivo dos casos de defesa comercial, notadamente as medidas antidumping, conhecidas como a fina flor do protecionismo.
Por outro lado, aumentaram expressivamente os produtos colocados sob o regime de licença de importação, meio vergonhoso e ilegal de obstar as importações, tanto no Brasil como na Argentina. Em ambos, a principal vítima são os produtos importados da China. Em ambos, o sucesso dessa experiência espúria levou as autoridades a aplicar o mecanismo reciprocamente.
Pois bem, como qualquer pessoa de bom senso poderia prever, as medidas foram adotadas num espiral crescente. Há alguns meses, a Argentina retirou do licenciamento automático de importação de autopeças, produtos do setor automotivo, que representa cerca de 40% do comércio interno do bloco. No total, a Argentina tem cerca de 800 produtos brasileiros no regime de licença de importação, incluindo calçados, têxteis, linha branca, além das autopeças.
Em retaliação, o governo brasileiro incluiu no regime de licença alguns itens das autopeças argentinas, mais outros 15 produtos, a partir de outubro deste ano, como o trigo, o vinho e as frutas, fazendo com que o número total de itens aproxime-se dos 40. Dentro do lamentável estado de coisas no Mercosul, tais medidas são mero fogo de encontro para uma negociação quando da visita da presidente Cristina Kirchner no próximo dia 18 de novembro.
Essa situação não pode persistir, sob pena de gravemente prejudicar a todos os Estados membros do bloco e a própria iniciativa, que é meritória, mas precisa de ajustes. Esses devem ser feitos no aumento da juridicidade das relações internas, para garantir a segurança jurídica, o estado de Direito nas atividades do espaço regional, e bem assim a eliminação das anomalias existentes, que já chegaram ao limite.
* Sócio da Noronha Advogados
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).