O constitucionalista português J.J. Gomes Canotilho afirma que "a sistematização dos problemas constitucionais obedece a um triângulo de questões: (i) O que é uma Constituição; (ii) Qual o direito posto na Constituição e (iii) Qual a melhor Constituição" [1] . A partir destas questões, que resumem a essência dos problemas constitucionais, pretendemos neste artigo efetuar algumas reflexões críticas sobre a realidade constitucional brasileira, apontando ao final para a necessidade urgente de uma nova Carta Magna para o Brasil. São quase infinitas as tentativas de conceituar o que é uma Constituição. Daí a escolha por algumas que nos parecem mais expressivas pelo seu rigor, precisão, clareza e influência nas doutrinas constitucionais. Ainda sob o efeito direto da Revolução Francesa de 1789 e da Revolução Alemã de 1848, o advogado socialista alemão Ferdinand Lassalle, em uma conferência proferida em 1863 para sindicalistas e operários, portanto para um público não iniciado em questões constitucionais, afirmou, sem rodeios, que os problemas constitucionais não são problemas de direito mas de poder e que a essência da Constituição nada mais é do que a soma dos fatores reais de poder. A Constituição quando não consegue exprimir os fatores reais de poder não passa de uma "folha de papel"[2].
2. Passaram-se várias décadas até que Hans Kelsen, talvez o maior jurista do século XX, formulasse um outro conceito, diametralmente oposto ao de Lassalle, porque "esvaziado" do seu conteúdo político, representado pela imagem espacial da supra-infra-ordenação que nos faz ver o ordenamento jurídico como uma estrutura piramidal, onde a Constituição ocupa o vértice da pirâmide. Nesta representação, a Constituição seria a Norma das Normas porque: (i) Está acima de todas as normas; (ii) Regula a criação das demais normas (sistema autopoiético); e (iii) Dá validade às normas hierarquicamente inferiores, quando compatíveis com ela [3]. Esta formulação, marcante por sua operacionalidade e adesão dos sistemas jurídico-constitucionais positivos, há muito vem sendo combatida por excesso de formalismo (teoria descritiva/não valorativa) ou ainda mais recentemente vem sendo abalada por novos fatos impostos pelo direito comunitário, a globalização e a desterritorialização do Poder [4].
3. Como crítica à conceituação kelseniana, destaca-se, em primeiro lugar, aquela formulada por Carl Schmitt, para quem no fundo de toda norma reside uma decisão política do titular do poder constituinte, vale dizer, do povo, na Democracia. No interior da Constituição estariam as decisões políticas fundamentais que um povo adota por si mesmo e com isso se transforma em Nação. A essência da Constituição, portanto, seriam as decisões políticas fundamentais (constituição em sentido material), enquanto as demais normas nela contidas (constituição em sentido formal), seriam leis constitucionais que só diferem das demais leis infraconstitucionais por serem alteráveis por um procedimento dificultado. Para Carl Schmitt essas normas poderiam perfeitamente estar fora da Constituição, pois elas não fixam a existência política de um povo em sua concreta forma de ser [5].
4. Outra crítica, e esta vale contra Kelsen e Schmitt, é aquela de Rudolf Smend, para quem no interior da Constituição está a dinâmica vital em que se desenvolve a vida do Estado, isto é, de seu processo de integração. Assim o que dá vida à uma Constituição são os impulsos e motivações sociais da dinâmica política, vale dizer, o sentir primário da comunhão espontânea de um povo (integração espiritual); os seus líderes com capacidade de promover a adesão e não apenas de fazer um bom governo (integração pessoal); o espírito comunitário, representado pelas marchas militares, manifestações de massa, eleições e plebiscitos (integração funcional); e os valores que aglutinam, os conteúdos simbólicos representados pelas bandeiras, escudos, símbolos e festas nacionais (integração material)[6]. As idéias de Smend passam hoje por um processo de revalorização na medida em que a Constituição começa a ser vista novamente como uma "magna carta da identidade nacional" e um "centro de convergência de valores e princípios" [7].
5. Uma outra tentativa de conceituação, digna de figurar entre as mais extraordinárias, é a de Konrad Hesse para quem a Constituição é uma ordem geral objetiva do complexo de relações da vida. Mas a sua força normativa não está, como sustenta Lassalle, apenas na sua adaptação aos fatores reais de poder. A Constituição jurídica converte-se ela mesma em força ativa se os principais responsáveis pela ordem constitucional tiverem vontade de Constituição. Mas para isso a Constituição deve: (i) Incorporar o estado espiritual do seu tempo; (ii) Estabelecer alguns poucos princípios fundamentais adaptativos às céleres mudanças da realidade socio-política e desse modo evitar as constantes revisões constitucionais que tiram sua força normativa; (iii) Incorporar parte da estrutura contrária, isto é, aos direitos devem corresponder também deveres, à divisão de poderes a concentração de poderes, ao federalismo uma certa dose de unitarismo [8].
6. Finalmente, uma última tentativa de conceituação, marcante por sua singularidade, é a de Peter Häberle para quem a Constituição é um processo público aberto, uma tarefa que deve ir se realizando. Uma ordem constitucional aberta valoriza os processos e não os conteúdos substantivos ou materiais nela contidos. Assim, o conteúdo material básico, a essência da Constituição, são as liberdades democráticas que tornam possível que se manifeste o pluralismo (político, social, cultural) existente na sociedade. Nesse sentido, todos nós somos virtualmente intérpretes da Constituição e não apenas os órgãos e as potências públicas, ou seja, os intérpretes jurídicos vinculados às corporações [9].
7. São estas, no nosso entender, as mais expressivas tentativas de conceituar o que é uma Constituição. Estamos convencidos que a partir delas podemos refletir criticamente sobre a essência da Constituição Federal de 1988 e pensar uma nova Constituição sob um prisma multivisual, que reconheça os fundamentos reais que contribuem efetivamente para dar um conteúdo estável e verdadeiramente operacional para a idéia de Constituição, sobretudo nesta época de grandes e profundas transformações.A história da Constituição Federal de 1988 ainda está por ser contada nos mínimos e indiscretos detalhes. Os seus principais protagonistas, talvez por estarem vivos e ativos politicamente, não parecem interessados em que os seus bastidores sejam totalmente revelados. De qualquer forma, as linhas gerais que conduziram o processo constituinte são bastante conhecidas e a simples menção a elas, sem problematizá-las, pois esta tarefa refoge aos propósitos deste texto, já é mais do que suficiente para alavancar as nossas reflexões.
9. A Constituição de 88 teve um mau começo. Se olharmos para ela à luz das teorias do processo constituinte verificaremos que a nossa Carta Magna não tem a força de uma Constituição fundadora, fruto do exercício direto pelo povo do seu poder constituinte originário, nas formas da aclamação, do referendo e da revolução. Também a nossa Constituição não foi capaz de ser elaborada a partir do exercício indireto do poder constituinte originário, na forma de uma Assembléia Nacional Constituinte exclusiva e soberana, segundo a teoria da representação [10]. Como quase tudo em nossa história, a Constituição de 88 nasceu de um "meio termo", de um "meio caminho", de uma "solução de compromisso". A fórmula encontrada por nossos políticos, uma boa parte deles atuantes no regime militar, foi a convocação de uma Assembléia Constituinte Congressual.
10. Aos malefícios dessa gestação defeituosa da nossa Carta Magna -que, ao arrepio da melhor técnica, misturou um mandato constituinte com aquele da representação ordinária e por isso deu origem a um texto rígido e analítico a um só tempo, combinação irracional e explosiva para uma elaboração dogmática-, foram acrescidos outros que encontram raízes na nossa (in)cultura política. O povo, desinformado e ignorante da sua própria força e de seus legítimos direitos, foi conduzido por um processo eleitoral onde prevaleceu toda sorte de interesses paroquiais, fisiológicos, corporativos, midiáticos, econômicos e financeiros [11]. Neste particular é preciso dizer que, salvo honrosas exceções, poucos foram aqueles que tiveram a clareza de enxergar o "ovo da serpente" em gestação. Como uma verdadeira panacéia, a Constituição foi transformada num remédio para todos os males, como se uma simples "folha de papel" tivesse o poder mágico de criar riqueza e distribuir a felicidade almejada por todos. A bem da verdade, uma boa parte dos parlamentares constituintes e mesmo da inteligência nacional sabia que tudo isso era um grande equívoco, mas mesmo assim entraram na "corrente da felicidade", com medo de ficar do lado de fora.
11. Ao contrário do modelo histórico de uma "Constituição-garantia", que contemplasse sobretudo as "liberdades negativas", vale dizer, os limites para a atuação do Estado e também os valores preponderantes da nossa nacionalidade, os parlamentares constituintes preferiram o modelo "comunitário", "intervencionista", "programático", "dirigente", e de afirmação das "liberdade positivas", isto é, daquelas que exigem uma firme atuação do Estado para se tornarem realidade [12]. Na sua elaboração não se atentou para a advertência de Konrad Hesse de se incorporar a parte contrária, sendo ela quase que uma "via de mão única", ou seja, pródiga e generosa nos direitos e avarenta nos deveres, salvo aqueles de responsabilidade do Estado. Promulgada um ano antes da queda do Muro de Berlim, e em meio a uma grande confusão ideológica de um país recém saído da ditadura militar, portanto cheio de esperanças e também de dúvidas, o resultado foi a chamada "Constituição-cidadã", onde todos os interesses e todas as aspirações se encontram espelhadas, inclusive aquelas que beiram a imoralidade, como os privilégios corporativos assegurados por lobbyes eficientes e que jamais poderiam gozar de status constitucional, menos ainda da condição excepcionalíssima de "cláusulas pétreas", como querem alguns "intérpretes da Constituição", pessoalmente interessados em defendê-los [13].
12. Mas nem tudo é condenável na "Constituição-cidadã". Além de ser a mais democrática que tivemos em toda nossa história, ela também incorpora inúmeras inovações inexistentes nas constituições anteriores, como o mandado de segurança coletivo, o mandado de injunção, o habeas data, a proteção dos direitos difusos e a transformação do Supremo Tribunal Federal em Corte Constitucional. Os mecanismos de controle de constitucionalidade também foram enriquecidos, principalmente na via direta e concentrada [14], embora haja críticas consistentes quanto a eles [15]. Por obvio, não são estes aspectos que deixaram a nossa Carta Magna sem força normativa, e sim o cipoal infinito de instituições, normas, direitos e interesses, alguns contraditórios entre si, nela contemplados, muitos dos quais introduzidos através de contorcionismos semâticos e acordos de bastidores, expediente usual na elaboração de uma Constituição casuística, analítica e de compromisso com gregos e troianos. Das decisões políticas fundamentais ao desporto, dos direitos e garantias de liberdade ao jeton do vereador, dos princípios constitucionais tributários aos vencimentos das viúvas dos expedicionários. Por uma questão de lógica, onde tudo está constitucionalizado tudo está virtualmente desconstitucionalizado.
13. Para finalizar este capítulo, gostaríamos de retomar aqui algumas colocações feitas anteriormente na imprensa regional [16] sobre as desavenças cada dia mais ostensivas entre os poderes constituídos, até mesmo nas questões mais elementares, como os níveis de remuneração dos servidores públicos, o que infelizmente pode acabar na ingovernabilidade, na anomia jurídico-legislativa, e no retrocesso político. Todos reclamam, todos invocam a Constituição em sua defesa, todos parecem ter razão em seus argumentos. Mesmo entre os cidadãos comuns há um sentimento de angústia cada dia mais forte quando olham para a sua Carta Magna, feita sob sua delegação, lêem os seus direitos e estes lhes são negados pela inércia legislativa, falta de regulamentação, morosidade em sua implementação administrativa ou efetivação judicial, ou ainda, o que é mais revoltante, pela simples recusa em admiti-los. Esta nos parece ser a raiz da nossa discórdia. A Constituição que deveria ser o nosso porto seguro, a nossa máxima proteção contra as instabilidades político-institucionais, por obra do nosso "destino histórico", transformou-se numa fonte geradora de atritos, disputas e reclamações. É nesse sentido que defendemos uma nova Constituição para salvar a própria idéia de Constituição, como instrumento efetivo de consolidação do Estado Democrático e realização do Direito e da Justiça.Segundo Canotilho, o direito constitucional é de inequívoca centralidade política [17] e a Constituição, portanto, não seria apenas a "norma do centro" ou a "norma dirigente do Estado", mas "o estatuto de justiça do político" [18]. Nesse sentido, a despeito da inegável e crescente perda de legitimidade da "forma" Estado, como estrutura administrativa, legislativa e jurisdicional, por razões que veremos a seguir, permanece válida a idéia de Constituição como expressão máxima e superior dos valores espirituais, materiais e políticos da nossa comunidade de destino. E é exatamente nessa perpectiva, hipervalorizadora da idéia de Constituição como integração e expressão de valores fundamentais de uma comunidade – e por isso imune à crise do Estado nacional e soberano, que arrasta consigo os modelos constitucionais "dirigentes", "comunitários" e "intervencionistas" – que a nossa Carta Magna de 1988 deixa muito a desejar. Pois a luz que muito brilha (ou que tem esta ambiciosa pretensão), arde a metade do tempo…
14. De qualquer modo, não é possível falar sobre vícios da Constituição ou sobre qualquer tema a ela relacionado sem enfrentar a questão da crise do Estado nacional e soberano. Na esteira das reflexões de José Eduardo Faria [19] e de Manuel Castells[20], resumiríamos o cerne da questão nos seguintes termos: (i) O Estado-nação, moderno e soberano, é um poder supremo, incontrastável, inalienável e exclusivo; (ii) O Direito é a lei imposta pelo soberano, sendo superior a todas as formas de normatividade; (iii) O fenômeno da globalização provocou a desterritorialização do poder e com isso a relativização dos principais conceitos, princípios e categorias que fazem o Direito funcionar, como soberania, legalidade, hierarquia das leis, direitos subjetivos, validez, eficácia, igualdade formal, validade, equilíbrio dos poderes, segurança e certeza, etc.; (iv) a Constituição, como estatuto político que estabelece como, quando e o que os legisladores e os governantes devem fazer já não mais corresponde à complexa realidade que se transforma aceleradamente; (v) Os Estados-nação sobreviverão às mudanças, mas não a sua soberania. Eles se unirão em redes multilaterais com geometria variável de compromissos, responsabilidades, alianças e subordinações; (vi) O Estado-nação vem sendo cada vez mais destituído de poder para exercer controle sobre a política monetária, definir orçamento, organizar a produção e o comércio, arrecadar impostos de pessoas jurídicas e honrar compromissos visando proporcionar benefícios sociais; (vii) A crise da "forma" Estado, portanto, arrasta consigo os modelos de Constituição forjados no século XX, especialmente aqueles detalhistas e programáticos como o do Brasil, inaugurando uma era de incertezas e de perda crescente de legitimidade das potências públicas, o que exige dos operadores do direito e do povo em geral novas e radicais atitudes.
15. A partir desse cenário, e das colocações feitas nos tópicos anteriores, podemos afirmar sem medo que a nossa Carta Magna vive o seu pior momento. Flagelada por dentro -vítima das suas próprias contradições- e sitiada por fora -incapaz de oferecer resistência ou se adaptar ao fenômeno da globalização-, não vemos como salvá-la. A mais grave das atitudes é continuar fingindo que a nossa Constituição-cidadã ainda tem força normativa, ainda é operativa, e que tudo pode ser resolvido com o tempo, mediante emendas intermináveis ou pelo trabalho insano, inútil, caro e decepcionante de interpretação e defesa jurisdicional [21] de uma Carta Magna com quase 50 mil palavras, em grande parte equívocas, intencionalmente adotadas pelos constituintes congressuais para acomodar toda sorte de interesses, e dependente de milhares de outras normas e atos para produzir os efeitos desejados e angustiantemente esperados. A nossa vocação bacharelesca de tudo querer resolver legislativamente pode levar a um mal terrível que é a "inflação legislativa", aquela que faz a norma morrer lentamente pela desvalorização. Agora um mal ainda mais grave é quando essa inflação ocorre no topo do ordenamento jurídico, e nesse caso não é apenas a norma que morre inexoravelmente mas todas as esperanças cristalizadas na Constituição, podendo levar com ela para a sepultura o respeito ao Direito e à Justiça, seus mais elevados objetivos. Por isso, o abandono desta Constituição é a solução mais racional, mais barata e mais curta. O que por no seu lugar?
16. Em toda literatura examinada ao longo dos nossos anos de estudo, e particularmente nos autores clássicos já citados, jamais nos deparamos com argumentos consistentes que justificassem a adoção de uma Constituição analítica e casuística. A doutrina registra a existência dessas Cartas, principalmente nos países de tradição política populista (e a nossa é um exemplo eloqüente disso), mas nunca vimos ninguém que as defendesse como um modelo ideal, digno de ser adotado racionalmente e consoante a melhor técnica jurídica. Por isso defendemos uma nova Constituição para o Brasil, que seja: (i) dogmática – quanto ao modo de elaboração, isto é, elaborada racionalmente por um núcleo representativo da comunidade nacional [22]; (ii) popular – quanto à sua origem e legitimidade, ou seja, iniciada por um plebiscito e submetida a um referendo popular, após ampla e democrática divulgação do seu conteúdo e dos seus propósitos, portanto aprovada diretamente pelo povo, sem a necessidade de convocação de uma Assembléia Constituinte, forma indireta de exercício do poder constituinte originário, que se exercido pelos nossos representantes políticos fatalmente repetiria os mesmos erros da atual Carta; (iii) rígida – quanto à sua estabilidade, vale dizer, de alteração dificultada, mas com capacidade de ir incorporando as transformações substanciais que ocorrem na realidade, e com cláusulas pétreas inalteráveis e eternas no tocante aos direitos protetores da dignidade humana, porque são direitos naturais anteriores à própria idéia de Constituição, de Estado ou quaisquer forma de exercício da soberania popular; e (iv) sintética – quanto à sua finalidade, o que significa uma Constituição composta sobretudo de valores superiores (ordem de valores), isto é, de normas e princípios [23] que do ponto de vista substantivo afirmem os direitos fundamentais da cidadania, do pluralismo e da organização do Estado em bases democráticas, e do ponto de vista procedimental tornem reais as garantias do jogo político dentro da lei, vale dizer, conforme regras estáveis, claras e acatadas pela maioria do povo. Direitos e garantias constituem, na magistral definição de Luigi Ferrajoli, "a lei do mais fraco" [24]. No mais, tudo -sem exceção- deve ser disciplinado por normas infraconstitucionais ou quando for o caso simplesmente desregulamentado e desjuridificado.
17. Conforme já mencionamos, com a globalização e o enfraquecimento do Estado-nação, o direito positivo perde um pouco da sua vitalidade e importância, sobretudo o direito público interno, mas paradoxalmente o direito internacional, aquele que regula as relações entre Estados e particulares a nível mundial adquire cada vez maior relevância. Como no passado o direito internacional não dispunha de poder de coerção e por isso era considerado uma "perfumaria jurídica" por uns [25] e por outros sequer era considerado direito, ele foi obrigado a criar uma linguagem própria e idealizar práticas jurídicas que lhe dessem operacionalidade e ao mesmo tempo segurança. Nesse sentido, ao invés de pensar o conflito e sua solução jurisdicional, com toda sua parafernália processualística, como tem feito o direito positivo interno, ele procurou, por exemplo, valorizar a autocomposição e a arbitragem, mecanismos mais racionais e baratos para a solução de pendências. Num mundo global, caracterizado por uma economia sem fronteiras, na era do tempo intemporal, onde tudo acontece em tempo real, os interesses de grande expressão econômico-financeira, não podem "parar no tempo" e ficar esperando décadas por uma solução judicial, e por isso eles procuram locais seguros juridicamente, isto é, com leis claras e instituições estáveis que não só garantam seus investimentos como também, no caso de eventual conflito, que a solução venha rápido. A excessiva constitucionalização não contribui em nada para isso. Também a excessiva constitucionalização diminui ainda mais a já enfraquecida capacidade de resposta do Estado frente as novas demandas sociais, bem como os crescentes desafios internacionais.
18. Iniciamos estas nossas reflexões com uma epígrafe de Sérgio Buarque de Holanda, profundo conhecedor das raízes do Brasil, e gostaríamos de encerrar com Gilberto Freyre, totem da nacionalidade, reproduzindo as suas palavras quando foi escolhido para integrar a Comissão Provisória da Pré-Constituinte em 1985: "A comissão, composta por ilustres brasileiros, perde um pouco mais de seu inicial perfil bacharelesco. Distingo juristas de bacharéis. Os juristas são bons tecnocratas da lei. Os bacharéis nem tanto. Escapa-lhes a importância atuante dos grandes princípios e podem consumir-se em miudezas casuísticas. Escapa-lhes ainda o cotidiano básico e vital do povo e do País. Preferem a letra à realidade em mudança. Acreditam que o formalismo possui o dom de ditar e controlar a dinâmica das transformações. Uma Constituição nova para o Brasil deve ser sintética e abrangente. Isto é: deve fundamentar-se em princípios universais que contemplem a multiplicidade de direitos inalienáveis dos cidadãos. Caso contrário, teremos uma Constituição gorda, prolixa e adiposa em seus artigos, parágrafos e sub-parágrafos. A comissão, em sua provisoriedade, necessitava contar com a contribuição de antropólogos, psicólogos, etc. e algum sociólogo em casamento íntimo com a nossa história social de ontem e de amanhã"[26]. É exatamente isso que queremos e não temos.
José Manoel de Aguiar Barros, prof. Direito Constitucional da UNIP, São José do Rio Preto, março/2000.