A iniciativa da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA)
foi concebida pelos Estados Unidos da América (EUA) e formatada no Acordo de
Livre Comércio da América do Norte (NAFTA) [1], pacto que trouxe enormes vantagens
comerciais aos agentes comerciais, industriais e agrícolas dos EUA, bem como
uma extraordinária dependência econômica, financeira e política do México àquele
país [2]. De fato, após a assinatura do NAFTA, as exportações estadunidenses
para o México cresceram 50% e o volume de comércio externo mexicano com os EUA
aumentou de 72% em 1994 para aproximadamente 91% nos dias de hoje. Provedores
estadunidenses dominaram o mercado de serviços mexicano, inclusive no setor
financeiro, que foi quase que totalmente desnacionalizado. As barreiras horizontais
existentes e mantidas nos EUA para os prestadores de serviços mexicanos, sujeitos
a quotas, impediram uma escala internacional para estes, que sucumbiram à competição
desigual e predatória [3].

No setor agrícola, os mexicanos, que não negociaram no
âmbito do NAFTA a eliminação das escandalosas políticas de subsídios mantidas
pelos EUA, perderam sua competitividade para os produtos subsidiados baratos
vindos deste país, tendo sofrido grandes perdas setoriais internas, a ponto
de hoje tentarem renegociar a questão tardiamente, incluindo até mesmo certos
“mecanismos de defesa” [4]. Na área industrial, o México teve que aderir à perversa
equação de que quanto mais pobre sua população, mais competitivos serão seus
produtos industrializados, especializando-se na manufatura de itens de baixo
valor agregado. Como resultado, os salários industriais mexicanos tiveram uma
redução expressiva e o país tornou-se um exportador de miséria [5], tanto na
forma de produtos maquilados, como na triste emigração econômica.

As conseqüências projetadas dos prováveis efeitos nefastos
da ALCA, em todos os setores indicados acima, têm sido objeto de muitas excelentes
análises elaboradas no Brasil [6] e algumas na Argentina [7]. Todavia, muito
pouco tem-se escrito sobre os aspectos legais inerentes à iniciativa e suas
possíveis repercussões para o nosso País. É este o objeto do presente trabalho,
que foi dividido da seguinte forma:

esta Introdução;
a hierarquia dos tratados internacionais face à lei doméstica dos EUA;
a natureza ilícita da oferta discriminatória dos EUA no âmbito da ALCA;
o anacrônico sistema de arbitragem proposto para a ALCA; e
Conclusões.
A Convenção de Viena sobre a Lei dos Tratados [8] (Convenção
de Viena) procurou codificar o direito internacional costumeiro reconhecido,
bem como promover desenvolvimentos necessários na área, enfatizando matérias
relevantes como conclusão, entrada em vigor, cumprimento, reservas, interpretação,
exeqüibilidade, término e suspensão de tratados. Os dispositivos da Convenção
de Viena são mandatórios apenas para as respectivas partes signatárias. Contudo,
como muitos destes seus dispositivos representam nada mais do que o reconhecimento
do direito internacional costumeiro, estes são aplicáveis a todos os Estados
e tratados internacionais. Mesmo aqueles dispositivos da Convenção de Viena
que não são a expressão normativa do direito costumeiro devem ser interpretados
como presunção de direito internacional costumeiro em formação, para casos de
países não signatários daquele tratado [9].

Dentre as normas da Convenção de Viena de particular
relevância para pactos internacionais de comércio, encontram-se os dispositivos
pertinentes às reservas aos tratados internacionais, matéria que não representava
prática universal quando de sua adoção. Assim, o artigo 19 da Convenção de Viena
permite a reserva a dispositivos de acordos internacionais, a menos que:

a reserva seja proibida pelo tratado;
o tratado estabeleça que somente outras reservas especificadas possam ser formuladas;
ou
a reserva seja incompatível com o objeto do tratado.

Da mesma forma, o artigo 26 da Convenção de Viena consagra
a regra pacta sunt servanda na lei dos tratados e o princípio da boa fé nos
acordos internacionais. Por sua vez, o artigo 27 do mesmo tratado determina
que um Estado soberano não pode invocar seu direito interno como uma justificativa
legal para inadimplir uma obrigação assumida nos termos de um acordo internacional.
Esta regra deve ser interpretada conjuntamente com o artigo 46 da Convenção
de Viena, que dispõe no sentido de que um Estado não poderá alegar a violação
de um dispositivo legal doméstico como vício de consentimento na assinatura
de um tratado internacional, a menos que tal violação seja manifesta e pertinente
a regra de importância fundamental. Os EUA até hoje não ratificaram a Convenção
de Viena, embora sejam signatários dela.

Como vimos, a Convenção de Viena pretende estabelecer
uma certa disciplina legal, bem como juridicidade, aos tratados internacionais,
para limitar o abuso de tais instrumentos pelas potências hegemônicas em detrimento
dos demais Estados. As formas de abuso de tratados internacionais são abundantes
e a história tem um triste legado de infames exemplos. Uma destas formas é a
formatação de um acordo internacional de maneira que seus termos sejam exeqüíveis
contra um Estado, mas que a recíproca não seja verdadeira.

Na hierarquia das normas no direito constitucional doméstico
dos EUA, há dois patamares distintos para a classificação dos tratados internacionais:
o primeiro deles diz respeito à sua origem, Congresso ou Poder Executivo. Neste
caso, as convenções aprovadas pelo Congresso são denominadas “tratados [10]
e tem a mesma hierarquia da legislação federal. Aquelas convenções de origem
apenas do Poder Executivo são denominadas de “acordo executivo presidencial
[11]” e estão subordinadas à legislação federal.

O segundo patamar diz respeito à exeqüibilidade direta
ou indireta do acordo. Neste particular, os tratados internacionais são divididos,
de um lado, em acordos auto exeqüíveis, que não necessitam de legislação doméstica
que os implementem e, de outro, em acordos não automaticamente exeqüíveis, que
necessitam de implementação legislativa. Um acordo internacional dos EUA, de
acordo com seu direito interno, não é automaticamente exeqüível, quando:

se o tratado manifesta uma intenção de não se tornar eficaz
como direito interno sem legislação que o implemente;
se o Senado ou o Congresso, ao dar autorização a um tratado, requerer legislação
que o implemente; ou
se implementação legislativa for necessária por força de dispositivo ou jurisprudência
constitucional [12].

De qualquer maneira, o Poder Judiciário dos EUA não reconhece
os acordos não exeqüíveis [13]. Assim, de um modo geral, todos os tratados internacionais
assinados pelos EUA nos últimos 25 anos tem necessitado de implementação legislativa
interna, devido a pelo menos um dos requisitos acima, mas freqüentemente por
todos eles. Os acordos internacionais de comércio não fogem, é claro, à regra.
Ao contrário, já que numerosos e ponderáveis interesses privados e públicos
podem neles ser substancialmente afetados, quer de forma positiva, quer de maneira
adversa.

Um exemplo dramático de tal situação pode ser encontrado
com relação ao Acordo de Estabelecimento da Organização Mundial do Comércio
(OMC), doravante denominado simplesmente Acordo da OMC. Neste caso, os Estados
signatários comprometeram-se a aceitar a totalidade dos tratados objeto do Acordo
da OMC, bem como obrigaram-se a assegurar a conformidade de suas leis, regulamentos
e procedimentos administrativos com seus respectivos dispositivos [14]. Nenhuma
reserva foi autorizada com respeito a qualquer dispositivo do Acordo da OMC.
Reservas com relação a qualquer dos dispositivos de quaisquer dos tratados objeto
do Acordo da OMC somente poderiam ser feitas se expressamente autorizadas pelos
seus termos [15].

No entanto, a apósita legislação de implementação interna
nos EUA a respeito do Acordo da OMC, e de seus tratados anexos, estabelece que
“nenhum dispositivo de qualquer dos Acordos da Rodada Uruguai, nem a aplicação
de qualquer tal dispositivo a qualquer pessoa ou circunstância, que seja inconsistente
com qualquer lei dos EUA, deverá produzir efeitos [16].” De maneira idêntica,
a legislação federal interna de implementação do NAFTA nos EUA dispõe que “nenhum
dispositivo do Acordo nem a aplicação de tal dispositivo a qualquer pessoa ou
circunstância que seja inconsistente com qualquer lei dos EUA deverá produzir
efeitos [17]“.

De uma perspectiva de política externa, esta subordinação
do direito internacional à lei interna americana foi explicada por Claude E.
Barsfield da seguinte maneira “ironicamente, até recentemente, os EUA seguiram
uma política ad hoc de aplicar efeito direto a alguns tratados e de recusar
a aplicá-la a outros. Comentários oficiais sobre direito doméstico e internacional
sugeriram que, na ausência de um pedido do Congresso ou do Presidente para legislação
de implementação, um tratado seria auto exeqüível e derrogaria a lei interna
existente [18]“. Todavia, continua o mesmo autor, “desde o fim dos anos 80,
um intervencionismo crescente do Congresso mudou a situação de maneira substancial.
Em quatro grandes acordos de comércio – o EUA/Israel; o EUA/Canadá, o do NAFTA
e o Acordo da OMC – o consentimento do Congresso foi outorgado somente com a
condição de uma denegação explícita de efeito direto ou auto exeqüibilidade
[19]“.

Por outro lado, pelo prisma do direito internacional,
estes dispositivos insertos na legislação doméstica de implementação nos EUA,
inclusive do Acordo da OMC e daquele do NAFTA são flagrantemente ilegais. Isto
ocorre não somente porque tais dispositivos estão em clara violação de normas
específicas daqueles tratados, mas também porque violam igualmente as provisões
diversas da Convenção de Viena supra mencionadas. A natureza de tal violação
é tanto mais grave que a Corte Internacional de Justiça (CIJ) já decidiu que
“se uma parte objeta a uma reserva porque a considera incompatível com o objeto
e propósito de um tratado, aquela parte poderá considerar o Estado formulador
da reserva como não-parte [20]“.

A conseqüência de ordem pragmática desta situação é que
os EUA colocam de facto seu ordenamento jurídico interno acima dos tratados
internacionais. Tal audacioso posicionamento significa que um determinado dispositivo
de um dado acordo internacional obrigará todas suas partes, mas não necessariamente
os EUA e seus nacionais. Isto ocorre porque nos ordenamentos jurídicos de quase
todos os 146 membros da OMC, os tratados internacionais situam-se acima da legislação
doméstica ou direito interno, na hierarquia das normas. Assim, se um dispositivo
do Acordo da OMC, do NAFTA ou mesmo da ALCA for contrário a uma dada lei interna
dos EUA de flagrante ilegalidade, como é o caso da Seção 301 [21], por exemplo,
isto significa que prevalecerá a Seção 301 sobre o acordo internacional. Por
outro lado, a mesma norma inexeqüível contra os EUA e seus nacionais, será plenamente
exeqüível contra os demais estados e seus nacionais, com relação a um dispositivo
semelhante de direito interno.

Da mesma forma, a legislação interna de imigração dos
EUA, que representa uma formidável barreira horizontal de acesso a eventuais
prestadores de serviços dos países signatários de uma possível ALCA, prevalecerá,
como prevalece no âmbito do NAFTA, sobre todos e quaisquer promessas e/ou dispositivos
do respectivo acordo da ALCA, com a sua denegação inexorável na realidade prática,
da mesma forma do ocorrido no âmbito da chamada “liberalização” de serviços
promovida no âmbito do Acordo Geral de Comércio em Serviços (GATS), havida como
resultado da Rodada Uruguai do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT).

No caso da ALCA, a legislação interna dos EUA sobre a
autorização dada pelo Congresso ao Poder Executivo daquele país para a negociação
de tratados internacionais, conhecida informal e tradicionalmente como via rápida,
Fast-track Act, denegou que o eventual acordo da ALCA tenha efeito direto ou
auto-exeqüível, necessitando portanto de aprovação legislativa. De fato, chamada
lei de promoção comercial [22] dos EUA, que trata inclusive das negociações
da ALCA, determina especificamente que o eventual acordo respectivo seja apresentado
para ratificação e legislação específica de implementação pelo Congresso daquele
país [23].

Assim, muito embora a minuta do acordo da ALCA [24] estabeleça
o princípio da boa fé [25], proíba explicitamente a formulação de reservas [26],
e determine que haja a consistência das leis internas com os dispositivos do
tratado [27], a autorização limitada recebida pelos negociadores estadunidenses,
bem como a específica necessidade de legislação de implementação, indica que
provavelmente ocorrerá, na eventual assinatura do respectivo pacto comercial,
o mesmo problema de implementação havido com os outros acordos supra mencionados.
Isto porque todos os outros acordos têm dispositivos idênticos ou assemelhados.
O objetivo dos EUA com tais normas é assegurar sua observância absoluta apenas
pelos outros países, mas não por si. Desta maneira, o direito interno estadunidense
será resguardado e colocado acima das normas da ALCA.

Outra idiossincrasia faz com que a questão da hierarquia
das normas torne-se ainda mais preocupante com relação à iniciativa da ALCA.
De fato, a minuta do acordo da Alca dispõe que, na eventualidade de um conflito
entre os dispositivos deste e os do Acordo da OMC, prevalecerão as normas do
acordo da ALCA [28], num dispositivo de muito questionável legalidade. Esta
situação, se prevalecer, acarretará uma inversão radical na hierarquia das normas,
no sentido de que, nas amplas matérias tratadas no âmbito do acordo da ALCA,
a hierarquia superior será das leis dos EUA, situando-se num segundo patamar
as normas da ALCA, deixando-se para o posto mais baixo as regras multilaterais
da OMC. Assim, conforme contemplado pelo acordo da ALCA, a hierarquia das normas
para aplicação interna seria a seguinte:

Todavia, a correta estrutura jurídica em ordem de importância,
face ao direito internacional e aos mais básicos princípios de eqüidade, para
aplicação interna, seria:
O anúncio das linhas gerais da proposta dos EUA para a
ALCA, feita no dia 11 de fevereiro de 2003, chamou a atenção não somente pelo
já previsível caráter acanhado, singularmente cosmético e anódino, como também
pelo tratamento discriminatório dado às possíveis partes do futuro pacto comercial
por aquele país [29].

Ora, o fundamento básico e arcabouço legal do regime
jurídico do comércio internacional é justamente o chamado princípio da não discriminação,
consagrado no Artigo 1 do tratado do GATT de 1947, ainda em vigor, pela chamada
cláusula da nação mais favorecida , segundo a qual qualquer vantagem, favor,
privilégio ou imunidade concedida por um país signatário do tratado, a qualquer
produto de um país nas mesmas condições, será imediata e incondicionalmente
estendida a todos os demais signatários. Com a criação da OMC em 1995, a norma
passou a ser aplicada aos hoje 146 Estados-membros da organização.

Trata-se, como visto, de um princípio absoluto, “incondicional”,
que não autoriza exceções não permitidas pelo próprio tratado. O artigo 24 do
GATT 1947 permite apenas exceções no tocante às zonas de livre comércio e uniões
alfandegárias, naquilo em que o seu regime pode ser mais benéfico do que aquele
outorgado aos demais parceiros comerciais. A justificativa do dispositivo é
o reconhecimento de que a liberalização regional é um passo na liberalização
global dos mercados, que é o objetivo último do sistema multilateral de comércio.
Assim, a discriminação trazida pela liberalização regional traria, numa segunda
fase, um benefício global de longo prazo.

De qualquer forma, o parágrafo 5b do artigo 24 do GATT
1947 determina que as tarifas regionais de uma dada área de livre comércio não
poderão ser maiores ou mais restritivas do que aquelas existentes nos respectivos
territórios, antes de sua formação. O tratado não dispõe se tais restrições
devam ser interpretadas em critérios absolutos ou relativos. Desta maneira,
a ordem jurídica multilateral da OMC permite, excepcionalmente, nos casos de
pactos regionais de livre comércio, como é o caso da iniciativa da ALCA, a discriminação
exógena, ou seja o tratamento diferenciado aos não signatários.

Todavia, esta autorização legal do GATT 1947 não contempla
a modalidade, introduzida pelos EUA pela primeira vez na história dos pactos
regionais de comércio, da discriminação endógena, em contundente violação dos
dispositivos supra mencionados. De fato, a oferta agrícola, por exemplo, dá
tratamento tarifário isento a 85% das exportações do Mercado Comum do Caribe
(CARICOM); 64% daquelas dos países da América Central; 68% das procedentes dos
países do Pacto Andino; e 50% àquelas oriundas dos países do Mercado Comum do
Sul (MERCOSUL).

Por sua vez, a oferta de bens industriais e de consumo
feita pelos EUA dá uma isenção tarifária a 91% dos produtos do CARICOM, 66%
dos produtos da América Central; 61% dos produtos do Pacto Andino; e 58% dos
produtos do Mercosul. Resta ainda saber se a discriminação supra não será agravada,
por ocasião da oferta final dos EUA, pela tarificação diferenciada de bens e
produtos, na exata medida da competitividade de cada país, de tal maneira que
o país mais competitivo tenha tarifas mais elevadas e o menos competitivo, tarifas
mais baixas.

Como bem observado por Rubens Ricupero, “por esse insólito
processo, fabrica-se uma espécie de Frankenstein dos acordos de livre comércio,
um monstro com um mínimo de quatro velocidades distintas, que podem chegar a
mais, desde que se computem os regimes diversos do NAFTA, para o Canadá e o
México, bem como o do acordo com o Chile [30].” Continua Ricupero mais adiante,
“…volta-se ao formato mais nocivo das negociações, o do chamado sistema do
´eixo e raios´, no qual os EUA, o eixo, negociariam, um a um, com cada país
ou grupo de países, os raios, dividindo-os, enfraquecendo-os, de modo a poder
extrair o máximo de cada um [31]“.

De qualquer maneira, o uso de percentuais de liberalização
é um argumento tradicional e falacioso dos negociadores estadunidenses. De um
modo geral, as tarifas nos EUA já são razoavelmente baixas, situando-se num
patamar médio de aproximadamente 3%. Assim, uma redução de 91% de uma tarifa
de 1% não representa muito em termos de maior concessão de acesso a mercado.
Como resultado, estas concessões percentuais muito pouco significam na prática
em termos de ganhos de competitividade para os agentes econômicos dos países
signatários de pactos comerciais regionais com os EUA.

A áreas em que uma liberalização poderia fazer significativa
diferença de competitividade a favor de maior competitividade dos parceiros
comerciais nos mercados dos EUA são, justamente, aquelas problemáticas. Assim,
dificuldades comerciais e problemas normalmente existentes com os EUA situam-se,
em primeiro lugar, nos picos tarifários, que são sempre mantidos por aquele
país, quer em negociações multilaterais, quer regionais. Em segundo lugar, são
encontradiços nas barreiras horizontais, como no caso da movimentação de prestadores
de serviços. Em terceiro lugar, existem nos subsídios que, apenas no setor agrícola,
comprometeram a existência de uma economia de mercado na área. Em quarto lugar,
encontram-se no arsenal unilateral, como na supra mencionada Seção 301, e na
legislação antidumping. Por último, deparamo-nos com a freqüente inobservância
do direito internacional por órgãos da administração direta, indireta e do Poder
Judiciário dos EUA.
O sistema de arbitragem proposto para a ALCA foi substancialmente
fundado naquele em existência na OMC desde 1995, com desastrosos resultados
para a prestação jurisdicional do direito do comércio internacional, bem como
para os países em desenvolvimento, suas maiores vítimas [32]. Já em 1998, quando
deveria ter havido uma revisão do procedimento, já eram evidentes os vícios
sistêmicos e falhas operacionais do sistema de resolução de disputas da OMC,
em sua grande maioria [33]. Nos países em desenvolvimento, já havia na ocasião
um consenso de que o sistema de resolução de disputas da OMC era desastroso
para os seus interesses, excepcionando-se alguns tanto disparatados como isolados
comentários, como aqueles de Celso Lafer, que o chamou de uma “success story”
[34] (sic).

A verdade é que, por ocasião da Rodada Doha da OMC, muitos
países apresentaram propostas para a reforma do sistema de resolução de disputas
da OMC, incluindo a Austrália, o Brasil, o Canadá, o Chile, a China, a Coréia
do Sul, o Equador, os EUA, a Índia, Taiwan, a Tailândia, a União Européia, e
dois grupos de países, um da África, e outro de países menos desenvolvidos.
As propostas de reforma apresentadas compreendem modificações substanciais a
todos os 24 artigos e 4 anexos ao Entendimento sobre Resolução de Disputas (ERD)
da OMC! A reforma tornou-se a reconstrução de um sistema profunda e inexoravelmente
comprometido por seus muitos vícios e defeitos, que causaram sua completa desmoralização.

As áreas em que reformas foram propostas para o ERD são
basicamente 7:

Consultas;
Formação e regras processuais dos painéis de primeira instância;
Regras processuais de segunda instância;
Execução;
Regras especiais para países em desenvolvimento; e
Novo tratamento para terceiros e amicus curiae.

Pois bem, o sistema de arbitragem proposto para a ALCA
incorpora praticamente a totalidade dos vícios daquele da OMC, sem levar em
consideração o processo de reforma presentemente em andamento. Mais ainda, conforme
já mencionado ut supra, a minuta do acordo da ALCA [35] coloca este acima daquele
da OMC. Redigido em linguagem não jurídica, o que também é um grave problema
do ERD, o capítulo de arbitragem do acordo da ALCA (capítulo de arbitragem)
dá como jurisdição, denominada “escopo de aplicação” [36] sic, a resolução de
todas disputas entre as partes com relação à interpretação, aplicação (sic)
ou não observância do acordo da Alca. O direito de ação é restrito aos Estados
signatários [37], sendo expressamente vedado o direito da ação a pessoas físicas
ou jurídicas de direito privado [38].

O artigo 4 do capítulo de arbitragem manda aplicar às
disputas os princípios de direito internacional, bem como aqueles de boa fé,
confidencialidade, celeridade, economia processual, acesso efetivo, tratamento
especial e diferencial, bem como um equilíbrio entre direitos e obrigações das
partes. O que vem a ser objeto do “tratamento diferencial” a países em desenvolvimento
[39] é definido da seguinte forma “medidas como” (sic) maiores prazos; direito
a assistência jurídica; e garantia de poder comunicar em quaisquer das línguas
da ALCA (sic). Por sua vez, a confidencialidade é assegurada a todos os documentos
apresentados pelas partes, à exceção do laudo final e das notificações efetuadas
[40] ao Secretariado. Os outros princípios não se encontram definidos no texto
do capítulo de arbitragem, o que poderá dar ensejo a grandes confusões e injustiças.
Por exemplo, na OMC, a questão da “economia processual” é altamente controversa
por ter sido tratada na prática como “déni de justice”, ou omissão de julgar
um dos pontos apresentados por uma das partes, quase sempre um país em desenvolvimento.

O capítulo de arbitragem cria o fôro privilegiado da
ALCA para todas as questões atinentes ao acordo da ALCA. Quanto às demais, poderão
ser submetidas tanto ao sistema de resolução de disputas da OMC, quanto ao da
ALCA, à exclusão do outro [41]. Estes dispositivos deverão criar enorme controvérsia,
tendo em vista que a maior parte das matérias substantivas, senão a totalidade,
deverá ser de jurisdição de ambos os sistemas, e que haverá uma discrepância
importante na regulamentação processualística de ambos, o que implicará certamente
numa relação hierárquica de credibilidade dentre eles.

O sistema de arbitragem da ALCA, cria, à semelhança daquele
presentemente existente na OMC, um sistema confidencial de consultas [42]. É
na área de consultas que se dá a maior parte das derrotas dos países em desenvolvimento
no âmbito da OMC. O seu mecanismo não transparente tem implicado, na OMC, na
falta de controle democrático dos atos praticados pelos agentes governamentais
dos países em desenvolvimento [43], devido ao sigilo nas concessões feitas.
É de se notar que a proposta feita pela Índia na reforma do sistema de consultas
da OMC, de dar maior consideração aos interesses dos países em desenvolvimento,
não tenha sido levada em consideração no âmbito da ALCA.

Similarmente ao que existe presentemente na OMC, o capítulo
de arbitragem da ALCA cria um painel de primeira instância e outro de apelação
[44]. O primeiro, seguindo o vício consagrado na OMC, terá caráter não permanente
e será nomeado pelo Secretariado, que na OMC é controlado pelas potências hegemônicas,
através da indicação dos postos-chave na Divisão Jurídica. Como na OMC, haverá
uma lista de árbitros de primeira instância [45], mas naquela organização estes
normalmente não são nomeados, em detrimento dos amigos dos componentes da Divisão
Jurídica do Secretariado, com os previsíveis resultados. No âmbito da reforma
do sistema de resolução de disputas da OMC, muitas propostas foram apresentadas
para a criação de um corpo permanente de árbitros de primeira instância, de
forma a combater a imoralidade que se instalou em Genebra.

Igualmente ao que ocorre hoje no âmbito da OMC, o grau
de apelação no sistema de arbitragem da ALCA terá um corpo permanente de 7 árbitros,
indicados por um mandato de quatro anos, prorrogável por igual período [46].
A jurisdição de segunda instância será sobre questões de direito, apenas [47].
O painel de segunda instância decidirá por maioria de votos [48]. O painel do
grau de apelação, da mesma maneira que ocorre na OMC e que muitos problemas
têm causado, não terá poderes para remeter os autos para o painel de primeira
instância, convertendo o julgamento em diligência, com o objetivo de complementar
ou esclarecer questão de fato. Isto é uma falha adicional do sistema não permanente
de árbitros de primeira instância, já que quando o caso sobe para o grau de
apelação, o painel original de árbitros não mais existirá.

As regras processuais do sistema de arbitragem da ALCA,
formuladas com base naquelas presentemente existentes na OMC, são igualmente
muito falhas. O sistema de arbitragem da ALCA admite o litisconsórcio ativo
[49], mas é silente quanto ao litisconsórcio passivo. Segundo o artigo 19 do
capítulo de arbitragem, “quando uma parte não é uma parte na disputa, ela poderá
participar como terceira parte” (sic). Este é o mesmo mecanismo existente no
ERD, que tem sido amplamente criticado no âmbito da OMC.

Da mesma maneira, a questão das regras de prova e evidência,
que é absolutamente deficiente na OMC, foi copiada pela ALCA [50]. Há também
na proposta da ALCA um anexo com regras de procedimento, absolutamente inadequadas,
mas com alguns poucos progressos com relação às da OMC [51], como por exemplo
um tratamento da questão do “ônus da prova”, objeto de bizantinos debates no
sistema multilateral. Por outro lado, numa das poucas inovações com relação
ao sistema da OMC, foi admitido o instituto das medidas cautelares, denominadas
“medidas provisórias” no âmbito da arbitragem da ALCA [52]. Como veremos abaixo,
tendo em vista as dificuldades no sistema de sanções como presentemente estruturado
no sistema de arbitragem da ALCA, formulado com base naquele da OMC, é difícil
vislumbrar como poderão tornar-se exeqüíveis as “medidas provisórias”.

O sistema de arbitragem da ALCA, à semelhança do seu
modelo da OMC, peca igualmente por muitas omissões processuais de fundamental
importância para qualquer sistema jurisdicional. Assim, o sistema não possui
qualquer instrumento processual para o tratamento de preliminares como, inter
alia, carência de ação, ilegitimidade de parte, incompetência de fôro ou conflito
de tratados. A experiência da OMC demonstrou que estas omissões trazem um alto
custo para os países em desenvolvimento, no que toca à derrogação de direitos
reconhecidos por outros tratados. Da mesma forma, o sistema de arbitragem da
ALCA, à semelhança do tratamento dispensado na OMC, não admite o instituto da
reconvenção, o que pode causar a existência de dois casos conexos, com painéis
diversos, com possíveis termos de referência semelhantes e com resultados desencontrados.

À semelhança do que ocorre na OMC, o sistema de arbitragem
da ALCA não enseja laudos ou decisões auto-exeqüíveis. Esta falha gerou graves
problemas no âmbito multilateral, onde a maioria das decisões tem problemas
de execução ou implementação. Assim, por ocasião de uma decisão, a parte vencida
terá como opção a oportunidade de remover a medida causadora da divergência
[53]. Caso, todavia, a parte vencida recuse-se a tanto, não haverá nenhuma execução
específica do laudo. Como alternativa, caberá então à parte vencedora da disputa
entrar em entendimentos com a parte vencida para tentar acordar em compensações,
isto é, a revogação de vantagens tarifárias da primeira para com a segunda,
com o objetivo de compensar as perdas sofridas pela primeira como resultado
das medidas ilegais da segunda. Caso não haja entendimentos entre as duas partes,
caberá à arbitragem da ALCA determinar a natureza e montante da revogação das
vantagens tarifárias, o que é chamado de retaliação [54].

Esta sistemática importada da OMC tem o gravíssimo inconveniente
de penalizar a corrente saudável de comércio entre os dois países envolvidos
numa dada disputa, além de não ter execução específica na remoção da medida
julgada ilegal ou inconsistente com a ordem jurídica de regência da atividade
afetada. No âmbito da Rodada Doha da OMC, muitas são as propostas para a reforma
do sistema de sanções, prevendo-se uma árdua batalha antes que um consenso seja
obtido. Qualquer progresso feito no âmbito multilateral fará o seu sistema de
resolução de disputas certamente mais eficaz do que este proposto para a ALCA.

De resto, vale ainda observar que a formatação do proposto
sistema de arbitragem da ALCA parece, pela técnica utilizada, ter sido quase,
senão totalmente, de responsabilidade e iniciativa dos EUA, os grandes inspiradores
e beneficiários do ERD da OMC. Isso ocorre tanto em questões substantivas, como
também na técnica jurídica empregada. Mesmo onde há divergências entre os modelos,
as soluções oferecidas são normalmente aquelas propostas, patrocinadas e/ou
defendidas pelos EUA no regime multilateral.
Como resultado desta análise, limitada a alguns aspectos
legais da iniciativa da ALCA, examinamos como nos EUA, hoje, a lei interna prevalece
sobre os tratados internacionais de comércio na hierarquia das normas no direito
constitucional daquele país. Como conseqüência, vimos que muitos dispositivos
dos tratados internacionais não revogam a lei doméstica e, por conseguinte,
não beneficiam os nacionais dos países que entram em acordos comerciais com
aquele país, notadamente os de caráter regional, onde as relações de poder fazem-se
sentir de maneira mais contundente. Examinamos ainda a questão preocupante da
tentativa de derrogação da ordem jurídica multilateral do comércio, onde há
melhores condições de resistência ao arbítrio, pelo pacto regional da ALCA,
onde as possibilidades de auto-defesa serão muito menores.

Por outro lado, vislumbramos como a oferta discriminatória
feita pelos EUA no âmbito da ALCA é ilegal do ponto de vista jurídico e insubsistente
do ponto de vista tarifário.

E ainda, por último, detivemo-nos na anacrônica proposta
de arbitragem da ALCA, baseada num infame modelo que presentemente está sendo
objeto de reconstrução e que trouxe enormes dificuldades e injustiças para os
países em desenvolvimento no âmbito da OMC. Aplicado o sistema à ALCA, nos moldes
que estão para ser superados pela reforma do ERD e ainda colocado, como está,
acima da ordem multilateral da OMC, teremos o infausto resultado de que nossas
disputas com os EUA serão sempre apresentadas ao modelo que nos será mais adverso:
aquele da ALCA.

Assim, ainda que os argumentos macroeconômicos fossem
favoráveis ao ingresso do Brasil na ALCA (e não o são), apenas a situação jurídica
seria decisiva a absolutamente desaconselhar tão temerária aventura.