Durante a conferência ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), a tomar lugar em Seattle, Washington, EUA, de 29 de novembro a 3 de dezembro de 1999, espera-se seja lançada nova rodada de negociações do sistema multilateral de comércio. A iniciativa partiu, desta vez, da UE. No caso da Rodada Uruguai, pela primeira vez a origem da proposta havia sido de um país outro que os EUA, o Japão. Os EUA, após simularem uma discordância por algumas semanas, emergiram com uma agenda tentativa para a proposta nova rodada, que gostariam de denominar Rodada Clinton (sic). O objetivo da UE com a rodada do milênio é o de assegurar a manutenção de sua competitividade relativa através de novos mecanismos a serem criados para compensar os efeitos do uso decrescente de subsídios agrícolas e do custo menor de produção de serviços, industrial e agrícola dos países em desenvolvimento. Os EUA partilham dos mesmos objetivos da UE e o Japão pretende se manter uma força comercial importante.

Dos países em desenvolvimento, a Índia, que é tradicionalmente o mais alerta para as manobras hegemônicas e neocolonialistas, foi inicialmente contra o lançamento de uma nova rodada, por acreditar mais importante a implementação dos temas acordados na Rodada Uruguai. Posteriormente, concordou em negociar a agricultura e o setor de serviços, posição também adotada pela Colômbia. O MERCOSUL está procurando coordenar seus esforços na área agrícola. A África do Sul instou os países em desenvolvimento a uma maior união na defesa de seus interesses comuns. É certo que alguns dos setores objeto de certos tratados da Rodada Uruguai estão sujeitos a uma revisão para o ano 2000, como o agrícola; o têxtil; e o de serviços, por exemplo, e devem forçosamente ser incluídos na agenda da nova rodada.

Para os parceiros comerciais, no âmbito da OMC, os EUA apresentaram uma agenda relativamente anódina para a conferência ministerial incluindo agricultura; medidas sanitárias; barreiras técnicas ao comércio; serviços; propriedade intelectual; valoração alfandegária; regras de origem; inspeção de pré-embarque; investimentos; subsídios e têxteis, todas matérias objeto dos tratados da Rodada Uruguai. Todavia, a real agenda dos EUA para a nova rodada é somente discutida internamente naquele país e deve incluir a questão trabalhista, ou “dumping” social; a questão ambiental; o comércio eletrônico; o acordo multilateral de investimentos; compras governamentais; e, na área da agricultura, até a questão da licitude de produtos modificados geneticamente. Todos estes pontos representam riscos enormes para os países em desenvolvimento, de vez que as matérias serão tratadas, não objetiva, eqüitativa e altruisticamente, mas como instrumentos de alavancagem de vantagens comerciais relativas para os EUA e de promoção de seus interesses hegemônicos.

Senão vejamos, o efeito do argumento do “dumping” social não é o de promover o bem estar do trabalhador dos países em desenvolvimento; ao contrário, ele leva à perda de competitividade do país e ao desemprego. O acordo multilateral de investimentos tem o objetivo de assegurar o livre fluxo financeiro e a garantia de conversibilidade cambial da fuga de capitais, do produto da fraude fiscal e do crime organizado para os bancos norte-americanos, gerentes, conselheiros e, principalmente, beneficiários de mais da metade deste capital espúrio. A questão da política ambiental não visa a preservação e a recuperação do meio-ambiente, mas sim impedir que os países em desenvolvimento coloquem em produção as áreas agrícolas que forçosamente mantiveram ociosas por conta da perda de mercado induzida pela escandalosa política de subsídios dos EUA e UE. A questão do comércio eletrônico visa a impedir que o país consumidor tribute o consumo por essa modalidade, já que os EUA se consideram mais vendedores do que consumidores por tal meio. O objetivo da inclusão do tema das compras governamentais é o de ampliar a hegemonia comercial. E o objetivo da promoção do reconhecimento da legalidade da tecnologia de transformação genética é o da dominação da tecnologia e da produção de alimentos, ainda que os efeitos ambientais e médicos de tais técnicas sejam desconhecidos.

Por sua vez, a UE mostrou que aprende rápido e, mais do que os EUA, apresentou uma agenda vaga e genérica defendendo, por vezes, platitudes diversas como “continuar esforços para aumentar a liberalização do comércio em bens e serviços e evitar recaídas protecionistas” e, ocasionalmente, lançando mão de demagogias surpreendentes pelo desbragado cinismo como “medidas que beneficiem os países menos desenvolvidos”. Em sua agenda real, estará, certamente, a manutenção de sua política agrícola comum (a PAC), através da qual e dos 300 bilhões de dólares de subsídios anuais, promove uma festa para os produtores agrícolas europeus e condena grande parte da população mundial à miséria. À exceção da agricultura, a tendência é que UE e EUA partilhem da mesma agenda contra os países em desenvolvimento, como na questão de investimentos; serviços; trabalhista; ambiental; compras governamentais; comércio eletrônico, etc. As divergências ocorrerão apenas nos detalhes e especificidades, ou seja, em definir quem fica com que parte do butim.

O Japão ainda não apresentou uma agenda específica, como a UE, mas pode-se esperar que venha a apoiar todas as medidas que impliquem em um aumento da juridicidade do sistema multilateral, no que poderá ser um importante aliado dos países em desenvolvimento. O Canadá freqüentemente, mas nem sempre, defende os mesmos pontos de vista dos EUA. Na agricultura, pode-se esperar que os canadenses sejam a favor de maior liberalização. O Canadá defenderá também um regime multilateral para a concorrência ou direito de competição, tema que concentra riscos e oportunidades para os países em desenvolvimento. Riscos em que certos parceiros desejam concentrar as decisões de concentração e concorrência desleal em prejuízo das autoridades locais e oportunidades para regulamentar questões importantes como o “dumping” financeiro e tecnológico.

Se o Brasil e o Mercosul tem uma agenda, ela ainda não foi tornada pública e submetida a debate nacional. O presidente Cardoso já adiantou que a questão agrícola será prioritária. De fato, segundo os mais recentes dados divulgados por agentes financeiros do setor rural, 40% do produto interno bruto brasileiro é representado pela agricultura, que também responde por 35% das exportações brasileiras e um superavit comercial de US$ 11 bilhões. Segundo analistas do setor, o Brasil teria, no curto período de um ano, capacidade de dobrar o seu desempenho agrícola se as condições de mercado permitissem maiores condições de acesso. Brasil e Argentina fazem parte do Grupo Cairns, que coordena seus esforços em prol da liberalização do setor, cooperação que poderá mostrar-se eficiente na nova rodada. Todavia, a agricultura não é o único setor importante para um país com a diversidade econômica e geográfica do Brasil, bem como de seus parceiros regionais no Mercosul. Outros temas há de grande relevância para a melhoria das condições sociais internas e para o progresso regional. Há que defini-los com rigor profissional dentro de um plano estratégico, consultada a sociedade civil, e negociá-los com firmeza, perseverança e transparência.