PORTO ALEGRE – Minha última coluna, denominada “A deconstrução do direito internacional e o império da barbárie”, provocou um número grande de reações dos leitores. Naquele artigo, examinei o abandono, pelos Estados Unidos da América (EUA), do esforço de construção do direito internacional, bem como suas recentes ações contrárias às normas internacionais de mais alta hierarquia, que resultaram nos recentes escândalos de violações aos direitos humanos e práticas de crimes contra a humanidade, como a tortura, por agentes do governo daquele país.
Particularmente, os leitores, quase todos advogados, mostravam sua mais absoluta estupefação pelo fato de que advogados americanos teriam sido utilizados, e aparentemente o fizeram prazerosamente, para rever e aconselhar o governo dos EUA na confecção de um “manual de interrogação” que, na prática, tornou-se um manual de tortura. Não seria tal aconselhamento a própria negação da essência da atividade de um profissional do direito? Qual o papel das ordens dos advogados face a esse descalabro? Como irá se pronunciar o Judiciário interno americano a respeito? Quais as probabilidades da aplicação da jurisdição internacional no caso?
Devo dizer que as modalidades de tortura elencadas no “manual de interrogação” são vedadas pelo próprio direito constitucional interno dos EUA desde há muito. Assim, a proibição à privação de prisioneiros a água e alimentos foi estabelecida no caso Greenwald vs. Wisconsin, de 1968. A exposição a luzes intensas foi proibida já no caso Commonwealth vs. Jones, em 1929. A privação de sono foi vedada no caso Darwin vs. Connecticut, de 1968. No caso Ashcraft vs. Tennessee, de 1944, face a uma situação em que o prisioneiro foi mantido incomunicável por 36 horas e privado de descanso ou sono durante este período, mas sob interrogação contínua, o tribunal decidiu que a situação “era inerentemente tão coercitiva que a sua própria existência é incompatível com saúde mental”. Reconhecidamente, o tratamento dos prisioneiros iraquianos sob as forças de ocupação dos EUA é muito pior.
Assim, se o próprio direito interno americano veda (e sanciona) tais práticas, como é que uma corrupção tamanha dos valores jurídicos domésticos, além do direito internacional, pôde ocorrer naquele país. O fato é que os EUA não são hoje o país que foram há 30 anos atrás, quando fiz meu curso de direito constitucional americano, na Hastings School of Law, da Universidade da Califórnia, em São Francisco. Naquela ocasião, meu professor, o respeitado William Ray Forrester, enfatizava em suas lições o respeito às liberdades individuais, à vida e aos valores humanos.
Nos EUA de Bush, no entanto, o professor John Yoo, da mesma Universidade da Califórnia, guindado a um posto de responsabilidade no governo, defende a excepcionalidade dos EUA face às normas de direito internacional e a não aplicação do direito interno a cidadãos estrangeiros sob a custódia legal americana. Esta aberração vai além das costumeiras violações do direito internacional por parte daquele país, no sentido de colocar suas normas internas acima daquelas do direito multilateral.
Nesse caso, uma justificativa foi desenvolvida para o afastamento do direito interno e do direito internacional, uma anomia ficta, tanto voluntariosa como virtual. Com fundamento em tal disparatada justificativa, os demais conselheiros jurídicos governamentais aprovaram o manual de tortura. Seus nomes permanecerão cobertos pela infâmia. O direito e a consciência humana clamam por sua punição.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).