DUBAI – Na teoria clássica do direito islâmico, o direito é a vontade de Deus revelada no Corão, um sistema divino que precede a existência do Estado muçulmano. Assim, inexiste a noção da evolução do direito derivado de fenômenos sociais históricos.
O papel do jurista islâmico é o de mero artífice no processo de descoberta e interpretação da vontade divina. Assim, o direito islâmico, a Sharia, é enunciado pelo Corão e, às vezes, coexiste com normas morais.
Pois bem, a Sharia proíbe a cobrança de juros, riba. Assim, uma operação financeira pura, o mútuo onerado pelo pagamento de juros, é ilegal face à ordem jurídica islâmica. Para que o mútuo seja consistente com a Sharia, ele deverá ser não oneroso, o que o desqualifica para operações comerciais financeiras.
No entanto, a Sharia permite que o doador do dinheiro seja remunerado com pagamentos decorrentes do lucro da operação objeto do respectivo desembolso. Dessa maneira podem, e têm sido, por conseguinte, estruturadas operações bancárias ou financeiras, segundo o direito islâmico.
Há, contudo, outras restrições, dentre as quais a natureza do negócio a ser financiado, que deverá ser consistente com a Sharia, assim excluindo operações industriais ou comerciais envolvendo o álcool, o jogo e o tabaco. Da mesma forma, o evento futuro e incerto, gharar, é proibido.
Por muitos séculos, o mercado de produtos bancários islâmicos situou-se num patamar de valores muito baixos. Recentemente, todavia, registrou-se um grande crescimento desse mercado, estimado globalmente em cerca de US$ 500 bilhões, nos dias de hoje. Apenas na praça de Londres, estima-se para 2007 lançamentos de sukuks, bônus que pagam um percentual do lucro do negócio subjacente, na ordem de cerca de US$ 25 bilhões.
Dentre outros produtos compatíveis com a Sharia está a musharaka, que é uma sociedade por ações utilizada para o financiamento de projetos. Nesses casos, o banco é um sócio que assume originalmente, em igualdade de condições com os demais, o risco do empreendimento, que por sua vez é garantido, num documento em separado, pelo sócio empreendedor.
Também a mudaraba, uma sociedade de capital e indústria é utilizada para o financiamento de projetos. Igualmente aqui, o sócio de indústria irá garantir o desempenho num documento em separado. Por sua vez, o financiamento à exportação, por exemplo, é efetuado através da murabaha, uma compra e venda mercantil na qual o banco adquire a mercadoria do exportador e a vende ao importador por um lucro pré-estabelecido.
De outro lado, para se atingir o mesmo propósito das operações de leasing, lança-se mão do instituto da Ijarah, que é estruturado através de um contrato de locação que é remunerado pelo uso, e não pelo financiamento, e por uma opção firme de compra e venda o objeto do negócio, ao seu termo final.
Apesar do grande crescimento do mercado, da abundância de recursos para os produtos islâmicos e de sua remuneração atrativa, são muitas as dificuldades existentes para sua estruturação. Dentre elas está a certificação dos produtos, antes dos respectivos lançamentos, por autoridades legais islâmicas letradas no Corão.
Da mesma forma, a interpretação dos contratos e a resolução de disputas apresentam dificuldades. Uma cláusula típica de eleição de leis num contrato bancário islâmico irá dispor: “Este contrato é regido de acordo com as leis de ……………, desde que não conflitantes com os princípios da Sharia. Em caso de conflitos entre a lei de regência e a Sharia Islâmica, a Sharia Islâmica prevalecerá.”
É provável que judiciários de muitos países não islâmicos tenham dificuldade em aceitar tal cláusula.
Por outro lado, já que há muitas escolas, qual a interpretação aplicável da Sharia? Muitos contratos já estipulam cláusulas no sentido de que os magistrados ou árbitros “deverão levar em consideração os entendimentos, fiqh, das escolas de jurisprudência do Iman Malik e do Iman Ahmad Bin Hanbal, e se não ali encontradiços então nos ensinamentos das escolas do Iman Al ShafiÌ e Iman Abu Hanifa, qualquer que seja mais apropriado”.
Para amainar as dificuldades decorrentes, através da uniformização de praticas, foi criado um organismo internacional, a Organizaçao de Contabilidade e Auditoria das Instituiçoes Financeiras Islamicas (AAOIFI). Da mesma forma, centros de arbitragem internacional, como o Centro de Arbitragem Internacional do Dubai (DUBAI), capacitam-se para atender a disputas internacionais decorrentes de contratos regidos de acordo com os princípios da Sharia.
Durval de Noronha Goyos é colunista de Última Instância e foi a Dubai (Emirados Árabes Unidos) como enviado especial
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).