1.1- A enorme crise de credibilidade que tem afligido a Organização Mundial do Comércio (OMC) desde sua criação decorre, predominantemente, da generalizada percepção, da parte dos países em desenvolvimento, bem como dos segmentos mais representativos da sociedade civil mundial, de que seu funcionamento favorece de forma escandalosa os interesses comerciais das principais potências econômicas e de suas empresas multinacionais. De fato, nos anos que se seguiram à fundação da OMC em 1995, os países em desenvolvimento tiveram uma participação decrescente no comércio mundial e o espectro de profundas dificuldades financeiras paira ameaçador sobre eles. As áreas tradicionais de comércio, os setores agrícola e têxtil, continuam excluídos de fato do sistema multilateral de trocas. O volume de subsídios praticados pelos principais parceiros comerciais não somente não diminuiu como aumentou[1]
e assim continuam a disseminar a miséria mundo afora. Por outro lado, o sistema de resolução de disputas da OMC, justamente o depositário das maiores esperanças da prevalência do império da lei nas relações comerciais internacionais, falhou miseravelmente em seus objetivos e constituiu-se em veículo de opressão e de derrogação de direitos dos países em desenvolvimento.

1.2.- O objetivo de minha apresentação de hoje é exatamente o de analisar as regras e o funcionamento do sistema de resolução de disputas da OMC. Para tanto, dividi a palestra da seguinte forma:

i. Esta Introdução;

ii. Histórico das Negociações sobre Resolução de Disputas na Rodada Uruguai do GATT;

iii. Regras Processuais do Sistema de Resolução de Disputas da OMC;

iv. Falhas Institucionais e Processuais do Sistema;

v. Falhas Operacionais do Sistema;

vi. Os Países em Desenvolvimento no confronto do Sistema de Resolução de Disputas da OMC;

vii. e Conclusões.2.1.- O sistema de resolução de disputas do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), assinado em 1947, funcionou de seu início até o final da década de 60, de fato, mais como um foro de conciliação do que como um mecanismo de arbitragem. Posteriormente, em 1979, as práticas desenvolvidas forma codificadas e o sistema adquiriu o caráter de arbitragem propriamente dita. Em 1989, já durante a Rodada Uruguai, foi reconhecido o direito de se exigir a constituição de um painel e um procedimento que permitia a nomeação de árbitros pelo Diretor Geral.

2.2.- Encontrava-se totalmente desmoralizado o sistema de resolução de disputas do GATT quando foi lançada a Rodada Uruguai. As falhas sistêmicas eram múltiplas, mas as queixas unânimes recaiam sobre a possibilidade de bloqueio na instalação de um painel de arbitragem e na falta de exequibilidade dos laudos arbitrais. De fato, o grande ponto fraco do sistema era que ele permitia às partes contratantes ignorá-lo, por condicionar a instalação de um painel de arbitragem ao consentimento do réu. Em outros casos, o país julgado culpado ignorava, bloqueava ou procrastinava a implementação do laudo arbitral. Outros problemas apontados diziam respeito a falhas processuais e delonga nos procedimentos da arbitragem. [2]

2.3.- Os Estados Unidos da América (EUA) e a União Européia (UE) foram os grandes e notórios transgressores (particularmente o primeiro) pelo insucesso do sistema, o que não os impediu de serem, contemporaneamente, seus maiores críticos. No sistema do GATT, havia igualmente o grande empecilho da prática de tentativa de resolução unilateral das disputas, totalmente vedada pelas normas aplicáveis ao comércio multilateral. O grande campeão deste grave desvio da ordem jurídica foram os EUA, mediante a criação do dispositivo Super 301 da Lei Ônibus de Comércio e Competição de 1988. Nos EUA, prevalecia a posição oficial de que “ação unilateral é também um catalista importante para ação internacional” e um presidente, George Bush, encarregou-se pessoalmente de anunciar a recusa de seu país ao cumprimento de um laudo arbitral do GATT. [3]

2.4.- Alguns países desenvolvidos, principalmente o Japão, tornaram-se, juntamente com os países em desenvolvimento, vítimas das medidas unilaterais diversas, através as quais os EUA obtiveram vantagens comerciais tanto mediante os infames acordos de contenção voluntária, como através de tarifas ditas compensatórias que impossibilitavam o acesso de produtos internacionalmente competitivos aos seus mercados domésticos. Foi principalmente o abuso à ordem jurídica do GATT que levou o Japão a ser o primeiro país, outro que os EUA, a solicitar a abertura de uma nova rodada de negociações do sistema, que viria posteriormente ser denominada Rodada Uruguai. Pretendia o Japão um aumento da juridicidade do sistema. [4]

2.5.- Por sua vez, os países em desenvolvimento, as principais vítimas do abuso institucionalizado no unilateralismo e na inobservância da lei, embora recusando a inclusão das chamadas áreas novas, enquanto o comércio tradicional não viesse a integrar o sistema multilateral de comércio, apoiaram a reforma do sistema de resolução de disputas e o aumento da juridicidade no âmbito do GATT. Como habitualmente fazem em negociações internacionais, os EUA cooptaram a iniciativa japonesa para seu próprio benefício. [5]
Pretenderam influenciar a reformulação do sistema, de tal forma que aumentasse sua eficácia, da mesma forma que cuidavam de manter seu ordenamento jurídico interno, o que inclui todo o arsenal unilateral, situado acima dos tratados internacionais na hierarquia das normas. Assim, poderiam os EUA executar decisões a si favoráveis contra seus parceiros comerciais, mas também poderiam neutralizar decisões a si adversas com o instrumental unilateral, por serem um dos maiores mercados mundiais e uma grande potência.

2.6.- Alguns autores norte-americanos procuram minimizar o fracasso do sistema no GATT nos seguintes termos: “O mecanismo era único. Era também defeituoso, devido em parte ao difícil início do GATT. Todavia, tais procedimentos funcionaram melhor do que o esperado, e pode-se argumentar que funcionaram melhor do que a Corte Internacional de Justiça?”[6]
Esta parece-me seja uma axiomática observação para quem vê o funcionamento do sistema a partir da perspectiva etnocêntrica do país que mais se locupletou de sua ineficácia.
3.1.- O passo inicial do sistema de resolução de disputas da OMC é dado pelo pedido formal de consultas da parte de um membro a outro[7]
. O direito de ação cabe apenas ao estado soberano membro da OMC. Da mesma forma, a jurisdição do sistema alcança apenas os estados soberanos membros e não pessoas físicas ou jurídicas de direito privado. O pedido formal de consultas é comunicado ao Órgão de Resolução de Disputas (ORD). O membro notificado terá 10 dias para responder ao pedido e deverá entrar em consultas no período de 30 dias do recebimento da notificação para tentativas de solução amigável da pendência. Na falha de observância do mecanismo, de parte do membro notificado, ou ainda na hipótese das consultas resultarem estéreis, então o membro prejudicado poderá solicitar a formação de um painel de arbitragem.

3.2.- Uma vez solicitada a instalação de um painel, o ORD promoverá sua constituição, a menos que, por consenso, decida-se não o fazer, o que inverteu a situação prevalecente no GATT. Qualquer terceiro estado membro interessado em uma dada disputa poderá fazer-se ouvir pelo respectivo painel, sem todavia constituir parte no processo, já que o sistema de resolução de disputas, mui desafortunadamente, não incorporou o instituto do litisconsórcio[8]
. Como consolação, as ponderações do terceiro interessado serão levadas em consideração para fins da decisão consubstanciada no laudo arbitral. No sistema idiossincrático da OMC, cabe ao coordenador do ORD a incumbência de definir o objeto da ação, o que é denominado “termo de referência” [9]
, com base evidentemente na petição inicial. Na prática, todavia, esta função tem sido delegada ao Secretariado da OMC, o que tem dado origem a muitas críticas, como veremos mais adiante.

3.3.- Os trabalhos do painel de resolução de disputas são confidenciais[10]
. Suas reuniões são realizadas em regime fechado, permitida a presença das partes diretamente envolvidas na disputa e dos estados membros terceiro interessados, que não tem direito a apelação[11]
. As deliberações do painel, bem como as petições e arrazoados apresentados são cobertas pela confidencialidade[12]
. Os painéis estabelecem os prazos para a produção dos arrazoados das partes, caso a caso[13]. Os laudos arbitrais são minutados sem a presença das partes[14]
. Opiniões individuais dos árbitros são anônimas e, quando minoritárias, excluídas do relatório[15]
. Petições “ex parte” ou “inaudita altera pars” não são admitidas[16]. As regras processuais do sistema não aceitam a argüição de preliminares; não permitem a reconvenção; e desprezam o instituto do litisconsórcio passivo; e confundem o tratamento do litisconsórcio ativo[17]
. Não há, no sistema, um processo físico ou mesmo virtual, uma pasta do caso, como nos processos judiciais ou arbitrais em todo o mundo.

3.4.- Como o sistema foi concebido por diplomatas e não por juristas, abundam falhas processuais, bem marcadas pela semântica imprecisa da diplomacia, com eufemismos sopitados que, no contraditório, representam um grave obstáculo à administração da justiça. Os problemas semânticos abaixo apontados, a título exemplificativo e não exaustivo, bem indicam as graves deficiências processuais do sistema:

GLOSSÁRIO DE TERMOS JURÍDICOS NO PROCESSO DA OMC.

Ação –
Reclamação.
Apreciação recursal –
reconsideração.
Árbitro –
painelista.
Autor –
parte que fez a reclamação.
Audiência inicial –
encontro substantivo.
Contestação –
rebote formal.
Corte –
painel.
Caso –
queixa; disputa.
Debate oral –
audiência oral.
Decisão –
recomendação.
Derrogação –
prejuízo.
Inicial –
submissão.
Jurisprudência –
prática.
Laudo –
relatório.
Objeto da ação –
termo de referência.
Petição –
submissão.
Processo de execução –
implementação.
Regimento Interno –
procedimento de trabalho.
Réplica –
submissão.
Réu –
parte contra quem foi feita a reclamação; parte respondente
Revogação –
nulificação.
Sessão –
encontro substantivo.
Tréplica –
submissão.

3.5.- Os painéis de arbitragem terão 3 ou 5 árbitros selecionados pelas partes da relação de árbitros da OMC, os quais não poderão ser nacionais dos estados objeto da disputa e devem atuar independentemente dos interesses de seus respectivos países. Na eventualidade de não haver consenso na escolha, então o Diretor Geral indicará a composição do painel. O painel terá o direito de obter informação ou aconselhamento técnico de qualquer indivíduo ou órgão sob sua jurisdição. As deliberações do painel serão confidenciais e a redação do laudo será feita sem a presença das partes. O painel deverá apresentar seu laudo dentro do período máximo de 6 meses. A questão da adoção do laudo arbitral também foi alterada radicalmente. Na sistemática da OMC, o laudo passou a ser aprovado automaticamente, devendo entrar em vigor dentro de 60 dias de sua comunicação ás partes, a menos que uma decisão por consenso o rejeite, ou que uma das partes apele da decisão.

3.6.- O grau de recurso é também uma novidade no âmbito da OMC. O órgão de apelação tem 7 árbitros nomeados e cada painel de apelação terá necessariamente 3 árbitros, o que se denomina em conjunto de “divisão”. Não há provisão do DSU sobre sessão plenária dos árbitros do grau de apelação. O prazo máximo para uma decisão é de 60 dias, devendo o laudo de apelação levar em consideração todos os pontos argüidos pela parte recorrente. A adoção do laudo recursal também tem a mesma característica de automaticidade daquele de primeira instância. Na eventualidade de recusa de cumprimento por parte do membro derrotado, a parte vencedora poderá pedir compensações, mediante a suspensão de concessões eou criação de medidas compensatórias que onerem as exportações do vencido. O artigo 22 do Entendimento Governando a Resolução de Disputas (DSU) requer, todavia, que antes de qualquer iniciativa unilateral neste sentido, as partes devem desenvolver um esforço de acordar na definição das compensações.

3.7.- Os árbitros da OMC, tanto em primeira como em segunda instância, funcionam em caráter “ad-hoc”, portanto em base não permanente. Freqüentemente, não residem em Genebra, a sede da OMC, e não tem nenhuma infra-estrutura de apoio a suas atividades. Para tanto, devem valer-se do suporte técnico e assistência do Secretariado “nos aspectos legais, procedimentais e históricos” [18]
das questões. A natureza deste “suporte” também tornou-se objeto de acrimoniosas críticas, que serão analisadas mais adiante.

3.8.- Há quem queira atribuir ao laudo arbitral da OMC a natureza jurídica de parecer, pelo fato de só adquirir a plenitude de sua eficácia jurídica após a homologação pelo Órgão de Resolução de Disputas[19]
. Trata-se de interpretação equivocada. A homologação pelo ORD somente não ocorrerá se a parte vencedora renunciar ao direito conferido ou se houver a apelação, o que implica em ter o laudo exatamente o significado de uma sentença, por ser declaratório do direito preexistente, compondo a lide em resposta ao pedido do autor, solucionando o conflito de interesses evidenciado na disputa. Da mesma forma, há quem subscreva o dislate de que o sistema de resolução de disputas seria um “processo político diplomático” [20], o que significaria, se correta a posição, que teria havido, nos tratados de Marraqueche, a renúncia à juridicidade e do devido processo legal, o que absolutamente não ocorreu.

3.9.- A cronologia dos trabalhos dos painéis de arbitragem da OMC, em primeira e segunda instâncias, é demonstrada nos seguintes quadros:

QUADRO DA PROPOSTA CRONOLOGIA PARA O TRABALHO DO PAINEL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA:



















































































  1. Recebimento das primeiras submissões escritas das partes:


  1. partes reclamantes


3 a 6 semanas


  • partes reclamadas


  • 2 a 3 semanas

     

    1. Dia, hora e lugar do primeiro encontro substantivo com as partes; sessão do

    terceiro interessado



    1 a 2 semanas

     

  • Recebimento dos rebotes escritos das partes


  • 2 a 3 semanas

     

    d) Dia, hora e lugar do segundo encontro substantivo


    com as partes



    1 a 2 semanas

     

    e) Emissão da parte descritiva do laudo às parte



    2 a 4 semanas

     

    f) Recebimento dos comentários das partes à parte


    descritiva do laudo às partes



    2 semanas

     

    g) Emissão do laudo preliminar, incluindo


    razões e conclusões às partes



    2 a 4 semanas

     

    h) Prazo final para a parte requerer revisão de parte(s) do laudo



    1 semana

     

    i) Período de revisão pelo painel, incluindo possível


    encontro adicional com as partes



    2 semanas

     

    j) Emissão de laudo final às partes da disputa



    2 semanas

     

    k) Circulação do laudo final aos Membros



    3 semanas

    QUADRO DO CRONOGRAMA DAS APELAÇÕES:

    Dia

    Notificação de Apelação .. 0

    Submissão do Apelante …… 10

    Submissão de outros apelantes . 15

    Submissão do Apelado … 25

    Audiência Oral (sic) … 30

    Circulação do Laudo de Apelação .. 60 a 90

    Encontro do ORD para adoção ….. 90 a 120
    4.1.- Não se pode alegar surpresa pela falência orgânica de um sistema criado para a prestação jurisdicional no direito do comércio internacional sem pagar a menor atenção às estruturas legais e à experiência do direito na processualística, por milhares de anos. Produto de um devaneio tresloucado da diplomacia nefelibata, segundo o qual se poderia promover a resolução de conflitos sem um sistema contencioso, não é de surpreender que o sistema tenha revelado-se impotente de, com eficiência e rigor científico, cumprir seus objetivos[21]
    .

    4.2.- O primeiro princípio tradicional do devido processo legal que é violado pelo sistema de resolução de disputas da OMC é o da publicidade. Desta falha decorre uma falta de transparência na ação dos governos, o que impossibilita o controle democrático de suas ações e frustra a apuração de responsabilidades, inclusive penais, de seus agentes. Alguns países, como o EUA, reagiram ao problema não somente disponibilizando suas petições ao público em geral, assim que apresentadas, mas também solicitando opiniões sobre os temas de relevância[22]. Esta posição é todavia minoritária.

    4.3.- Também é falha a transparência da atuação dos burocratas da divisão jurídica do secretariado. A OMC tem a ousadia de recusar-se, por escrito, a revelar o respectivo componente nacional, mas o agrupamento é claramente marcado por profundo etnocentrismo. Na prática, a atuação desta burocracia anônima e sub-reptícia tem revelado-se fundamental na seleção dos árbitros; na definição dos termos de referência (objeto da lide); na apresentação de subsídios legais e jurisprudenciais; e até na redação das decisões. Segundo alguns, as decisões dos painéis deixaram de ser independentes, em vista de tal determinante influência do secretariado[23]
    . Realmente, é de se suspeitar se ao menos uma, das dezenas de decisões do sistema de resolução de disputas da OMC, obedece a critérios de independência aplicáveis à função jurisdicional existentes em sociedades democráticas.

    4.4.- Outro dos principais defeitos do sistema é, como já mencionado anteriormente, a inadmissibilidade do instituto da reconvenção. Isto faz com que se instale um painel para a reclamação de uma parte; e um outro, com árbitros distintos, para a reclamação da outra parte, numa matéria conexa e, obviamente, com as mesmas partes. Tal situação possibilita, em tese, que os laudos dos dois painéis sejam diversos e até contraditórios, promovendo o desequilíbrio. A possibilidade da ocorrência de tal insólita e injusta situação não é remota, já que no curto período de existência da OMC tivemos um exemplo contundente nos casos Canadá vs. Brasil e Brasil vs. Canadá, que serão comentados no capítulo seguinte desta apresentação.

    4.5.- Uma situação análoga de decisões díspares ou conflitantes sobre o mesmo caso pode ocorrer em circunstâncias de litisconsórcio ativo quando são formados painéis distintos para os litisconsortes ou grupos deles. O problema pode ser agravado pela inexistência de normas fixas para os prazos, que são fixados em cada painel, o que traz o germe da instabilidade processual. Da mesma forma, a definição dos chamados “termos de referência” preocupa pelo potencial de agravar as falhas do sistema, pois em tese podem ser diversos para casos conexos. Assim, no sistema de resolução de disputas da OMC, a possibilidade existe que um mesmo caso possa ter dois ou mais painéis diferentes, dois ou mais termos de referência distintos, e duas ou mais decisões divergentes.

    4.6.- Outra falha do sistema diz respeito à sua omissão no tratamento das questões preliminares, como por exemplo as pertinentes aos conflitos entre tratados. Conforme lição do maior especialista inglês em direito internacional, “há circunstâncias em que um painel deveria ser capaz de resolver as disputas resolvendo os casos preliminarmente” [24]. De fato, há questões como as de conflito entre tratados internacionais que justificam a decisão preliminar. Tais conflitos ocorrem, por exemplo, entre os direitos assegurados a países em desenvolvimento signatários da cláusula transitória do tratado do Fundo Monetário Internacional e as obrigações decorrentes dos tratados da Rodada Uruguai. Infelizmente, esta desditosa hipótese é já uma realidade, tendo prejudicado gravemente países em desenvolvimento como a Argentina, a Coréia, a Indonésia, Índia e o Brasil, como veremos no capítulo seguinte desta apresentação.

    4.7.- Por sua vez, a questão da produção de provas, essencial em qualquer processo litigioso, recebeu atenção marginal na regulamentação do sistema, de vez que tratada perfunctoriamente no artigo 13 do DSU, que cuida basicamente da perícia. Como a processualística probatória é deficiente, tornou-se de grande relevância a discussão da temática do ônus da prova, nas questões apresentadas ao sistema de resolução de disputas da OMC até hoje. A inexistência de um processo físico ou mesmo virtual dificulta mais ainda o trabalho dos árbitros e prejudica a transparência do sistema.

    4.8.- Com relação ao órgão de apelação, também são importantes alterações para torná-lo dotado de normas processuais que lhe forneçam maior eficiência e que permitam-lhe funcionar como instrumento de afirmação da ordem jurídica. Por exemplo, deve-se prever que a segunda instância decida questões apenas de direito e não mais de fato. Para tanto, deve-se antes melhorar a sistemática de produção de provas em primeira instância. Da mesma forma, deve-se coibir a tendência legislativa no órgão de apelação, já que os membros da OMC não derrogaram sua soberania para a celebração de tratados internacionais, mas apenas submetem-se à arbitragem em questões de fato específicas e com sanções delimitadas em acordos multilaterais.

    4.9.- Por último, a questão da execução dos laudos também carece de uma formatação processual que elimine todos os problemas havidos no funcionamento do sistema de resolução de disputas da OMC. Em alguns casos, como na famosa questão das bananas entre a UE e os EUA, e também no contencioso da indústria aeronáutica entre o Brasil e o Canadá, a implementação dos laudos deu margem a novos painéis de arbitragem. As falhas nesta delicada área da execução podem não somente tornar todo o processo ineficaz, mas acelerar a criação de medidas unilaterais para o exercício arbitrário da própria concepção do resultado de uma arbitragem, como fizeram recentemente os EUA[25]
    .
    5.1.- Vimos anteriormente como a estrutura processual falha do DSU compromete irremediavelmente sua juridicidade e como a falta de transparência do sistema permite a ação de um pequeno grupo de burocratas da divisão jurídica do secretariado, de formação etnocêntrica e manipulado pelas principais potências comerciais, a distorcer a ordem jurídica e a fazer do sistema de resolução de disputas da OMC uma trágica caricatura. A estrutura bizarra do sistema permitiu, nestes cinco anos de funcionamento, a par do grotesco, graves distorções e injustiças contra os países em desenvolvimento e suas populações de miseráveis, como examinaremos adiante.

    5.2.- Dois casos, em particular, marcaram não somente uma derrota de dramáticas proporções estratégicas para os países em desenvolvimento, bem como uma ilegal derrogação de seus direitos decorrentes de outro tratado internacional, no caso o do Fundo Monetário Internacional, de potenciais devastadoras conseqüências econômicas e sociais. O tratado do Fundo Monetário Internacional admite restrições financeiras e comerciais decorrentes de situações de crise no balanço de pagamentos. Tais restrições foram expressamente admitidas pelo Entendimento sobre Dispositivos a respeito de Balança de Pagamentos do GATT 1994. Pois, em ambas as questões, o ORD derrogou tais direitos. Os casos envolveram, de um lado, a Índia, acionada pelos EUA; e, de outro, o Brasil, acionado pelos Canadá. Não resulta claro o porquê de terem Índia e Brasil aceito a jurisdição da OMC nas respectivas questões.

    5.3.- O primeiro destes casos, movido pelos EUA contra a Índia, diz respeito a restrições quantitativas mantidas pelo réu para a importação de aproximadamente 2.700 produtos agrícolas, têxteis e industriais que, segundo os autores, seriam inconsistentes com os dispositivos relevantes do Acordo sobre Agricultura e do Acordo sobre Licenciamento de Importações. A Índia defendeu-se, em linhas gerais, com base no argumento principal de que era signatária da cláusula transitória do tratado do Fundo Monetário Internacional, e que portanto administrava, nos termos do permitido por aquele tratado, controles cambiais e os fluxos financeiros internacionais, em função do desequilíbrio no balanço de pagamentos. Mais ainda, tal situação era admitida pelos tratados da Rodada Uruguai. Especificamente, alegou a Índia que suas restrições quantitativas eram uma direta decorrência do mecanismo de administração do balanço de pagamentos. O painel de primeira instância, presidido por um brasileiro[26], escandalosamente deu “contra legem” ganho de causa aos EUA. A decisão foi confirmada em segunda instância.

    5.4.- O segundo dos casos inicialmente referidos diz respeito a alegados subsídios ilegais à indústria aeronáutica brasileira, por conta do programa de financiamento a exportações (PROEX) mantido pelo o Brasil. Segundo o autor, o Canadá, a equalização de taxas de juros do PROEX, mediante a qual o governo brasileiro pagava a diferença entre o custo de captação da empresa aeronáutica local (EMBRAER) e os custos de captação praticados nos mercados internacionais para companhias de países desenvolvidos. Também esta situação de condições adversas de captação é reconhecida pelo tratado do Fundo Monetário Internacional, pois o Brasil era na ocasião signatário da cláusula transitória. Igualmente, a especificidade é reconhecida pelos tratados da Rodada Uruguai. Todavia, o Brasil não lançou mão do argumento, talvez porque seu Embaixador junto à OMC tivesse sido o presidente do painel do caso EUA versus Índia. Assim, uma defesa no mínimo canhestra levou o Brasil à maior derrota jamais sofrida por um país no âmbito da OMC, tendo que compor concessões ao Canadá de aproximadamente US$ 1.5 bilhão.

    5.5.- Dentre as bizarrias do ORD encontra-se a decisão do painel que decidiu o caso sobre alegados subsídios praticados pela Austrália à manufatura de bancos de couro para a indústria automobilística[27]
    . O caso foi movido pelos EUA. O painel chegou à grotesca decisão de determinar que a indústria australiana subsidiada devolvesse os montantes percebidos à guisa de subsídios ilegais. Ora, sabemos que as partes privadas não tem direito de ação no DSU. Sabemos ainda que, no devido processo legal, ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei e que uma sentença condenatória não é aplicável a quem não é parte do processo. Na mesma linha, o órgão de apelação do ORD decidiu, no caso dos camarões, movido pela Índia e outros contra os EUA, a admissibilidade do “amicus curiae” no processo do DSU, sem que haja previsão legal para tanto, nem sequer normas de procedimento[28].

    5.6.- Continuando com as bizarrias, no caso movido pela UE contra os EUA sobre o arsenal unilateral norte-americano, incorporado na seção 301 do Ato de Comércio, flagrantemente ilegal, um painel decidiu que a referida lei era inconsistente com as normas da OMC, mas deixou de sancionar a conduta ilegal, com base na promessa dos EUA de não aplicar a lei em contravenção às referidas normas! [29]
    Imediatamente, os EUA alardearam vitória, alegando que a decisão do painel reconheceu a legalidade da legislação doméstica[30]
    . No caso movido pela Coréia contra os EUA a respeito de compras governamentais, um painel decidiu que tinha competência para julgar a questão do erro em negociações de tratados internacionais! [31]
    Mais ainda, no terceiro caso a respeito de discriminação imposta pela UE contra importações de bananas da América Latina, foi reconhecido o direito de ação dos EUA, um país que não exporta bananas. [32]

    5.7.- As características tragicômicas do relatado neste capítulo seriam menos contundentes se o sistema não tivesse decidido, na devastadora maioria dos casos, contra os países em desenvolvimento, como veremos no próximo segmento.
    6.1.- Nas palavras de Cícero: “Cui bono? [33]
    “. A quem aproveita o sistema? Posso afirmar categoricamente que aproveita aos países desenvolvidos e aos seus interesses e, em particular, aos EUA. Dos 31 casos decididos em grau de apelação na OMC[34]
    , 18 foram pertinentes a confrontos entre países em desenvolvimento e desenvolvidos. Destes 18 casos, 13 foram ganhos pelos países desenvolvidos, mais de dois terços, e apenas quatro pelos países em desenvolvimento, dos quais dois com recusa de implementação[35]. Este levantamento exclui as concessões obtidas em acordos havidos em consultas sem recurso ao sistema de resolução de disputas propriamente dito. A contá-las, o número de derrotas dos países em desenvolvimento seria ainda maior. Um caso típico é o da indústria automotiva no Brasil, em que as montadoras estadunidenses, com apoio diplomático de seus representantes, exigiram uma política de conteúdo nacional ao governo do país. Aceitas as reinvindicações, os EUA moveram para extrair vantagens adicionais para compensar as vantagens que suas empresas já haviam auferido! E ainda alardeiam o próprio oportunismo[36].

    6.2.- Dos países em desenvolvimento, o Brasil foi o campeão das derrotas no sistema de resolução de disputas da OMC, tendo contabilizado quatro nos contenciosos em que esteve envolvido contra os países desenvolvidos, sem contar o humilhante acordo feito na área da indústria automobilística, anteriormente relatado. A Índia teve igualmente um desempenho sofrível, com três derrotas e nenhuma vitória; Coréia com duas derrotas e uma vitória (ineficaz); e Argentina, com duas derrotas e nenhuma vitória. Entretanto, é de se observar com gravidade que a vasta maioria das derrotas tem repercussões estratégicas potencialmente devastadoras. Uma das derrotas sofridas por Argentina, Brasil, Coréia, Índia e Indonésia diz respeito à derrogação de direitos fundamentais dos países em desenvolvimento, assegurados pela ordem jurídica internacional, tanto decorrentes do tratado do Fundo Monetário Internacional, como dos tratados da Rodada Uruguai.

    6.3.- Por sua vez, os EUA venceram 23 dos 25 casos em que estiveram envolvidos no mecanismo de resolução de disputas da OMC, apesar de serem o único país que adotou o DSU com a ressalva de prevalência de seu sistema legal interno o qual, por sua vez, possui o mais notório e infame arsenal de medidas comerciais unilaterais, abusivas e ilegais de todos os 137 membros do sistema multilateral de comércio. Este número exclui os 12 casos em que os EUA prevaleceram como resultado do processo de consultas[37]
    , no qual jamais cederam. Isto dá um índice de sucesso superior a 90%! Qualquer advogado com mínima competência sabe que em questões de obrigações bilaterais ou multilaterais o índice médio de sucesso situa-se muito abaixo e que, nem mesmo no caso de obrigações unilaterais, deve-se esperar um sucesso próximo dos 90%.

    6.4.- E qual a reação dos países desenvolvidos face ao quadro? Segundo os EUA, o DSU permite afirmar os seus direitos e proteger seus interesses mais eficazmente do que nunca[38]
    . Desta forma, no âmbito da revisão do DSU, os EUA afirmaram que as regras do sistema funcionaram muito bem[39]
    . Por sua vez, a União Européia afirma que o DSU “é um dos principais resultados da Rodada Uruguai” e que o ORD “é um elemento central para assegurar estabilidade e previsibilidade ao sistema multilateral” [40]
    . O cinismo de tal retórica, visto o tenebroso quadro hoje exposto, é bastante semelhante à santimonial ladainha sobre o livre comércio usada por Disraeli para justificar o contrabando de heroina para a China, pelo Reino Unido, EUA e Holanda[41].

    6.5.- Esta situação de menoscabo da ordem jurídica e do estado de direito nas relações internacionais para proporcionar a completa e eficiente expoliação dos países em desenvolvimento é totalmente injustificável, mesmo para os sofistas do terceiro milênio. Afinal, se o sistema fosse tão confiável como querem fazer crer seus apologistas, seria prescindível o uso das principais agências de espionagem e informação do primeiro mundo no acompanhamento dos trabalhos do ORD. A triste realidade é que, nos autos da fé da OMC, os miseráveis de hoje tem menores possibilidade de prevalecer do que os infelizes submetidos ao juízo da Santa Inquisição.

    6.6.- A percepção generalizada de tal fato pela opinião pública internacional, apesar da maciça campanha de propaganda promovida por certos países desenvolvidos, contribuiu decisivamente para a dramática perda de credibilidade da OMC a que aludi no início desta apresentação. Um relatório preliminar da Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) chegou a afirmar que “para alguns setores da humanidade, particularmente os países pobres do hemisfério sul, a OMC tornou-se um verdadeiro pesadelo” [42]
    . Hoje, não há países que desejem sediar a próxima reunião ministerial do organismo, em seguimento à realizada em Seattle, nos EUA.

    6.6.- À falência da prestação jurisdicional da OMC deve-se acrescentar que nos cinco anos subseqüentes à fundação do organismo, a prosperidade mundial esteve, mais do que nunca, circunscrita aos países desenvolvidos, particularmente os EUA e a UE[43]
    . Contemporaneamente, os países em desenvolvimento foram vítimas de uma enorme crise de volatilidade financeira internacional; diminuição de exportações; dramática redução dos preços de suas mercadorias agrícolas e demais produtos básicos; crises econômicas e generalizada desesperança. De acordo com números da própria OMC[44], tanto a Ásia como a América Latina tiveram um pior desempenho no comércio de mercadorias nos quatro anos subsequentes a 1995 do que no período precedente. E os preços das mercadorias agrícolas caíram consistentemente no período, sendo que mais de 30% após 1998[45]
    . Assim, a OMC, fazendo uso das palavras de Caius, tornou-se “damnosa hereditas” do GATT, um jogo de cartas marcadas onde, sob o diáfano verniz da especiosa juridicidade, esconde-se um sistema criado e administrado para promover a hegemonia e a prosperidade de uns poucos às expensas de muitos.
    7.1.- Mesmo um escândalo das proporções anteriormente aludidas pode prestar-se ao progresso, se ações enérgicas forem tomadas a partir da tomada de consciência de que toda a humanidade sairá inexoravelmente perdedora a prevalecer tal insustentável situação de abuso. Nas palavras de Benedetto Croce: “Oportet ut scandala eveniant; e questo vuol dire que anche lo scandalo, lo scandalo dello sproposito e della bestemmia offensiva della coscienza umana, é avanzamento[46]
    .” Ao contrário, chegaremos à triste conclusão de Gandhi de que o rótulo é indiferente quando a miséria é a mesma. A consciência do escândalo implica na inescapável constatação de que o sistema de resolução de disputas da OMC é total e irremediavelmente falho e enseja uma total reformulação.

    7.2.- Todavia, a reforma do DSU e do ORD, para ser eficaz, não poderá ser feita, isoladamente, mas sim dentro do contexto de uma ampla revisão da OMC e dos tratados da Rodada Uruguai. Neste sentido, estamos de acordo com o já mencionado relatório preliminar da Comissão de Direitos Humanos da ONU, no que pede “uma análise crítica sobre se a OMC deseja promover os benefícios igualmente entre países pobres e ricos[47]
    “, para que as regras da globalização atendam às necessidades humanas e não “reflitam uma agenda que serve apenas para promover os interesses corporativistas dominantes, que já monopolizam o comércio internacional[48]
    “.