SÃO PAULO – Ao final da 1ª Guerra Mundial, os navios de guerra estavam a sofrer uma substituição de suas caldeiras a vapor para o óleo, que dava maior eficiência motriz. Assim, a frota britânica, a mais importante do mundo, estava em processo de transformação. Ocorre que o Reino Unido dependia dos EUA (Estados Unidos da América) para o fornecimento de cerca de 80% de suas necessidades de petróleo, o que representava um ônus considerado grande ao tesouro de sua majestade imperial.

Contemporaneamente, havia sido descoberto petróleo na wilayet (província) otomana de Mosul, habitada por curdos, uma etnia nacional não árabe. As forças aliadas haviam acordado que, ao final do conflito, “libertariam” as nações sob dominação da Porta Sublime, o Império Otomano Turco, mas que seria respeitado o território nacional da potência oriental. Os rapazes estrategistas britânicos, liderados por Winston Churchill, então lorde do almirantado, ou ministro da marinha, influenciaram o então primeiro-ministro, Lloyd George, a obter a colocação da zona petrolífera na esfera de influência imperial.

Para tanto, Lloyd George, durante os trabalhos da Convenção de Versailles, que ditou os termos dos vencedores aos vencidos no conflito armado, convenceu os líderes dos EUA, Woodrow Wilson, e França, Georges Clemenceau, a subtrair a wilayet de Mosul à Turquia. Como, todavia, a província de Mosul não tinha saída para o mar, os cartógrafos imperiais resolveram somá-la aos territórios árabes adjacentes da então chamada Mesopotâmia. Esta compreendia as áreas sunitas ao norte, na região de Bagdá, e xiitas ao sul, na área do porto de Basra ou Basora, onde ainda não havia sido descoberto petróleo.

Faltava apenas um nome para o novo estado-cliente, tendo sido escolhido o léxico árabe Iraque, para substituir o grego Mesopotâmia. Igualmente, elegeu-se um líder fantoche, o hachemita Faysal Hussein, que já havia prestado serviço assemelhado para os britânicos, na Síria. O país esteve sob um mandato britânico de 1921 a 1932, quando obteve a independência nominal. Hussein e seus dependentes prestaram-se ao papel de lucrativos sátrapas britânicos até sua deposição por forças nacionalistas na revolução de 1958.

A recente invasão do Iraque e deposição de seu governo legítimo por potências estrangeiras em violação ao direito internacional e à Carta da ONU (Organização das Nações Unidas), conforme já analisei em A deconstrução do direito internacional e o império da barbárie, tornou o invasor tyrannus absque titulo, pelo vício de legitimação e, posteriormente, tyrannus quoad exercitium, pelo exercício ilegal do poder.

Dentro do seu exercício ilegal do poder, as forças de ocupação, contestadas por forte movimento insurgente e sem controlar a maior parte do território do Iraque, resolveram, sob fortes restrições de governança, instalar uma assembléia geral constituinte para a elaboração de uma minuta de constituição. O trabalho deveria ter sido concluído até meados de agosto, mas foi apresentado, sem votação formal, cerca de 15 dias após expirado o prazo. Essa minuta será submetida a um referendo nacional.

O trabalho, que tem forte oposição, começa com os dizeres, “nós, os filhos da Mesopotâmia, terra dos profetas e dos imãs sagrados, os líderes da civilização e criadores do alfabeto, berço da aritmética…”. A minuta reconhece que o Islã é uma fonte básica do direito e que nenhuma lei poderá contradizer os seus princípios de jurisprudência. A suprema corte terá juízes laicos e religiosos. Um quarto dos assentos parlamentares é reservado às mulheres. Direitos humanos são reconhecidos.

A minuta prevê um regime parlamentar e dá uma formatação federalista ao país, permitindo às 18 províncias a possibilidade de formação de regiões federadas, incluindo o direito a ter forças armadas de caráter regional. A distribuição da renda do petróleo deverá ser, ao menos inicialmente, distribuída de acordo com um critério proporcional à população.

Pode-se prever a formação de regiões federadas de acordo com as especificidades étnicas e religiosas. Assim, os curdos terão a sua, ao norte, da mesma forma que os xiitas, ao sul. Ainda que os sunitas, ao centro, não tenham formalmente a sua, pelo boicote que fazem à iniciativa constitucional, a sua região estará formada by default.

Como as regiões produtoras de petróleo estão ao norte e ao sul, ainda que aprovada a constituição no referendo e ainda que seus termos sejam efetivamente aplicados ao território iraquiano e exequíveis, pode-se ainda com segurança prever a ocorrência de sérios conflitos internos dentre as diversas facções. São os fantasmas de Versailles que voltam a atormentar o imperialismo.

Quarta-feira, 28 de setembro de 2005