São Paulo – Chama-se conflito de leis a aplicação extraterritorial da lei de um país num outro. Muito mais do que uma relação antinômica de normas domésticas com as de outro país, a disciplina denominada conflito de leis estuda as possibilidades, a forma e o processo da aplicação extraterritorial das leis. Nos países de tradição jurídica anglo-saxônica, a terminologia é utilizada como sinônima do direito internacional privado.
No meu ver, entretanto, o direito internacional privado e o conflito de leis compreendem fenomenologia diversa. Enquanto o direito internacional privado rege relações entre particulares governadas por legislação supranacional, como no caso do tratamento do direito do consumidor no âmbito da UE (União Européia), o conflito de leis tem por escopo o antes enunciado.
Pergunta-se, então, quando e como se poderá aplicar a lei estrangeira. Em primeiro lugar, os eventos objeto de uma disputa poderão ter tomado lugar no exterior. Por outro lado, uma das partes numa disputa pode ser domiciliada no estrangeiro. Mais ainda, o réu numa disputa poderá ter ativos num terceiro país. Por último, um ato jurídico pode ter sido criado de acordo com as leis de um terceiro país que aquele das partes.
No Brasil, a chamada Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-lei nº 4657, de 4 de dezembro de 1942, LICC – Lei de Introdução ao Código Civil) por exemplo dispõe que para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem ( artigo 9, caput).
Mais ainda, o artigo 8º da LICC manda aplicar a lei do país onde os bens estiverem situados, para qualificar os bens e relações a eles concernentes. Do mesmo modo, o seu artigo 7º. manda aplicar a lei do domicílio da pessoa a respeito das regras obre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família. Igualmente, segundo o artigo 11º, as leis societárias obedecem às normas do país em que se constituírem.
Do disposto no parágrafo anterior podemos depreender que a classificação da causa de ação poderá ser a lex situs, a lei do local do bem ou do domicílio, caso dos artigos 7, 8 e 11 da LICC; ou a lex loci celebracionis, a lei do lugar da constituição da obrigação, caso do artigo 8º. Assim, o elemento forâneo tem repercussões quanto à questão da jurisdição, da eleição de leis, do reconhecimento e execução de sentenças ou laudo arbitrais estrangeiros, e mesmo de certos aspectos da cooperação judiciária internacional.
De um modo geral, no direito comparado, exclui-se, para fins de aplicação extraterritorial as leis estrangeiras que disponham sobre arrecadação fiscal, direito penal, outras leis de caráter público, bem como as normas contrárias à política pública. No Brasil, o artigo 17 da LICC dispõe que não terão eficácia no seu território as leis atos e sentenças de outro país que ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes.
Na UE, de acordo com o regime jurídico de regência, Convenções de Bruxelas e Lugano, os tribunais dos 27 Estados membros têm jurisdição exclusiva para as questões decorrentes de propriedade intelectual, constituição de sociedades, registros públicos, direitos da propriedade intelectual e execução de sentenças.
A prova da lei estrangeira nos tribunais domésticos ou municipais se faz, no direito comparado, mediante perícia com depoimento de expertos e a produção de textos relevantes. No direito brasileiro, o artigo 14 da LICC dispõe que “não conhecendo a lei estrangeira, poderá o juiz exigir de que a invoca prova do texto e da vigência”. A prova do direito consuetudinário, evidentemente, não poderá ser feita com textos legais, mas sim através de doutrina e jurisprudência.
Em questões atinentes à aplicação extraterritorial da lei poderá haver, e freqüentemente há, circunstâncias em que se dispute a competência do foro, ou forum non conveniens. Tal poderá ocorrer na existência de dois ou mais julgados irreconciliáveis ou ainda procedimentos paralelos, na chamada jurispendência, com relação à mesma causa de ação ou às mesmas partes.
Com a maior mobilidade das populações mundiais e com o progressivo aumento das relações econômicas internacionais, questões decorrentes do conflito de leis se tornam mais comum no quotidiano do mundo do direito, o que implica na necessidade de desenvolvimento do direito internacional privado propriamente dito.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).