Londres – Dias atrás, o Ministério da Fazenda apresentou uma proposta para a oferta brasileira de redução tarifária de bens no âmbito da Rodada Doha, da Organização Mundial do Comércio (OMC). Como é sabido, durante as rodadas de negociação, os Estados membros fazem, uns aos outros, ofertas que são então multilateralizadas, i.e., aplicáveis a todos, por força da cláusula da nação mais favorecida.
Não há dúvidas que, numa perspectiva exclusiva de técnica de negociação, a ocasião para uma concessão tarifária dá-se realmente durante tais rodadas, porque permite a obtenção de contrapartidas da parte dos principais parceiros econômicos. O sucesso na negociação depende de como os benefícios das contrapartidas obtidas irão superar os ônus e percalços das concessões feitas.
Nas últimas rodadas, conforme cálculos do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional (FMI) e da Organização das Nações Unidas (ONU) o Brasil, como os países em desenvolvimento em geral, foi um grande perdedor. Na Rodada Uruguai, mais de 73% dos benefícios couberam aos países desenvolvidos, segundo cálculos do FMI. Por exemplo, o Brasil foi praticamente excluído do comércio internacional de serviços.
Pois bem, a proposta tornada pública pelo Ministério da Fazenda é generosa aos parceiros comerciais porque propõe a redução do máximo consolidado (patamar superior de cobrança possível), de 35% para 10.5%, e a redução da tarifa média efetivamente cobrada para 9.79%. Os objetivos internos desse grande corte tarifário seriam a ampliação da produtividade e capacidade da economia, via crescimento sustentado da corrente de comércio. Segundo o Ministério da Fazenda, o aumento de exportações e importações ampliaria as possibilidades de investimentos, a produção e o emprego.
Como ainda não se sabe bem o que o Brasil obteria em troca da redução tarifária, constata-se que a proposta formulada leva em consideração apenas supostos benefícios institucionais para a economia brasileira. As tarifas, como bem é sabido, constituem a única fonte legal de proteção da indústria doméstica face à concorrência externa. Ao promover uma dramática redução tarifária, um país expõe-se à concorrência internacional em níveis de igualdade. Para sustentá-la e prevalecer no embate, devem existir alguns pressupostos institucionais básicos.
De fato, em sua importante obra, Chutando a Escada, o economista Ha-Joon Chang expôs como o protecionismo assegurou, num primeiro momento, a sobrevivência da indústria nascente, até se firmar a sua competitividade, para depois consolidar a hegemonia aos hoje países desenvolvidos. O protecionismo continua a ser utilizado pelos países desenvolvidos para manter a hegemonia conquistada e se manifesta através dos picos tarifários e das barreiras não tarifárias. Assim, enquanto as tarifas médias praticadas pela União Européia (UE) e Estados Unidos da América (EUA) são relativamente baixas (inferiores a 2%), nos setores que devem ser protegidos situam-se freqüentemente acima de 16%.
Ora, é de se indagar se a economia brasileira já atingiu um tal patamar de excelência em competitividade que permita ao nosso governo dar lições de liberalismo comercial aos parceiros hegemônicos do comércio. Afinal, já enterramos o chamado “custo Brasil”? Não são nossas taxas de juros as mais altas do mundo? Não é o nosso regime tributário o mais grotesco, bizarro, insano e oneroso do mundo? Não está nossa capacidade de investimentos próprios abaixo da necessidade mínima de sustentação de desenvolvimento básico? Não temos necessidade de grandes inversões sociais? Enfim, não somos mais um país em desenvolvimento?
Como então irão as empresas brasileiras poder competir com as estrangeiras, que têm não somente um amplo acesso aos mercados financeiros voluntários, como a subsídios e, principalmente, a taxas de juros 15% mais baratas? Como irão nossas empresas, que se deparam com tributos ao faturamento e sangram com mais de 70 impostos, competir com a eficiência tributária de um outro país em desenvolvimento, a China (menos de 20), sem contar com aquelas das potência hegemônicas?
Nesse ponto, é oportuno lembrar que um recente relatório do International Finance Corporation (IFC) colocou o Brasil em 119o. lugar, num universo de 155 países pesquisados sob o prisma da competitividade internacional (153o. lugar na competitividade fiscal). De mais a mais, a sobrevalorização artificial do real face ao dólar americano, já num patamar de 30%, favorece aos importadores de produtos estrangeiros por suplantar os valores tarifários, num verdadeiro subsídio aos produtores de terceiros países. Essa situação já faz do Brasil, na realidade, o país que pratica o maior liberalismo nas importações.
Como então poderá o Brasil competir praticando tarifas de primeiro mundo, numa situação de tamanha grave adversidade institucional? Para que se possa dimencionar adequadamente uma oferta de redução tarifária no âmbito multilateral, deve-se em primeiro lugar definir, com sobriedade, qual o grau de proteção necessária à indústria, face à realidade nacional. Em segundo lugar, deve-se buscar contrapartidas dos parceiros comerciais que beneficiem o acesso a mercados da indústria doméstica. Por último, deve-se assegurar que as concessões recebidas sejam maiores e melhores do que aquelas feitas.
Com o quadro desejado pela Fazenda, dar-se-á o agravamento da falta de competitividade institucional brasileira, com o que os investidores estrangeiros preferirão constituir plataformas de exportação em outros países, para atender ao mercado brasileiro. Da mesma forma, a Fazenda estará promovendo a fuga de capitais do Brasil, pois será mais eficiente atender ao mercado brasileiro desde terceiros países. Melhor seria a Fazenda patrocinar negociações realistas e tratar de promover a recuperação da competitividade nacional.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).