SÃO PAULO – O Senado italiano aprovou em 23 de março de 2005 um projeto de lei que implicará numa profunda reforma constitucional no país, se vier a ser ratificado pela Câmara e novamente pelo Palácio Madama. O texto aprovado causa estupefação por instituir o federalismo num país que somente foi unificado, num esforço heróico, em 1861. A iniciativa causa ainda perplexidade pelo anacronismo, devido ao comprometimento da Itália e demais 24 membros da União Européia, com um projeto supranacional de federalização, consubstanciado numa Constituição Européia.
Indaga-se: qual então seria o verdadeiro propósito de tal reforma? Certamente, a meu ver, a maior centralização do poder político e a concentração de poderes foram os fatores de grande inspiração da iniciativa. Como resultado, a grande derrotada da reforma, se vier efetivamente a ser aprovada de maneira definitiva, será a democracia italiana.
De fato, como já propus em meu artigo “A tirania externa como ameaça às liberdades democráticas: o caso inglês”, é uma lição persistente da história que a tirania externa acabe por comprometer o estado de Direito no âmbito interno dos países agressores. Como é sabido, a Itália tristemente faz parte da coligação que, em violação ao direito internacional público, procedeu à invasão do Iraque.
Assim, a tirania externa abriu o apetite das forças políticas que sustentam o atual governo italiano no sentido de uma majoração das atribuições do executivo, diminuição dos pesos e contrapesos entre os três poderes, aumento das interferências do executivo no Poder Judiciário, e diminuição dos poderes do presidente do país, em detrimento daqueles do primeiro-ministro.
Dessa maneira, a Corte Constitucional terá os mesmos 15 juízes, mas sete dos quais serão de indicação do Parlamento, quatro do chefe de Estado e apenas quatro da magistratura, o que representa um aumento das indicações políticas. Por sua vez, o chefe de Estado, o presidente da República, perde o poder de dissolver a Câmara em favor do chefe de Governo, o que representa, a meu ver, uma grande ameaça ao equilíbrio democrático num regime parlamentarista, como é o caso da Itália.
Por sua vez, o chefe de Governo poderá prescindir do voto de confiança da Câmara (?), ao mesmo tempo em que terá os plenos poderes de dissolvê-la! Contrario sensu, a maioria parlamentar poderá apresentar uma moção de “desconfiança construtiva” (?), a qual deverá indicar o nome de um novo chefe de Governo. Ficam assim institucionalizados os golpes internecinos da maioria, em detrimento dos tradicionais poderes do Parlamento.
No tocante à reforma federalista, caberá às regiões o poder de legislar exclusivamente sobre a assistência e organização sanitária; a organização escolar; a gestão dos estabelecimentos de ensino, inclusive curricular; e sobre a polícia administrativa regional e social. Contudo, haverá uma cláusula de interesse nacional, segundo a qual o governo federal poderá vetar uma lei percebida contrária àquela conveniência. Num país onde, tradicionalmente, a eficiência política é muito baixa, pode-se com facilidade prever o imbróglio decorrente dos conflitos entre a decisão regional e o percebido interesse nacional.
Mais ainda, o percebido interesse nacional está abaixo do interesse comunitário europeu, o que aumenta a confusão institucional e o grau de instabilidade e insegurança legislativa. Esses fatores acarretarão um comprometimento do clima empresarial, ao mesmo tempo em que a federalização tende a aumentar a burocracia e os custos de mantê-la.
Pobre Itália, que não tem os políticos que merece! Pobre povo italiano, que irá sofrer, uma vez mais, o arbítrio, a instabilidade e a desesperança!
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).