1.– Desde época anterior a sua independência, o Brasil tem sofrido as conseqüências adversas de negociações comerciais mal conduzidas e que prejudicaram de maneira considerável suas condições de desenvolvimento econômico e social. De fato, o Tratado de Navegação e Comércio de 1810 assinado por Portugal com a Inglaterra, uma extorsão altíssima como preço da proteção da esquadra inglesa à fuga das cortes portuguesas, representou um intransponível obstáculo ao desenvolvimento industrial no Brasil, bem como em Portugal. Posteriormente, como resultado das negociações para o reconhecimento, por Portugal, da independência do Brasil, com a intermediação da Inglaterra, o Brasil assinou com a Inglaterra o infame Tratado de Amizade, Navegação e Comércio de 1827. Fora o preço exigido pela Inglaterra por seus desnecessários bons ofícios, já que a guerra da independência já havia sido decidida pela força das armas.

2.– De acordo com o Tratado de Amizade, Navegação e Comércio, válido por 15 anos, os direitos alfandegários brasileiros seriam de 15%, uma alíquota tão baixa, mesmo nos dias de hoje, que não permitia uma proteção à nascente indústria e, de resto, dispunha ainda que nenhum outro país poderia usufruir de taxas inferiores. [1] Enquanto isso, não se dava contrapartida aos produtos brasileiros, como o açúcar e o café, nos mercados ingleses, que ficavam reservados a suas colônias. No território brasileiro, gozariam os súditos ingleses de inúmeros privilégios, inclusive de tribunais próprios [2]
e contingentes militares para a execução de suas decisões, mesmo contra o estado brasileiro. De resto, o Brasil ainda assumiria a dívida externa de Portugal devida para Inglaterra, o que dificultaria a gestão das contas públicas do novo estado. Esta malsinada negociação representou o primeiro fracasso formal da diplomacia comercial brasileira. [3]
Sua importância foi tão grande que implicou em grave instabilidade política interna no Brasil, com a resultante queda de D. Pedro I em 1831.

3.– Os ingleses, na realidade, impuseram ao Brasil os seus conceitos econômicos imperialistas, formulados a partir do Congresso de Viena, de 1815, segundo os quais livre comércio era o direito de seus súditos enriquecer às expensas de outros povos e nações. Tal construção teórica, surpreendentemente, sobreviveu até os dias de hoje e é adotada impunemente por outros países com desígnios imperialistas, sob a mesma especiosa e falaciosa roupagem de livre comércio, em franco reconhecimento da criatividade propagandística inglesa. [4]
Como decorrência de tal concepção, os negociadores diplomáticos ingleses [5], já naquela época, auscultavam sistematicamente os interesses comerciais nacionais, consultando a iniciativa privada, o que o Brasil somente começou a fazer, de maneira ainda incipiente, há poucos anos.

4.– Para evitar o monopólio inglês, o Brasil foi levado a estender as condições oferecidas àquele país aos seus demais parceiros comerciais, o que levou a uma série de tratados, inclusive com a França, a Áustria e os Estados Unidos da América (EUA). Tais tratados deviam expirar em 1842, mas devido às insuportáveis pressões inglesas, foram prorrogados até 1844, quando iniciou, em realidade, a independência econômica do Brasil, com uma fase de grande prosperidade nacional. Todavia, não faltaram pressões fortíssimas de parte de vários de nossos parceiros comerciais para que os infames tratados fossem renovados. Coube ao Segundo Império o mérito de haver resistido a tais pressões.

5..- Malgrado tal notável resistência e seus resultados positivos, o primeiro ato internacional da República foi o de ceder aos reclamos renovados dos EUA e firmar, em 31 de janeiro de 1891, um acordo aduaneiro com aquele país [6]
. De conformidade com este tratado, a totalidade das reivindicações norte-americanas eram acolhidas e os interesses nacionais não eram atendidos, tanto na área industrial, cujo desenvolvimento foi obstado, como na questão agrícola, onde produtos de grande importância para a economia brasileira, como o açúcar, ficaram sem acesso ao mercados dos EUA. Não obstante a desigualdade do tratado, foram os EUA que o denunciaram, em 1914. Mais uma vez, o Brasil negociara sem contato com a realidade empresarial e com um nível de competência lamentável. [7]

5.1.– Com grande perspicácia, Eduardo Prado, há quase cem anos atrás, assim analisou o cenário atrás da motivação dos EUA com sua rede de tratados de comércio em geral: “Tratados de comércio! Eis aí a grande ambição norte-americana,…do mundo dos monopolizadores que, não contentes com o mercado interno de que eles têm o monopólio contra o estrangeiro, em virtude das tarifas proibitivas nas alfândegas…. Foi no mesmo intuito, de dar saída a seus produtos e de criar-lhes vantagens especiais nos mercados estrangeiros, que os EUA quiseram impor tratados de reciprocidade comercial a todos os países da América.” [8]

6.– Seguiu-se uma fase de alinhamento automático do Brasil aos interesses unilaterais dos EUA, delineados por diversas políticas como a Doutrina Monroe, aquela do porrete, e a pan-americana, que promoviam um projeto de absorção continental. Tal política foi criticada por Lima Barreto, que a denunciava como desavergonhadamente caudatária dos EUA e conduzida por uma diplomacia, a brasileira, que chamava de “meramente decorativa”, que não faz mal nem bem: enfeita. [9]
Com a crise de liquidez e subseqüente falência do Brasil em 1930, suas condições de negociações comerciais e financeiras internacionais ficaram mais comprometidas ainda. Como decorrência, o governo do Pres. Franklin D. Roosevelt propôs um Acordo de Reciprocidade ao Brasil, o qual assegurava baixas tarifas para os produtos industrializados americanos, estabelecia uma política cambial para o país e prometia manter livre de direitos alfandegários a entrada nos EUA do café e da borracha. Oswaldo Aranha, embaixador de Vargas em Washington, comentou em defesa da assinatura do tratado, que veio a se concretizar, que o Brasil tinha pouco a pedir e pouco a oferecer aos EUA. [10]
O advento da Segunda Guerra Mundial somente fez por agravar tal quadro de subordinação do Brasil aos interesses comerciais dos EUA.

7.– Ao final da Segunda Grande Guerra, dentro do quadro da nova ordem mundial que se propunha para o mundo, tiveram lugar as negociações que resultaram na assinatura do Acordo Geral de Tarifas e Comércio de 1947, por 23 países, inclusive o Brasil. [11]
Os principais princípios do GATT são o da cláusula de nação mais favorecida (NMF) [12]
; a cláusula de tratamento nacional; o da transparência e o da tarificação. Fez-se o Brasil representar na ocasião por uma delegação cuja principal reivindicação era a inclusão, no sistema multilateral de trocas, do setor econômico mais antigo e de maior relevância para a humanidade em geral e para os países em desenvolvimento em particular: o agrícola. Nas palavras de Roberto Campos, que integrava, na ocasião, a delegação brasileira como jovem terceiro – secretário do Itamaraty, “perdemos a luta”. [13]

8.– O sistema do GATT, com um secretariado geral estabelecido em Genebra, na Suíça, contemplava uma sistemática de negociações comerciais através das chamadas rodadas, nas quais se buscava uma maior liberalização comercial mediante concessões de um país a outro, as quais eram em seguida estendidas a todos os demais parceiros comerciais por força dos efeitos multilateralizantes da cláusula da nação mais favorecida [14]
. A mais recente da rodadas do GATT foi a chamada Rodada Uruguai, iniciada em 1986 e encerrada em 1994, com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), sucessora do GATT.

A RODADA URUGUAI DO GATT E A CRIAÇÃO DA OMC.

9.– Desde o início da vigência do GATT, em janeiro de 1948, todas as iniciativas para as rodadas partiram dos EUA, país que detinha a indiscutível liderança do mundo capitalista. Com o declínio relativo da economia norte-americana e com a crescente participação da Comunidade Econômica Européia (CEE), hoje União Européia (UE), e do Japão no comércio mundial, os EUA reagiram com um arsenal de medidas unilaterais que eram incompatíveis com a ordem jurídica do GATT, dentre as quais figuravam com preeminência a lei de comércio e a exigência da adoção de acordos de contenção voluntários por parte de seus parceiros comerciais. O sistema de resolução de disputas do GATT não proporcionava uma estrutura legal que permitisse com eficácia o combate a tais abusos, por falta de automaticidade e por depender do consenso em todas as fases do processo.

9.1.– Por conseguinte, pela primeira vez na história do GATT, uma rodada foi solicitada por um país que não os EUA, no caso o Japão. A UE logo aderiu à iniciativa, seguida pelos próprios EUA que, após as tradicionais consultas com os estrategistas do setor privado, vislumbraram enormes oportunidades de aumentar suas vantagens comerciais com a nova rodada. Lançada no Uruguai em 1986, as negociações complicaram-se desde o início, pois pretendiam os norte-americanos e europeus incluir no sistema do GATT as chamadas áreas novas, notadamente serviços, investimentos e propriedade intelectual. De fato, tanto a economia dos EUA, como aquela da UE, havia se tornado predominantemente dependentes de serviços, que eram os geradores dos maiores superavits comerciais dos EUA.

9.2.– Também, pela primeira vez na história do GATT, houve uma reação à agenda por parte dos países em desenvolvimento, principalmente pelo chamado Grupo dos Onze, liderados pela Índia e pelo Brasil, que a esta altura havia se libertado da política de alinhamento automático com os EUA. [15]
O Grupo dos Onze era contrário à inclusão das áreas novas sem que fossem incluídas no sistema multilateral as áreas tradicionais de comércio, agricultura e têxtil, de grande importância para a economia dos países em desenvolvimento. Seguiu-se então uma acrimoniosa disputa que paralisou o andamento dos trabalhos da rodada, de vez que o sistema consensual do GATT exigia unanimidade. Durante esta disputa, os EUA lançaram mão de todos os meios, legais e ilegais, para demover o Brasil de sua posição, inclusive com campanha de desestabilização do país. [16]

10.– Foi superado o impasse com a progressiva inclusão das áreas tradicionais e a imediata integração das áreas novas. Como resultado, foram assinados em 15 de abril de 1994 os Tratados da Rodada Uruguai, que incluíam o acordo estabelecendo a OMC a partir de 1995. Dentre os tratados da Rodada Uruguai, foram firmados acordos respeitantemente a medidas de investimento relacionadas com o comércio; propriedade intelectual; têxteis; salvaguardas; subsídios e medidas compensatórias; serviços; agricultura; e resolução de disputas, dentre outros. [17]
O resultado final foi positivo, abstratamente e dentro de uma perspectiva de longo prazo, de vez que houve uma preocupação marcante em se aumentar a juridicidade do sistema multilateral, muito embora, segundo o próprio secretariado do GATT, em termos concretos, os países em desenvolvimento tenham saído, mais uma vez, os perdedores da Rodada. De fato, de acordo com tal levantamento, 64% dos resultados da Rodada beneficiariam os países desenvolvidos. [18]

10.1.– Para o Brasil, o resultado foi até pior, devido ao fato de que, na fase final da Rodada, o país ter estado imerso em grave crise institucional interna [19]
, que impediu a formulação de políticas estratégicas econômicas que seriam registradas no GATT antes da assinatura dos tratados da OMC, como no caso da política automotiva. Da mesma forma, a referida situação impediu que o Brasil negociasse a abertura de seus mercados internos obtendo concessões de seus parceiros comerciais em contrapartida. Por falta de formulação estratégica, o Brasil liberalizou seus mercados unilateralmente, sem que seus parceiros tivessem dado nada em retorno, o que seria o natural dentro da sistemática do comércio multilateral. Assim, os EUA, por exemplo, os grandes beneficiários da abertura unilateral brasileira, mantiveram suas restrições ilegais de muitos anos, como no caso de calçados, suco de laranja, aço, açúcar, setor financeiro, etc.

11.– Durante a fase de impasse da Rodada Uruguai, houve um surto de acordos de livre comércio, permitidos pelo artigo 24 do GATT, representado por 25 novos acordos entre 1986 e 1994. [20]
Este surto foi o resultado de uma certa desesperança com o sistema multilateral do GATT, e foi aproveitado pelos EUA para, mais uma vez, procurar atingir a hegemonia comercial regional plena com as iniciativas do NAFTA [21]
, assinado em 1992, e da ALCA [22], em fase de negociação. Por sua vez, o Brasil e seus parceiros regionais, Argentina, Paraguai e Uruguai, um ano antes, em 1991, assinaram o Tratado de Assunção para uma ambiciosa iniciativa de um mercado comum regional, o MERCOSUL. Os objetivos do MERCOSUL são a livre circulação de capital; mercadorias; serviços e pessoas; a criação de uma tarifa externa comum e o estabelecimento de uma política externa comum de comércio; e a coordenação de políticas macro-econômicas. Com a ressalva de uma tarifa externa comum com muitas exceções, incluindo o açúcar que aguarda um sucesso da diplomacia comercial brasileira há quase duzentos anos, os objetivos restantes ainda estão a realizar.

12.– Sob a perspectiva dos países em desenvolvimento, até o momento, a experiência da OMC não foi positiva, em termos comerciais, de vez que no período aumentou a concentração de riquezas e do comércio mundial nos países desenvolvidos. Da mesma forma, as modestas concessões feitas na área agrícola e têxtil não foram suficientes para dar uma vantagem competitiva aos países em desenvolvimento, porque foram feitas dentro de um patamar que permitisse aos países desenvolvidos a manutenção do controle dos respectivos mercados. A inclusão das áreas novas permitiu aos países desenvolvidos o acesso ao mercado de serviços dos países em desenvolvimento, mas não permitiu aos países em desenvolvimento o acesso ao mercado de serviços de seus parceiros desenvolvidos, fechado através de barreiras horizontais com políticas comuns de imigração. [23] O acordo de investimentos deixou de tratar da espinhosa questão da escandalosa cumplicidade dos países desenvolvidos à fraude fiscal nos países em desenvolvimento, mediante a guarida, pelos seus setores financeiros, do respectivo produto em regime de paraíso fiscal. [24]

12.1.– O acordo sobre a propriedade intelectual subordinou as autoridades nacionais dos países em desenvolvimento às dos países desenvolvidos, em injustificável renúncia à soberania, através do princípio denominado “pipeline”. O acordo sobre regras de origem permite o protecionismo institucionalizado nas áreas de livre comércio e seu uso para desviar correntes tradicionais de comércio. O acordo subsídios não é eqüitativo com os países em desenvolvimento. O acordo anti-dumping não coibiu o uso arbitrário do instituto na legislação doméstica, principalmente dos EUA, mas também de alguns países em desenvolvimento. [25]
A prática do “dumping” financeiro e tecnológico, comum em empresas dos países desenvolvidos, não foi coibida.

12.1.– Mesmo o sistema de resolução de disputas da OMC, no qual tantas esperanças se depositou, deixou muito a desejar nos anos em que está em funcionamento. Seus problemas decorrem de falta de normas processuais adequadas, comprometendo a juridicidade e a eficácia do sistema. O sistema carece desde de terminologia jurídica até de institutos legais básicos, como o da reconvenção. Decorrem ainda da falta de transparência no papel desempenhado pelo Secretariado, e sua divisão jurídica, no trabalho dos painéis. O próprio sistema de eleição do Diretor-Geral da OMC tem sido acerbamente criticado pela falta de transparência. [26]
Desta forma, parece claro e cristalino que os resultados da Rodada Uruguai carecem de um aperfeiçoamento e de um aprofundamento antes que a comunidade internacional se lance nas águas gélidas e incertas de uma nova rodada, sob pena da irremediável perda de credibilidade do sistema. Por quê, então o lançamento de uma nova rodada, neste momento?

A RODADA DO MILÊNIO DA OMC.

13.– Durante a conferência ministerial da OMC, a tomar lugar em Seattle, Washington, EUA, de 29 de novembro a 3 de dezembro de 1999, espera-se seja lançada nova rodada de negociações do sistema multilateral de comércio. A iniciativa partiu, desta vez, da UE [27]
. No caso da Rodada Uruguai, pela primeira vez a origem da proposta havia sido de um país outro que os EUA, o Japão. Os EUA, após simularem uma discordância por algumas semanas, emergiram com uma agenda tentativa para a proposta nova rodada, que gostariam de denominar Rodada Clinton (sic). O objetivo da UE com a rodada do milênio é o de assegurar a manutenção de sua competitividade relativa através de novos mecanismos a serem criados para compensar os efeitos do uso decrescente de subsídios agrícolas e do custo menor de produção de serviços, industrial e agrícola dos países em desenvolvimento. Os EUA partilham dos mesmos objetivos da UE e o Japão pretende se manter uma força comercial importante.

14.– Dos países em desenvolvimento, a Índia, que é tradicionalmente o mais alerta para as manobras hegemônicas e neocolonialistas, foi inicialmente contra o lançamento de uma nova rodada, por acreditar mais importante a implementação dos temas acordados na Rodada Uruguai. [28] Posteriormente, concordou em negociar a agricultura e o setor de serviços, posição também adotada pela Colômbia. [29]
O Brasil condicionou o seu apoio à nova rodada a progressos na área agrícola, conforme declarações do Pres. Fernando Henrique Cardoso, ao passo que o Ministro Celso Lafer teve a dizer que o país não faria mais concessões tarifárias. [30]
O MERCOSUL está procurando coordenar seus esforços na área agrícola. A África do Sul instou os países em desenvolvimento a uma maior união na defesa de seus interesses comuns. [31]
É certo que alguns dos setores objeto de certos tratados da Rodada Uruguai estão sujeitos a uma revisão para o ano 2000, como o agrícola; o têxtil; e o de serviços, por exemplo, e devem forçosamente ser incluídos na agenda da nova rodada.

15.– Para os parceiros comerciais, no âmbito da OMC, os EUA apresentaram uma agenda relativamente anódina para a conferência ministerial incluindo agricultura; medidas sanitárias; barreiras técnicas ao comércio; serviços; propriedade intelectual; valoração alfandegária; regras de origem; inspeção de pré-embarque; investimentos; subsídios e têxteis, todas matérias objeto dos tratados da Rodada Uruguai. [32]
Todavia, a real agenda dos EUA para a nova rodada é somente discutida internamente naquele país e deve incluir a questão trabalhista, ou “dumping” social; a questão ambiental; o comércio eletrônico; o acordo multilateral de investimentos; compras governamentais; e, na área da agricultura, até a questão da licitude de produtos modificados geneticamente. [33]
Todos estes pontos representam riscos enormes para os países em desenvolvimento, de vez que as matérias serão tratadas, não objetiva, eqüitativa e altruisticamente, mas como instrumentos de alavancagem de vantagens comerciais relativas para os EUA e de promoção de seus interesses hegemônicos.

15.1– Senão vejamos, o efeito do argumento do “dumping” social não é o de promover o bem estar do trabalhador dos países em desenvolvimento; ao contrário, ele leva à perda de competitividade do país e ao desemprego. [34]
O acordo multilateral de investimentos tem o objetivo de assegurar o livre fluxo financeiro e a garantia de conversibilidade cambial da fuga de capitais, do produto da fraude fiscal e do crime organizado para os bancos norte-americanos, gerentes, conselheiros e, principalmente, beneficiários de mais da metade deste capital espúrio. [35]
A questão da política ambiental não visa a preservação e a recuperação do meio-ambiente, mas sim impedir que os países em desenvolvimento coloquem em produção as áreas agrícolas que forçosamente mantiveram ociosas por conta da perda de mercado induzida pela escandalosa política de subsídios dos EUA e UE. A questão do comércio eletrônico visa a impedir que o país consumidor tribute o consumo por essa modalidade, já que os EUA se consideram mais vendedores do que consumidores por tal meio. O objetivo da inclusão do tema das compras governamentais é o de ampliar a hegemonia comercial. E o objetivo da promoção do reconhecimento da legalidade da tecnologia de transformação genética é o da dominação da tecnologia e da produção de alimentos, ainda que os efeitos ambientais e médicos de tais técnicas sejam desconhecidos.

16.– Por sua vez, a UE mostrou que aprende rápido e, mais do que os EUA, apresentou uma agenda vaga e genérica defendendo, por vezes, platitudes diversas como “continuar esforços para aumentar a liberalização do comércio em bens e serviços e evitar recaídas protecionistas” e, ocasionalmente, lançando mão de demagogias surpreendentes pelo desbragado cinismo como “medidas que beneficiem os países menos desenvolvidos”. [36]
Em sua agenda real, estará, certamente, a manutenção de sua política agrícola comum (a PAC), através da qual e dos 300 bilhões de dólares de subsídios anuais, promove uma festa para os produtores agrícolas europeus e condena grande parte da população mundial à miséria. À exceção da agricultura, a tendência é que UE e EUA partilhem da mesma agenda contra os países em desenvolvimento, como na questão de investimentos; serviços; trabalhista; ambiental; compras governamentais; comércio eletrônico, etc. As divergências ocorrerão apenas nos detalhes e especificidades, ou seja, em definir quem fica com que parte do butim.

17.– O Japão ainda não apresentou uma agenda específica, como a UE, mas pode-se esperar que venha a apoiar todas as medidas que impliquem em um aumento da juridicidade do sistema multilateral, no que poderá ser um importante aliado dos países em desenvolvimento. O Canadá freqüentemente, mas nem sempre, defende os mesmos pontos de vista dos EUA. Na agricultura, pode-se esperar que os canadenses sejam a favor de maior liberalização. O Canadá defenderá também um regime multilateral para a concorrência ou direito de competição, tema que concentra riscos e oportunidades para os países em desenvolvimento. Riscos em que certos parceiros desejam concentrar as decisões de concentração e concorrência desleal em prejuízo das autoridades locais e oportunidades para regulamentar questões importantes como o “dumping” financeiro e tecnológico.

18.– Se o Brasil e o Mercosul tem uma agenda, ela ainda não foi tornada pública e submetida a debate nacional. O presidente Cardoso já adiantou que a questão agrícola será prioritária [37]
. De fato, segundo os mais recentes dados divulgados por agentes financeiros do setor rural, 40% do produto interno bruto brasileiro é representado pela agricultura, que também responde por 35% das exportações brasileiras e um superavit comercial de US$ 11 bilhões. Segundo analistas do setor, o Brasil teria, no curto período de um ano, capacidade de dobrar o seu desempenho agrícola se as condições de mercado permitissem maiores condições de acesso. Brasil e Argentina fazem parte do Grupo Cairns [38]
, que coordena seus esforços em prol da liberalização do setor, cooperação que poderá mostrar-se eficiente na nova rodada. Todavia, a agricultura não é o único setor importante para um país com a diversidade econômica e geográfica do Brasil. Outros temas há de grande relevância para a melhoria das condições sociais internas e para o progresso da nação. Há que defini-los com rigor profissional dentro de um plano estratégico para o Brasil, consultada a sociedade civil, e negociá-los com firmeza, perseverança e transparência. Pelo muito que estará em jogo para o futuro do país, não se pode hesitar ou tergiversar. Precisamos de resultados positivos concretos e expressivos de nossa diplomacia comercial.