Sustentação oral por Durval de Noronha Goyos Júnior perante a 12ª. Câmara de Direito Criminal do egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, em prol de José Aldo Rebelo Figueiredo, em recurso no sentido estrito, São Paulo, 04 de abril de 2018.
L’odio è la catena più grave insieme e più abbietta, con la quale l’uomo possa legarsi all’uomo. Ugo Foscolo
Egrégios Julgadores!
Trata-se de Recurso em Sentido Estrito interposto em prol de José Aldo Rebelo Figueiredo contra decisão que rejeitou a queixa crime proposta por ele contra Ricardo Eugênio Boechat, devido a transmissão radiofônica pela emissora Rádio BandNews FM, na qual o jornalista imputou ao ora Recorrente a prática do grave crime de homicídio culposo de 15 pessoas. Tal imputação caluniosa foi feita pelo jornalista Ricardo Boechat por atribuir as mortes ao mal funcionamento de um radar meteorológico da região ao CEMADEM, órgão vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, do qual o Recorrente era Ministro de Estado.
Eivada de solecismos, a imputação do crime ao Recorrente deu-se nos seguintes termos:
“Aldo Rebelo, você é cumplice de homicídio culposo na Bahia. Você não tinha nada de estar cuidando de radar na Bahia. Quem tinha que estar cuidando de radar na Bahia era a comunidade. Mas tem que ter grandes contratos, grandes acertos, grandes negócios, grandes discursos… Aí vem a chuva e mata 15 soteropolitanos. E o ministro continua no carro oficial dele tranquilaço, não está sentindo a menor pontinha de culpa. Tu matou 15, Aldo Rebelo”. (sic)
Senhores Julgadores, é de uma evidência solar o acintoso disparate das críticas, que fogem ao caráter informativo para, criminosamente, acusar o Recorrente de corrupção e de homicídio de 15 pessoas, mortas por desabamentos causados por chuva em Salvador da Bahia. Que ódio vigoroso, como teria dito Molière. No entanto, a decisão recorrida pretende que a alocução citada representasse apenas uma crítica mera jornalística no exercício da liberdade de expressão.
O Recorrente, Aldo Rebelo, é também jornalista e uma figura pública impoluta que foi vereador em São Paulo; deputado estadual no Estado de São Paulo; deputado federal pelo mesmo estado por seis legislaturas; presidente da Câmara dos Deputados; presidente da República e ministro de Estado de três pastas diversas. É também um bonus pater familias, como se dizia dos homens de bem. Presentemente, é presidente do conselho da União Brasileira de Escritores (UBE), entidade que defende o direito de livre expressão há mais de oito décadas, inclusive durante o Estado Novo e a Ditadura Militar. Por esta defesa, diversos de seus membros e dirigentes, como Jorge Amado, Graciliano Ramos, Caio Prado Júnior e Luiz Alberto Moniz Bandeira, sofreram nos cárceres do arbítrio.
Na UBE, sabe-se que a liberdade de expressão é um termo genérico que compreende a liberdade de opinião, a liberdade de imprensa, de acesso à informação, de associação, pensamento, consciência, opção política e religião. É certo também que a liberdade de expressão tem limites assentados e limitados por Lei, todas as vezes em que é abusada, como na apologia ao crime, na prática de ilícitos penais e, também, como ocorre hoje frequentemente, no discurso de ódio. Esse se manifesta na disseminação de ideias de superioridade racial, de intolerância às diferenças culturais, de discriminação de gênero e de orientação sexual, na violência pelo exercício arbitrário das próprias razões ou opiniões.
O discurso de ódio é uma manifestação de intolerância alimentada quase sempre pelo fanatismo religioso ou político, que vem nas mais das vezes cumulada com a ignorância e a arrogância. No Brasil, o discurso de ódio, acompanhado pelo deboche, pela libertinagem e pelo achincalhamento, aviltado pelo baixo calão, é também usado para se alcançar altos níveis de audiência, o que tem um considerável impacto comercial. Bem lembrou o escritor inglês, Craig Brown, escrevendo em 1990, no Daily Telegraph, “journalism could be described as turning one’s enemy into money.” A referida prática teria mesmo começado na Roma renascentista, com Piero Aretino.
Tal insana lógica leva o agressor a aumentar de maneira não apenas habitual, mas também crescente, a violência de seus atos. Como disse o Barbiere di Siviglia, “all’idea di quel metallo – portentoso, onnipossente,/un Vulcano la mia mente – già comincia a diventar”. No direito comparado, há hoje muitas iniciativas nacionais, regionais e mesmo multilaterais, com o propósito de coibir o discurso de ódio, que cresceu exponencialmente com o advento e disseminação da Internet e das mídias sociais.
Como escreveu o grande escritor italiano, Ugo Foscolo, “o ódio é a corrente mais grave e abjeta que possa ligar o homem ao homem”. Portanto, o discurso de ódio e suas execráveis manifestações devem ser refreadas dentro da Lei. A Lei brasileira é clara e peremptória: caluniar alguém imputando-lhe falsamente fato definido como crime… (art 138 do Código Penal”. Como bem lembrou o grande escritor francês Albert Camus, membro da Resistência, recipiente do Prêmio Nobel de 1957 e também vítima do nazismo, “quando não se tem caráter, é preciso mesmo valer-se de um método”. E qual é o método de rigor? Sem dúvida, trata-se do respeito à Lei, na falta do qual paga-se a sanção penal aplicável.
Pois bem, Senhores Julgadores, é fato inconteste que o indecoroso Senhor Ricardo Eugênio Boechat é, ou já foi, processado em pelo menos quinze outras ações similares pela mesma conduta execrável, apenas no Foro de São Paulo. Tal infame elenco indica uma contumácia na violação das leis da Republica e uma arrogante convicção de impunidade ao atribuir crimes a terceiros com objetivos torpes. Ressalte-se ainda, a bem da verdade e de maneira bastante generosa, que a qualidade do jornalismo de Ricardo Boechat não se compara àquela de Graciliano Ramos.
Tendo sido abundantemente demonstrada na Inicial a prática do ato criminoso típico com a plena consciência da falsidade das alegações, torna-se clara a absoluta e imperiosa necessidade do acolhimento deste Recurso, para que seja recebida a queixa crime proposta pelo Recorrente e iniciada a instrução penal pertinente.
Observe-se, por último, que a melhor jurisprudência pátria tem dado acolhida à presente interpretação da Lei, como não poderia deixar de ser. De fato, no caso de Sérgio Fernando Moro contra o jornalista Miguel Baia Bargas, o réu blogueiro restou condenado pelo Tribunal Regional Federal da 3ª. Região pelos crimes de calúnia e difamação ao acusar o autor de corrupção. Isso tomou lugar num blog com baixa exposição midiática, assim pouco comparável com o veículo usado pelo Recorrido nos presentes autos, uma rádio objeto de concessão pública. No julgado, publicado no último dia 23 de março de 2018, o relator afirma que o réu “claramente ofende sua reputação e, ao imputar-lhe falsamente crimes, patenteia o propósito de ofender sua honra, a caracterizar as práticas de difamação e calúnia.”
Senhores Julgadores, cabe ao Judiciário no presente caso ao mesmo tempo afirmar o princípio constitucional da isonomia, bem como evitar que seja inocentado o criminoso em detrimento do inocente ofendido gratuita, feroz e injustificadamente em sua honra.
Justiça…
Tenho dito.
São Paulo, em 4 de abril de 2018.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).