A criação de um órgão de coordenação do setor de comércio exterior no Brasil tem sido objeto de debate público no passado recente. Em defessa de tal idéia, alegam certos setores da opinião pública que um órgão, nos moldes do Escritório do Representante Comercial do Estados Unidos – USTR, existente desde 1962, teria o condão de definir com eficiência uma política comercial forte e de executar e coordenar a política de comércio exterior, ao mesmo tempo que seria responsável por agir contra práticas desleais de comércio contrárias aos interesses brasileiros.
Nos Estados Unidos, o USTR foi criado como parte e conseqüência da evolução de uma abrangente legislação de comércio internacional, com raízes formadas desde a independência do país, em 1776, que objetivava a hegemonia comercial mundial, estabelecendo vasto instrumental unilateral à revelia das normas internacionais vigentes no âmbito do Acordo Geral de Comércio e Tarifas – Gatt de 1947. Coerentemente, a lei americana de 1962 é denominada Trade Expansion Act (Lei de Expansão Comercial).
O mundo então era outro, havia a guerra fria e a bipolaridade mundial e se toleraram, na comunidade internacional capitalista, embora com relutância e amargor, tais idiossincrasias grotescas por parte dos Estados Unidos. Era o preço a pagar. Essa legislação bizarra teve o mérito interno de promover condições para o desenvolvimento de uma especialização jurídica para os advogados atuante no âmbito da Court of International Trade (Corte de Comércio Internacional – CTI), vara dedicada ao circuito federal bem como da International Trade Comission (Comissão de Comércio Internacional – ITC), órgão administrativo encarregado de investigar práticas desleais de comércio.
Todavia, com o início da Rodada Uruguai do Gatt, em 1986, um dos maiores desejos da comunidade internacional, como um todo, foi o de reforçar a primazia da lei e o império do direito no comércio internacional, de tal forma a excluir o arbítrio reiteradamente caracterizado pela política unilateral. Esses desejos influenciaram decisivamente o resultado da rodada e a maior conquista dos países em desenvolvimento, entre eles o Brasil, foi exatamente o incremento da juridicidade do sistema multilateral.
Por sua vez, o Brasil não tem a mesma tradição de comércio internacional dos países desenvolvidos, em geral, e dos Estados Unidos, em particular. Por décadas, nossa economia foi protegida por altas barreiras tarifárias, que permitiam aos brasileiros a confortável contemplação de seu berço esplêndido. Nossas negociações comerciais externas foram feitas por um pequeno grupo de dedicados diplomatas do Itamaraty, em mister totalmente ignorado pelo país.
Mais ainda, durante as negociações da Rodada Uruguai, o País enfrentava a vicissitudes da consolidação do seu Estado de Direito e pouquíssimos se interessaram em acompanhar a iniciativa que iria consolidar a globalização econômica e promover a maior abertura comercial do século, cujos efeitos, totalmente previsíveis, enfrentamos hoje. Tais eventos não motivaram os setores industrial, agrícola e mesmo o de serviços a uma participação mais ativa no debate estratégico interno. Nossas universidades em grande parte ignoraram o tema.
Como resultado, o Brasil deixou de formar quadros capacitados para atuar com desenvoltura no novo mundo da Organização Mundial do Comércio – OMC. Os quadros que temos se encontram hoje, em sua grande maioria, no Ministério das Relações Exteriores. Surpreendentemente, não temos, em todo Brasil, mais de cem especialistas de padrão mundial em multilateralismo.
Assim, a idéia da criação de um órgão comercial forte, concentrando os poderes da URST, do ITC e da CIT, não só é bizarra do ponto de vista jurídico, por concentrar poderes incompatíveis com a desejável juridicidade da estrutura, bem como está totalmente defasada no tempo. O sistema unilateral, que tantos prejuízos tem causado no Brasil, está com dias contados, e mesmo nos Estados Unidos, já se debate seu final, por sua ineficácia prática e sua incompatibilidade com a ordem jurídica da OMC.
De mais a mais, os quadros para tal esdrúxulo órgão brasileiro, teriam necessariamente de vir prioritariamente do Itamaraty, o que seria, então, o caso de despir um santo para vestir outro.
Assim, tal idéia não tem o menor mérito técnico, pois carece de sustentação no sistema multilateral da OMC e no bom senso. Na realidade, o órgão proposto serviria para colocar o Brasil freqüentemente no banco dos réus do comércio internacional; tiraria pressão dos Estados Unidos para o desmonte de suas estruturas; dificultaria o ajuste de nossas instituições nos tratados de Marraqueche; seria absolutamente ineficaz por ter uma juridicidade comprometida; e representaria, em nível de ministério, uma nova sinecura para os políticos sequiosos de poder.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).