Os tratados de Marraqueche que puseram fim à Rodada Uruguai do Gatt, em 1994, com a criação da Organização Mundial do Comércio – OMC, caracterizaram-se pela preocupação em reforçar o império da lei e o estado de direito no sistema multilateral, tradicionalmente sujeito ao arbítrio das grandes potências econômicas. Coincidentemente, durante os longos oito anos de negociações da Rodada Uruguai, os Estados Unidos mudaram sua política de comércio, anteriormente fundada na combinação do arbítrio unilateral com o multilateralismo ineficaz do velho Gatt, para apoiar o regionalismo.

De fato, no mesmo momento em que se concluía a Rodada, entrava em vigor o Acordo de Livre Comércio da América do Norte -Nafta, entre os EUA, o Canadá e o México. Estes últimos, durante as negociações, mal estavam em condições de resistir às intenções hegemônicas estadunidenses, já que são dependentes daquele país em cerca de 75% do comércio exterior. Assim, mediante o Nafta os EUA conseguiram consolidar a histórica ambição de aplicar suas leis extra-territorialmente, estendendo conceitos de legislação pertinente a capitais estrangeiros, propriedade intelectual, abuso do poder econômico, direito ambiental, direito trabalhista, tráfico de drogas, imigração ilegal e até a administração da Justiça, sob o eufemismo de “convergência de valores” e o pretexto de liberalização comercial.

O Nafta, extraído de um México mal representado, consolidou a entrega de todo o setor de serviços aos parceiros, o que era o principal objetivo na agenda dos EUA. Isto porque o setor de serviços é o mais competitivo da economia dos EUA e emprega três quartos de sua força de trabalho e gera 68% do seu PIB. Dez por cento do Nafta são dedicados às regras de origem, mecanismo hoje conhecido como a vanguarda do protecionismo, utilizado como barreira ao acesso de terceiros países aos mercados regionais.

Canadá e EUA subsidiam suas agriculturas com cerca de US$ 200 bilhões anuais. Esses subsídios custam, anualmente, para o Brasil e Argentina valor equivalente aos serviços de suas dívidas externas. Para o México, todavia, grande importador de alimentos, o fato de o Nafta permitir esta prática bizarra e devastadora não representa um grande problema de curto prazo.

Para a formatação da Área de Livre Comércio das Américas – Alca, pretendem os EUA utilizar a estrutura do Nafta. Na agenda afirmativa dos norte-americanos para a Alca está:

I) a abertura dos mercados de serviços dos demais países;
II) o acesso ao mercado de mercadorias com tarifas mais baixas;
III) a manutenção de regras de origem que dificultem o acesso de terceiros países;
IV) a imposição de critérios legislativos e culturais próprios, com expressiva renúncia à soberania por parte dos outros membros; e
V) uma “colheita” precoce de todos os benefícios acima.

Em sua agenda defensiva consta o seguinte:

a) Manutenção do regime fechado de serviços com barreiras horizontais;
b) manutenção do regime de subsídios agrícolas;
c) manutenção da estrutura legislativa unilateral situada acima dos tratados internacionais;
d) só fazer concessões dilatadas no futuro.

Para países como o Brasil e a Argentina, a adesão à Alca formatada nos moldes do Nafta seria um desastre sem precedentes. Esse desastre seguramente ocorreria no setor de serviços, que representa mais de 50% do PIB brasileiro. O setor financeiro migraria em grande parte para os EUA, que passaria a ser o local mais atraente para presenças comerciais de terceiros países. O setor agrícola seria destruído da noite para o dia, com a perda de milhões de empregos rurais. O sistema educacional entraria em colapso.

Não se alegue que uma Alca formatada no Nafta apresentaria oportunidades para aumento de nossas exportações. As tarifas dos EUA já são baixas os suficientes e, na média, a economia brasileira seria altamente prejudicada.

O conceito da Alca, formatada no Nafta, apresenta uma hipótese na qual o Brasil não teria nada a ganhar e tudo a perder e que, por conseguinte, merece o destino do lixo.