1 – Proponho-me abordar a problemática ética-jurídica da clonagem humana. E sublinho humana, precisamente, para referir que é de clonagem humana que se trata. Com efeito, a clonagem pode ser de pessoas, de células somáticas ou de animais.
A clonagem de células somáticas em seres humanos é de preconizar, cumpridas determinadas regras nomeadamente a do consentimento informado, confidencialidade, etc.
O método de cloning aplicado a animais ou a plantas também não suscita particulares problemas éticos, desde que se observem normas intencionalmente aceites para a experimentação animal e a preservação da biodiversidade seja garantida.
No entanto, a clonagem humana reprodutiva não é cientificamente justificada, nem rentável do ponto de vista económico e é reprovável por consubstanciar a instrumentalização da pessoa .
O Homem é único, livre, incondicionável implicando o reconhecimento da sua diversidade a aceitação da sua liberdade e igualdade .
Não existe homogeneidade na Humanidade. Esta é constituída por indivíduos diferentes, mas simultaneamente iguais em dignidade e direitos.
É cada vez mais necessário repersonalizar o direito salvaguardando a dignidade da pessoa, o seu valor, bem como a sua identidade única e irrepetível que constitui, aliás, o cerne, o núcleo do direito à diferença .
O Homem já não se limita à descrição dos processos biológicos, ele vai mais longe. Tenta, mesmo, modificar o curso da evolução das espécies. E, desde já, uma pergunta se coloca : Qual o futuro da humanidade e, portanto, do Direito e dos seus fundamentos a partir do momento em que for viável construir um novo Homem "igual" a um outro Homem ?
A Revolução Biotecnológica, menos política e económica, e mais social e cultural, ao tomar possível agir sobre as células da vida ameaça desnaturar a identidade humana e fabricar, em laboratório, outros seres autónomos planeados pela Ciência e a Técnica .
É o rompimento total com o passado e a entrada num novo mundo: o mundo novo da aventura da biotecnologia. Está aberto definitivamente o conflito entre "a força da razão", a tentação da ciência em criar um "homem novo", e a necessidade de manter "as raízes" da nossa própria identidade. É a controvérsia sem termo, dados os avanços rapidíssimos da técnica e o evoluir, embora a velocidade menor, dos valores que caracterizam a vida social. Uma civilização com outras temáticas? É o grande, o maior desafio do século XXI .
2 – A biotecnologia ao passar do conhecimento da vida ao poder sobre a vida está a caminhar a um ritmo alucinante, nem sempre permitindo a pausa indispensável à reflexão .
A solução não está, de modo algum, em condenar todos os avanços da biotecnologia, caindo num dogmatismo fixista, pois seria esquecer que a Ciência conquistou o seu lugar na sociedade, e que ela tende sempre a ultrapassar todas as referências e condenações. Porém, também, não será de aceitar todas as suas tentações e muito menos julgar como irreversível que "a terceira via" tem a característica peculiar e trágica de surgir num mundo que não está preparado para assumir todas as suas consequências.
Tem de se encontrar uma solução de compromisso razoável entre a lealdade, a necessidade absoluta de conservar e defender as raízes da identidade humana, e, o direito fundamental da liberdade de conhecer e investigar.
3 – Contudo, não é fácil atingir este desidrato.
É claro que o reforço da armadura legal não vai evitar todos os perigos, fantasmas e medos que estão no caminho da nova biotecnologia. Os comandos da lei nem sempre são respeitados, todos o sabem. Kelsen adiantou, mesmo, que uma regra e tanto mais jurídica quanto mais possível é a sua violação.
Mas, quando o entrechoque de interesses e contradições se instala naturalmente na vida das pessoas, a regra jurídica é o instrumento último para impôr condutas obrigatórias.
No direito português existe um vácuo legislativo na medida em que as normas jurídicas que expressamente disciplinam a procriação assistida, artigo 1839º, número 3 do Código Civil, artigo 168º do Código Penal, artigo 9º da Lei 3/84 de 24 de Março e o Decreto – Lei 319/86 de 25 de Setembro são claramente insuficientes, encontrando-se desinseridas do conjunto do sistema jurídico e, o que é mais grave, suscitam muitas dúvidas e contradições .
4 – Inúmeras questões do foro jurídico podem ser equacionadas se a clonagem humana vier a ser possível .
Será ética e juridicamente admissível "fabricar" um indivíduo fenotipicamente idêntico ao ser que lhe deu origem genética? [1] [2] [3] [4] [5] .
Suponhamos o caso de um casal, Walter e Leila. Leila resolve "fabricar" um ser igual a si própria. Suscita-se, desde logo, uma questão interessantíssima no âmbito do Direito da Filiação. A pessoa que nasce é sua filha ou sua irmã? Nos termos do n° 1 do art. 1796° do Código Civil Português a filiação resulta do facto do nascimento. Logo, Leila é a mãe. Mas, é a mãe da própria gémea ?! … E o pai quem é? Ou melhor, será que neste caso se pode falar em paternidade uma vez que o clone recebe a informação genética de um único progenitor? Se a noção de progenitura for reduzida à transmissão da carga genética chegamos à conclusão que o filho só tem um ascendente biológico. Porém, segundo o preceituado no número 2 do art. 1796° e no art. 1826° do C.C. o pai é o marido da mãe . É a consagração da velha máxima "Pater is est quem justae nuptiae demonstrand". Logo, no caso em análise o pai seria Walter, marido da Leila .
E se Leila resolver clonar-se e para este fim celebrar um contrato de gestação uterina com uma mãe portadora, hospedeira ou de aluguer. Quem é a mãe? Segundo o critério legal anteriormente referido a mãe é quem dá à luz. Logo, seria a portadora. E, como já referi, face à lei, o pai seria o marido da mãe. Ou seja, o marido da portadora. E, se o marido da mãe de aluguer tiver consentido na inseminação artificial da sua mulher não pode impugnar a paternidade segundo o disposto no art. 1839º, nº 3 do Código Civil.
Este artigo determina que não é permitida a impugnação de paternidade com fundamento em inseminação artificial ao cônjuge que nela consentiu .
Retomando a questão anterior de saber se o clone é descendente ou irmão gémeo do ser clonado as consequências serão diferentes nomeadamente na área do Direito das Sucessões. O clone integrará a 1ª ou a 3ª classe de sucessíveis do art. 2133°? A 1ª classe é a dos descendentes e a 3ª é a dos irmãos. Assim, herda como descendente ou apenas como irmão? Será um herdeiro legitimário ao abrigo do art. 2157°? E como tal não pode ser privado da sua legítima (art. 2156°), a não ser no caso raro no direito português da deserdação (art. 2166°)?
A clonagem humana implicará, assim, a modificação de conceitos fundamentais do Direito Civil.
Aberto o caminho para as Rank Xerox da espécie humana ?
É um mundo novo ! …
5 – Se um programa genético pode determinar a vontade e capacidade de perceber e decidir do ser humano está, também, desde logo, em causa um princípio fundamental do direito: o princípio da autonomia da vontade, como expressão de uma regra mais ampla, a grande máxima da liberdade: é lícito tudo o que não é proibido.
A autonomia da vontade é o princípio segundo o qual, dentro dos limites estabelecidos na lei, a vontade expressa livremente tem a faculdade de criar, modificar e extinguir relações jurídicas .
Aceitar o "Homem Novo" de vontade pré-determinada pela Técnica seria reduzir o Direito a um absurdo, a um impossível .
E, deste modo, julgo poder afirmar que é, cada vez, maior a necessidade de repersonalização do Direito salvaguardando a dignidade da pessoa humana, o seu valor assim como a sua identidade única e irrepetível que constitui, aliás, o cerne, o núcleo do direito à diferença .
Cada ser humano tem o direito de ser diferente de todos os outros e é nesta diferenciação que se constrói o equilíbrio social.
E se assim não fosse, princípios fundamentais que se baseiam na igualdade, quer políticos como a democracia (um homem um voto), quer jurídicos (a lei é igual para todos), etc., passariam a constituir aberrações, utopias sem nenhum sentido de força e lógica.
A riqueza de uma nação encontra-se na diversificação humana e não na sua homogeneidade, na identidade da espécie e na diversidade dos indivíduos.
Tudo o que faz com que Kelsen seja Homem também se encontra nos outros homens, mas aquilo que determina que esse homem seja Kelsen é pertença apenas de um só. Isto é, a pessoa não é, assim, a natureza humana em Kelsen ou Platão, é Kelsen ou Platão. Ela compreende além dos princípios específicos, características e qualidades individuais, ao ponto de não ser suficiente dizer que ela é composta de tal alma, de tal carne ou de tais ossos.
A alma, a carne e os ossos determinam a natureza humana, mas é, precisamente, esta alma, esta carne e estes ossos que determinam esta pessoa.
Para o grupo e para a espécie o que confere valor genético a um ser humano não é apenas a qualidade dos genes em si, mas, também, o facto de ele não ter o mesmo conjunto de genes que os outros, a circunstancia de ser único e irrepetível.
Perturbar todos estes mecanismos naturais da vontade, razão, instintos, reflexos condicionados, etc., por um programa biotecnológico é pôr em causa valores, conceitos, ideais que distinguem a nossa Civilização e de modo particular os princípios e fundamentos do Direito.
É pertença da Humanidade o respeito pela biodiversidade.
6 – Parece útil, ainda, colocar a questão de saber se o complexo mundo das novas tecnologias da reprodução assexuada não acarretara virtuais implicações na clássica distinção dos elementos da relação jurídica? Sujeito, objecto, facto e garantia? O Homem é sempre o sujeito e nunca o objecto dessa relação (é evidente que não me estou a reportar a questão dos poderes deveres ou poderes funcionais ).
Não se poderá questionar se o ser que resulta da reprodução assexuada pelo método de cloning não é um produto industrial, que foi construído segundo parâmetros pré-determinados e que se compra, vende, troca, manipula? O clone continua a ser uma pessoa sujeita de direitos ou passou a ser, em determinados casos, uma coisa, e como tal objecto na relação jurídica?
Alterados, deste jeito, os elementos da Relação Juridica?
7 – A última fronteira nesta escalada de hipóteses suscitada pela biotecnologia seria a de uma Humanidade dividida em duas ou mais "raças" com destinos diferentes.
É evidente que este labirinto de novos caminhos, que se entrecruzam, sobrepõem e multiplicam, nos coloca uma pergunta inquietante: qual o futuro da humanidade a partir do momento em que a engenharia genética pode "fabricar" um novo homem? Novas raças, uma de super-homens, belos, fortes e inteligentes, de amos, e, outra de infra humanos para servir aquela?
Consubstanciaria o fim da unidade da pessoa humana que só com o culminar dos séculos foi conseguida pelo Direito com todas as dificuldades conhecidas.
8 – Nessas novas situações nem tudo é linear. A produção humana pelo método de cloning está, por vezes, imbuída de uma carga eminentemente eugénica: os profetas da clonagem tentam obter o gémeo ideal, a (re) produção dos grandes Homens da Humanidade. Criar-se-iam Picassos, Mesdames Curie, Sócrates e não só homens comuns.
No entanto, como no meu livro "Direito ao Património Genético" [6] escrevi, não podemos radicalizar os problemas e concluir que se hoje criássemos por clonagem cinco ou dez Picassos, Mesdames Curie ou Sócrates obteríamos novamente Picasso, Madame Curie ou Sócrates pois o contexto familiar, cultural, político, económico, social, etc. seria outro. Se é certo que por um lado, a carga genética de um indivíduo é fundamental, por outro lado não podemos descurar o contributo essencial fornecido pelo meio. Assim sendo, para "reproduzir" este contexto seria necessário "clonar", também, todos os outros indivíduos que dele faziam parte e que poderiam influenciar os clones de Picasso, Madame Curie ou Sócrates?! …
Consubstanciaria, sem dúvida, a reprodução de seres com as mesmas características mas, não seria portanto uma fotocópia milimétrica.
Se é verdade que a carga genética participa da dignidade da pessoa humana como elemento característico da sua corporalidade e da sua identidade, ela não esgota o valor e a riqueza da pessoa humana. A pessoa, graças à sua vida espiritual, transcende a corporalidade e, logo, a própria carga genética. Isto implica que ao longo de cada percurso existencial, a vida espiritual, a cultura e o meio de vida enriquecem a personalidade para além do puro determinismo genético e biológico.
Cada ser vivo é o produto do diálogo entre genes e meio de vida, e no caso concreto do ser vivo Homem, ser espiritual, o enriquecimento produz-se não apenas a nível do meio ambiente, mas, também, a nível cultural e espiritual. A título de exemplo cito o caso de dois gémeos idênticos, a personalidade pode desenvolver-se de modo diferente.
Porém, a animação da clonagem humana continua sujeita a construções míticas e delírios, com visionários a profetizarem a reconstrução do Homem e do mundo.
E para concluir ….
Um Homem novo para um mundo novo. Ou, um Homem igual (porque clonado) para um mundo diferente! …
A pessoa humana deixou de ser a protagonista da sua própria história e da História do mundo em que vive. Ela é o produto, o fruto das forças que ela própria gerou.