São Paulo – Começou, no dia 21 de agosto de 2006, o segundo julgamento de Saddam Hussein, deposto presidente do Iraque, este pelo crime de genocídio alegadamente praticado contra a população iraquiana de origem curda. No primeiro julgamento, ainda em andamento, trata-se do alegado homicídio de 148 xiitas iraquianos, acusado de ser em represália a um atentado à vida do então líder iraquiano, havido na cidade de Dujail.
O tribunal do primeiro julgamento foi criado pela autoridade de ocupação decorrente de guerra ilegal face ao direito internacional. Assim, a corte não tem legitimidade e não prevalece, no Iraque, o Estado de Direito. O andamento do caso evidenciou o caos anárquico em que foi lançado o país seguindo-se à invasão, tanto desastrosa quanto criminosa, liderada pelos Estados Unidos da América (EUA).
O primeiro juiz foi forçado a renunciar; o segundo foi removido. Os advogados de defesa renunciaram em protesto pela inexistência do devido processo legal. Advogados subseqüentes foram assassinados. O réu apresentou-se ocasionalmente ao tribunal aparentando estar drogado e fez greve de fome em protesto ao processo. A corte reúne-se na infame Zona Verde, único local de controle das autoridades incontestado pelas forças da insurgência.
A farsa em que se converteu o primeiro julgamento ensejou protestos e manifestações de preocupação da parte de diversas respeitáveis entidades representativas das profissões legais, como a União Internacional dos Advogados (UIA), e de defesa dos direitos humanos, como a Human Rights Watch.
Nesse quadro sombrio, é de causar estupefação o início do segundo julgamento, por crimes de genocídio, o qual padece dos mesmos vícios de legitimidade do primeiro e diz respeito a um tema de difícil trato. De fato, a Convenção sobre o Genocídio, de 1948, tem sido raramente aplicada, porque a tipificação do crime requer a prova de que o réu tinha a intenção de destruir parcial ou totalmente um grupo racial, religioso, étnico ou nacional.
Nesse intento, o réu teria sido diretamente responsável por uma série de atos capitulados na convenção como assassinatos, deportações, privações ou remoções em massa. No caso precedente de Slobodan Milosevic, ex-líder iugoslavo, os promotores responsáveis tiveram dificuldades em demonstrar o vínculo direto entre o réu e as ações.
De mais a mais, as alegadas ações de Saddam Hussein serão inevitavelmente comparadas com os resultados desastrosos das sanções impostas ao país, bem como das duas guerras promovidas no passado recente, a última das quais ilegal. Como conseqüência direta, morreram mais de 1.5 milhão de civis iraquianos de doenças curáveis, bem como 500 mil crianças com menos de cinco anos de idade, apenas como resultado das sanções.
Ressalte-se ainda o tratamento da população local, sujeita ao arbítrio, ao abuso e à desesperança induzida pelas tropas de ocupação. Lembre-se ainda que, em outros locais do Oriente Médio, populações nacionais sofrem tanto ou mais do que aquelas desgraçadamente submetidas ao jugo de Saddam Hussein.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).