Sob a perspectiva dos países em desenvolvimento, a experiência da OMC não foi positiva. De fato, as modestas concessões havidas nas áreas agrícola e têxtil, durante a Rodada Uruguai, não foram suficientes para assegurar sua competitividade natural, já que cuidadosamente feitas para manter as vantagens dos países desenvolvidos. A inclusão das novas áreas no sistema multilateral de comércio permitiu aos países desenvolvidos acesso aos mercados dos países em desenvolvimento, mas não permitiu a estes acesso aos mercados daqueles, fechados por medidas horizontais. O Acordo sobre Medidas de Investimentos relacionadas com o Comércio (TRIMS) deixou de tratar da escandalosa cumplicidade dos países desenvolvidos com a questão das fraudes fiscais e da fuga de capitais nos países em desenvolvimento. O Acordo Antidumping, sopitado e pusilânime, permitiu aos EUA a manutenção de sua legislação doméstica acintosa à eqüidade e aos mais comezinhos princípios de direito internacional.

Por sua vez, o Acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio (TRIPS) subordinou as autoridades nacionais dos países em desenvolvimento àquelas dos países desenvolvidos por meios do conceito da proteção “pipeline”. O Acordo sobre Regras de Origem permite o protecionismo institucionalizado nas áreas de livre comércio e seu uso para desviar as correntes tradicionais de comércio, como é o caso no Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), onde se verificou o aumento da dependência comercial do México aos EUA e um devastador efeito na área do Caribe. O Acordo sobre Subsídios não é justo nem eqüitativo aos países em desenvolvimento, colocando Índia, África do Sul e Brasil no mesmo nível de países como a Suíça e França. De mais a mais, práticas altamente danosas aos países em desenvolvimento como o dumping financeiro e tecnológico, largamente utilizadas para assegurar domínio de mercado, não foram contempladas[1]
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Até mesmo o sistema de resolução de disputas, depositário de tantas esperanças, deixou muitíssimo a desejar nos anos de funcionamento da OMC. Muitos de seus problemas derivam da falta de regras processuais adequadas, que comprometem a eficácia e juridicidade do sistema[2]. O sistema é falho no tocante a terminologia jurídica apropriada e tragicamente omisso no tocante a certos institutos legais básicos como recovenção e litisconsórcios. A primeira das omissões institucionais implica em que seja instalado um painel de arbitragem para o pedido original e outro para a reconvenção, com árbitros diferentes, embora as partes sejam as mesmas e o objeto conexo, como foi o recente caso do Brasil versus Canadá, na questão da indústria aeronáutica. Essa situação implica na tangível possibilidade que as decisões dos dois, três ou quatro painéis sejam diversas e até contraditórias. Por sua vez, a segunda das omissões pode resultar na formação de díspares painéis, com árbitros diferentes e termos de referência diversos, que pode resultar em diferentes decisões para a mesma questão de direito.

Outra falha do sistema diz respeito à impossibilidade da alegação de preliminares, como por exemplo a questão de conflitos entre tratados, que se tornou relevante em painéis de arbitragem julgando recentes casos de interesse do Brasil e Índia. Da mesma forma, o sistema de resolução de disputas da OMC peca pela falta de transparência. Sua divisão jurídica define os termos de referência, ou o objeto do litígio, e presta assessoria mandatória tanto aos painéis como ao grau de apelação, já que nem um nem outro tem estrutura administrativa própria. A divisão jurídica do secretariado da OMC tem uma composição altamente etnocêntrica, dominada por nacionais das principais potências. A OMC, em flagrante violação dos mais básicos princípios de governança, inclusive daqueles santimonialmente recomendados pela OCDE, tem se recusado, por escrito, a fornecer a nacionalidade dos componentes de sua divisão jurídica, o que compromete de ampla forma sua credibilidade e dos seus serviços.

Tamanho rol de falhas, imperfeições e distorções fez com que o sistema de resolução de disputas da OMC padeça de inúmeras bizarrias e idiossincrasias grotescas, algumas das quais tive oportunidade de elencar em meu mais recente livro. A elas pode-se agora acrescer a decisão do painel no caso dos EUA versus Austrália[3]
na questão de bancos de couro, onde decidiu-se condenar uma empresa privada, portanto fora da jurisdição da OMC, a devolver subsídios. Sua tonalidade tragicômica seria menos leve se tal sistema não tivesse decidido, em devastadora maioria dos casos, contra os países em desenvolvimento, quando em confronto com os países desenvolvidos.

Dos 31 casos decididos em grau de apelação na OMC[4]
, 18 foram pertinentes a confrontos entre países em desenvolvimento e desenvolvidos. Destes, 13 foram ganhos pelos países desenvolvidos, mais de dois terços, e apenas quatro pelos países em desenvolvimento, dos quais dois com recusa de implementação. O Brasil foi o campeão das derrotas, tendo sucumbido em quatro dos cinco painéis em que esteve diretamente envolvido contra países desenvolvidos, seguido pela Índia com três derrotas e nenhuma vitória; Coréia com duas derrotas e uma vitória; e Argentina com duas derrotas e nenhuma vitória. De mais a mais, algumas dessas derrotas representam tentativas institucionais de mudança dos tratados em detrimento da ordem jurídica e dos interesses dos países em desenvolvimento[5]
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Todas essas falhas e omissões, para além da crise econômica sustentada pela maior parte dos habitantes do globo, não foram suficientes para uma correção de rumos da OMC dentro dos mecanismos de revisão já apositamente previstos nos tratados da Rodada Uruguai. Pretenderam a UE e os EUA, através do lançamento de uma nova ronda de negociações do sistema multilateral, que se pretendeu chamar Rodada Clinton (sic) ou Rodada do Milênio. Nesta nova ronda, objetivava-se a ampliação das vantagens dos países desenvolvidos. Este escandaloso desígnio implicou na generalizada perda de credibilidade da OMC perante a opinião pública internacional, formada, em sua vasta maioria, pelos desempregados, miseráveis e, de outra forma, excluídos da afluência artificialmente induzida em uns poucos países.

O Chanceler da Argentina, Sr. Adalberto Rodrigues Giavirini, resumiu bem a posição de todos os países em desenvolvimento em recentes declarações: “Fizemos um grande esforço para chegar à globalização. Tivemos uma série de sacrifícios com a privatização, a abertura econômica, e isso não resultou no que disseram que ia resultar. Nosso desemprego é alto, nossa exclusão do comércio é muito forte, nossa taxa de crescimento diminuiu muito devido aos subsídios agrícolas dos países desenvolvidos.” [6]

Dentro deste triste quadro, é muito importante que a OMC não seja o governo mundial de acordo com os tratados de regência.