1.- O Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), bastante complexo e abrangente, cobrindo uma vasta área de actividades tanto comerciais como não económicas, foi negociado à pressa, em apenas dois anos (1991 e 1992) entre Canadá, Estados Unidos da América (EUA) e o México. Os líderes desses países eram, na ocasião, os Srs. Brian Mulroney; George Bush e Carlos Salinas de Gortari. Subsequentemente, o NAFTA foi aprovado pelo Congresso dos EUA no final de 1993, assinado pelo novo Presidente daquele país, o Sr. Bill Clinton, no dia 8 de dezembro do mesmo ano e entrou em vigor em 1 de janeiro de 1994. [1]

2.- Durante as negociações, o México caracterizou-se por fazer todas as concessões e nenhuma exigência [2]
, o que explica a rapidez com que foi negociado o acordo do NAFTA, os seus termos draconianos para o México e altamente favoráveis para os EUA. Tal idiossincrasia fez do NAFTA um laboratório do qual os EUA extraíram modelos e matrizes ideais para as suas relações regionais e multilaterais, inaugurando uma nova era de tratados económicos desiguais e iníquos, a primeira desde o fim dos odientos acordos que caracterizaram o colonialismo.

3.- Não foi excepção o capítulo de investimentos do NAFTA. Seu escopo é bastante amplo, cobrindo todo o tipo de investimentos de um país-membro em outro. [3]
O artigo 1139 do NAFTA define investimento de forma abrangente, para incluir propriedade e participações societárias representadas por acções, títulos ou valores mobiliários, bem como de créditos contra uma dada empresa de um país-membro contra um devedor situado em outro Estado-membro. Compreende ainda direitos em propriedade intelectual; interesses imobiliários; direitos contratuais; assim como as transferências financeiras pertinentes.

3.1.- O capítulo de investimentos do NAFTA estabelece os seguintes princípios básicos:

a) a cláusula da nação mais favorecida (NMF), segundo a qual uma concessão feita a um parceiro comercial deve ser estendida aos demais;

b) tratamento nacional, segundo o qual não pode haver discriminação com relação a nacionais do país afectado;

c) proibição de requisitos de desempenho, como o de exportar certa percentagem da produção;

d) livre transferência de lucros e outros pagamentos;

e) vigência de padrões internacionais de expropriação e compensação;

f) sensibilidade ambiental; e

g) sistema de resolução de conflitos.

4.- Já durante a Ronda do Uruguai do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), que foi de 1986 a 1993, alguns países, nomeadamente os EUA, pretenderam incluir a regulamentação dos fluxos financeiros internacionais no sistema multilateral, o que foi recusado pelos países em desenvolvimento, liderados pelo Brasil e pela Índia, já que a matéria era de competência de um outro tratado internacional, o de Bretton Woods. A razão de tal pretensão dos EUA deve-se à pressão do seu sector financeiro interno, que formou grupos de assessoria aos negociadores do país, à semelhança do que também foi feito para o NAFTA. O compromisso alcançado no GATT foi o incipiente Acordo sobre Medidas de Investimentos Relacionadas com o Comércio, as chamadas “TRIMS”, que infamemente desconsiderou a principal delas, o subsídio, em especial o agrícola. [4]

5.- Frustrados por não conseguirem os seus plenos objectivos no âmbito multilateral do GATT e da nova Organização Mundial do Comércio (OMC), os EUA prontamente colocaram o modelo NAFTA – o capítulo de investimentos em particular – dentro da sua “Iniciativa das Américas”. Nesta, os EUA desejam expandir todas as inúmeras, amplas e irrestritas vantagens unilaterais obtidas do México para os demais países da América Latina, no projectado Acordo de Livre Comércio das Américas (ALCA). Insatisfeitos com atacar em apenas uma frente, os EUA instaram a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) [5]
, um organismo internacional sob sua incontestada liderança, a elaborar um acordo multilateral de investimentos (AMI). [6]
Outros sete países foram convidados a participar como observadores plenos, dentre os quais o Brasil, a Argentina e o Chile.

5.1.- Neste ponto, vale observar que, dos 29 membros da OCDE, pelo menos nove têm paraísos fiscais: EUA; Reino Unido; Áustria; Canadá; Irlanda; Luxemburgo; Holanda; Portugal e Suiça. Metade do dinheiro do mundo é movimentado de centros financeiros não residentes situados nestes países, que actuam integrados com o sistema bancário doméstico. Estima-se que apenas os indivíduos que fogem ao pagamento de impostos mantêm nestes centros cerca de dois biliões de dólares americanos (cerca de 340 mil milhões de contos), um terço dos quais na Suíça e outro tanto em Nova Iorque e Londres. [7]
O sector de serviços financeiros é, por conseguinte, uma das principais actividades económicas nos países dominantes da OCDE. Neste sector, a actividade não residente é, de longe a mais rentável. Daí decorre a conclusão lógica do incentivo à livre circulação de capitais, para que a cumplicidade na evasão fiscal possa ser vendida pelos bancos a altos preços.

5.2.- E quais são os princípios básicos do AMI [8]
– São exactamente os mesmos do capítulo de investimentos do NAFTA:

a) cláusula de nação mais favorecida (NMF);

b) tratamento nacional;

c) proibição de requisitos de desempenho;

d) livre transferência de lucros e outros pagamentos;

e) vigência de padrões internacionais de expropriação e compensação;

f) transparência: publicação de leis e regulamentos acfetando investimentos;

g) sistema de resolução de disputas; e

h) vistos temporários para pessoal-chave dos investidores.

5.3.- Como os principais pontos do AMI são também os do capítulo de investimento do NAFTA, para disfarçar, a OCDE inseriu os diáfanos véus do princípio da transparência legislativa, de resto já consagrado multilateralmente pelos tratados da Ronda do Uruguai, e o de vistos temporários para o pessoal-chave. Neste último tópico, aliás, a OCDE tem larga experiência, pois, durante a Ronda do Uruguai, organizou entre os seus membros, o chamado “cartel da vergonha”, que consistiu na uniformização, em quase todos os seus aliados, de práticas restritivas ao movimento de prestadores de serviços dos países em desenvolvimento, baseadas na legislação de imigração dos EUA [9]
.

5.4.- Alega-se, no âmbito da OCDE, que um dos grandes benefícios da iniciativa do AMI seria a criação de uma sólida base legal para o aumento dos investimentos internacionais, e cita-se a estatística segundo a qual, nos últimos 25 anos, o montante de investimentos estrangeiros directos aumentou de 14 mil milhões de dólares norte americanos por ano para 350 mil milhões por ano. [10]
Ainda de acordo com o raciocínio falacioso e bisonho da OCDE, a existência do AMI daria maior credibilidade aos potenciais receptores de investimentos, o que encorajaria o investimento externo. Sob a égide do NAFTA, tal sistema foi testado no México doze meses após a assinatura do tratado. [11]
Garantida a conversibilidade cambial de todos os fluxos estrangeiros ao México, este país ficou em situação de iliquidez e o seu governo teve de tomar 50 mil milhões de dólares de diversos agentes internacionais para garantir a conversão da moeda e repagar os créditos de todos os bancos e empresas estrangeiras, inclusive daquelas controladas por cidadãos mexicanos e sediadas nos mais diversos paraísos fiscais. O sistema atingiu muito bem seu propósito, o de tornar o Governo do país tomador garante cambial das operações contratadas por residentes no país.

5.5.- Na realidade, todavia, sabe-se que muitas vezes superior aos investimentos financeiros directos são os empréstimos e os créditos decorrentes do comércio de serviços e de mercadorias. Somente os créditos de serviços equivalem anualmente a um volume aproximado de 12 biliões de dólares. Por sua vez, o movimento financeiro cambial atingiu hoje a vultuosa quantia de cerca de 1.5 biliões

ao dia. [12]
Os fluxos financeiros internacionais são hoje, na sua vasta maioria, operados da segurança dos paraísos fiscais e dos chamados “euromercados” ou jurisdições não residentes (sem regulamentação) para os mercados nacionais diversos. Tais mercados são caracterizados por grande anomia e neles convivem, com o investidor legítimo, toda sorte de marginais e criminosos, onde o de perfil de menor gravidade é o do sonegador fiscal. Os demais variam desde o crime organizado, o tráfico de drogas, a fraude, a extorsão, o tráfico de armas, etc. Tais recursos são frequentemente utilizados na especulação de rapina, que comprovadamente promove a miséria e infortúnio a uma escala global. Sem sombra de dúvidas, este sector espúrio será o grande beneficiário da aprovação do AMI, tal qual concebido no NAFTA e encampado pela OCDE.

6.- Para se estabelecer condições legislativas mais atraentes ao investimento estrangeiro directo, basta que os países receptores as criem dentro de seu ordenamento jurídico interno, de acordo com suas especificidades económicas, políticas, sociais e culturais. O investidor estrangeiro, muito bem informado e sofisticado, saberá distinguí-las e optar pela situação legal mais transparente, estável, vantajosa e equitativa.

7.- Ao contrário, para o fluxo financeiro creditício internacional, que congrega todas as vergonhosas categorias supra referidas, a livre conversibilidade e a livre movimentação de recursos, sem limitações, são essenciais para sua plena eficácia, não somente para a violação da lei e da ordem, como também no que toca à minimização do risco e maximização do resultado, com o mínimo impacto tributário possível. Ora, quem são os grandes instrumentadores do capital creditício internacional? Certamente, os bancos comerciais e de investimentos. E onde estão as grandes praças financeiras internacionais, nas quais são feitas todas as compensações de tais fluxos monetários? Certamente, nos países membros da OCDE. E onde estão os grandes bancos internacionais, parceiros indispensáveis, mediante o pagamento de taxas e serviços, daqueles responsáveis por tais fluxos financeiros? Certamente, nos países membros da OCDE.

8.- Assim, a iniciativa do AMI tem por objectivo dar uma maior segurança e, principalmente, conversibilidade cambial aos fluxos financeiros internacionais, derrogando os dispositivos aplicáveis do aposto Tratado de Bretton Woods, mormente no que diz respeito à cláusula transitória de inconversibilidade. Neste fluxo, a componente de origem criminosa é elevadíssima. Somente o Brasil perde em arrecadação fiscal por ano a quantia não desprezível de 40 mil milhões de dólares devido à anomia internacional na área e à atitude, não só complacente mas de cumplicidade, dos centros financeiros de muitos países ligados à OCDE.

9.- A esta altura, devo dizer que a iniciativa de transplantar o AMI da OCDE para a OMC se deve ao facto de que, celebrado na OMC, não atingiria os países alvo: aqueles em desenvolvimento. Desta maneira, e tendo em vista a crise financeira mundial que flagela o mundo nos últimos doze meses, é de causar profunda estupefacção e asco que, ao invés de se procurar trazer a lei e a ordem jurídica para este mundo de anomia que é o sistema financeiro internacional, a única iniciativa que se nos apresenta é exactamente no sentido de liberalizar e legitimar o estupro social e económico. Um escândalo!