1.1.– Aceitei prazerosamente o novo convite da UNIAAL para proferir uma palestra, desta vez em atenção à meritória e oportuna iniciativa de um seminário sobre “Mediação e Resolução de Conflitos”, quando me foi assegurada a possibilidade de um texto de minha autoria ser lido pelo meu sócio, Dr. Ruben Fonseca e Silva, do departamento internacional de Noronha – Advogados, em função de minha ausência do país, em viagem profissional ao Reino Unido. Lamento sinceramente minha ausência, de vez que sou um entusiasta do incansável trabalho da Prof. Dalva Martins à frente da UNIAAL.

1.2.– Organizei minha apresentação de hoje da seguinte maneira:

i. Esta Introdução;
ii. Breve Histórico do GATT e da OMC;
iii. O Entendimento Sobre Resolução de Disputas da Rodada Uruguai;
iv. O Procedimento Arbitral na OMC;
v. O Brasil no Sistema de Resolução de Disputas da OMC;
vi. Falhas Institucionais e Procedimentais do Sistema; e
vii. Conclusões.

2.1.– O Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) [1]
foi assinado em 1947 por 23 países, entre eles o Brasil, e entrou em vigor em 1948. O GATT foi um dos tratados internacionais celebrados ao final da 2a. Grande Guerra Mundial, como parte da nova ordem internacional pós-conflito, da mesma forma que o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BIRD) e a própria Organização das Nações Unidas (ONU). Como todos os demais, o GATT foi largamente inspirado pelos Estados Unidos da América (EUA) que, na ocasião, dominavam tranqüilamente as relações comerciais internacionais. Na realidade, o GATT deveria ser a Organização Internacional do Comércio (OIC), mas o congresso dos EUA jamais a aprovou, matando a iniciativa do seu próprio governo no nascedouro. Tal situação fez com que apenas um tratado limitado, o GATT, e não uma organização internacional com poderes abrangentes, regulasse o comércio internacional.

2.2.– O objetivo principal do GATT era regulamentar as relações de troca internacionais de forma a trazer uma certa juridicidade a um campo notoriamente infame pela anomia. Esta regulamentação, todavia, tinha contornos muito limitados, de vez que os EUA não permitiram regras que comprometessem sua hegemonia comercial e sua capacidade de, unilateralmente, alterar as regras do jogo das trocas e estabelecer sanções próprias. Um escandaloso exemplo do jogo de cartas marcadas conduzido pelos EUA foi a exclusão do setor agrícola do regime do GATT, justamente a área comercial de maior tradição mundial e aquela de maior importância para os países em desenvolvimento. De qualquer forma, ante ao quadro de inexistência de normas internacionais, o GATT representou um progresso. [2]

2.3.– O princípio básico do GATT é o da cláusula de nação mais favorecida (cláusula NMF) [3], mediante a qual uma concessão feita a um parceiro comercial é imediatamente multilateralizada e, portanto, estendida a todos os demais signatários do tratado, de tal forma que o comércio internacional seja praticado em bases não discriminatórias. Outros princípios do GATT são o tratamento nacional, mediante o qual um produto estrangeiro tem igual tratamento ao produto nacional, após o pagamento das tarifas; a transparência legislativa; e as vedações às práticas desleais de comércio e restrições quantitativas às importações.

2.4.– A sistemática da cláusula NMF fez com que o sistema multilateral evoluísse para as chamadas rodadas de negociações. Tais rodadas foram tradicionalmente convocadas pelos EUA, desejosos de obter maiores concessões comerciais de seus parceiros, na medida em que as economias da União Européia (UE) [4] e o Japão se tornavam mais competitivas e reduziam a participação da economia dos EUA no comércio global. Para atingir seus objetivos hegemônicos comerciais, os EUA passaram a lançar mão de diversas bizarrias institucionalizadas como regulamentos comerciais, grosseiramente travestidos de uma pretensa roupagem legal, como sua legislação anti-dumping e sua indução ao comércio administrado através as medidas de contenção voluntária. [5] Assim, pela primeira vez, um país outro que os EUA, o Japão, justamente a maior vítima (mas não a única) dos abusos e desmandos dos EUA, tomou a iniciativa de iniciar uma nova rodada de negociações do sistema multilateral.

2.5.– O maior interesse do Japão era o aumento da juridicidade do sistema, tanto mediante regras mais claras e abrangentes, como através de um sistema de resolução de disputas que fosse eficaz. De fato, o sistema de resolução de disputas do GATT era, originalmente, um especioso e canhestro arremedo de prestação jurisdicional, conhecido como “conciliação”, em que as próprias partes se reuniam com o propósito de transacionar. Posteriormente, o sistema evoluiu para a indicação de árbitros que, na realidade, eram diplomatas com pouco ou nenhum conhecimento jurídico, mas pior ainda, incapazes ou desprovidos de vontade, certamente por força do treinamento tradicional, de decidir de forma clara e inequívoca. Todavia, o maior problema do sistema de resolução de disputas do GATT era a possibilidade de uma parte impedir a formação de um painel; bloquear seu andamento; e|ou recusar o cumprimento de uma decisão. [6] Os EUA foram useiros e vezeiros nas táticas de neutralização do sistema, que combinavam com as violações às regras. Um exemplo de tal atitude foi a sua recusa em cumprir o laudo arbitral de um painel do GATT que decidiu em favor do Brasil no caso dos calçados. [7]

2.6.– Os EUA e a UE logo se convenceram de que poderiam tirar vantagem da iniciativa japonesa em uma nova rodada do GATT, desejosos que estavam em incluir no sistema multilateral as chamadas áreas novas, que abrangiam os setores de serviços, investimentos e propriedade intelectual. Lançou-se, então, a chamada Rodada Uruguai do GATT, em 1986, dominada imediatamente pela acrimônia, pois os países em desenvolvimento, representados pelo chamado Grupo dos 11, liderados pela Índia e pelo Brasil, embora favoráveis ao aumento da juridicidade do sistema, eram contra a inclusão das cosidetas áreas novas, enquanto o comércio tradicional, representado pelo setor agrícola e de têxteis, continuasse fora do sistema multilateral. Depois de um impasse que durou alguns anos, devido ao sistema de decisão consensual do GATT, chegou-se a um entendimento mediante o qual seriam incorporadas as áreas novas no sistema, ao mesmo tempo que as áreas tradicionais, embora essas num período de defasagem bastante significativo, que pode alcançar dez anos na área têxtil e muito mais na agricultura.

2.7.– O resultado final da Rodada Uruguai, encerrada em 1994, que implicou na criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1995, em termos estritamente comerciais, favoreceu os países desenvolvidos, com 64% dos benefícios, contra os países em desenvolvimento, que tiveram 36% das vantagens, conforme estudo publicado pelo Banco Mundial. [8] Todavia, o vasto número de acordos em geral e, particularmente, o “Entendimento sobre Regras e Procedimentos Governando a Resolução de Disputas” (DSU) [9] deu grandes esperanças para os países em desenvolvimento, em função de regras mais eficazes, com um mecanismo de automaticidade para o sistema que vai da formação do painel à implementação do laudo arbitral. Em minha obra, “A OMC e os Tratados da Rodada Uruguai” [10], concluída em 1994, eu afirmei que “vislumbra-se no sistema de resolução de disputas atual um dos principais alicerces da OMC.” Todavia, como bem lembrou Victor Prado, “esses acordos resultam não de um trabalho intelectual de juristas, mas muito mais do trabalho de negociadores comerciais e diplomáticos que tinha de atender, muitas vezes, a interesses divergentes.” [11]3.1.– Ao iniciar este tema, devo dizer que as línguas oficiais da OMC são o inglês, o francês e o espanhol. Todavia, para efeitos práticos, quase todas as negociações levadas a efeito em seu âmbito, são realizadas na língua inglesa, assim como os trabalhos dos painéis. Este fato representa uma série desvantagem sistêmica para os nacionais de países que não falam aquelas línguas como nativas, como veremos no desenrolar de minha exposição. O artigo 23.1 do DSU reserva a utilização do sistema para que os membros da OMC possam buscar a reparação da violação das obrigações de outros membros, incluindo a anulação ou neutralização dos benefícios derivados dos acordos multilaterais de comércio. Por sua vez, o artigo 2 do DSU estabelece que o Órgão de Resolução de Disputas (ORD) é o organismo competente para arbitrar as disputas levantadas no âmbito do sistema multilateral. Suas decisões, todavia, não poderão ser tomadas “contra-legem”, no caso os tratados do sistema multilateral. As reconvenções são expressamente excluídas [12] e, estranhamente, o processo de resolução de disputas não deve ser considerado como “contencioso” [13].

3.2.– O primeiro estágio do processo de resolução de disputas da OMC diz respeito a consultas e mediação, que encontram-se reguladas, as primeiras no artigo 4 e a segunda no artigo 5 do DSU. A sistemática de consultas formais prevê um prazo de aproximadamente 40 dias; a comunicação ao secretariado da OMC; e a confidencialidade. Normalmente, as consultas formais tomam lugar na sede da Organização, em Genebra, na Suíça. Freqüentemente, as consultas formais são precedidas por consultas informais, levadas a efeito pelas chancelarias e embaixadas dos países envolvidos nos respectivos territórios. Se a consulta formal não é respondida tempestivamente, dentro do prazo máximo de 60 dias, passa-se automaticamente à formação de um painel de arbitragem. Se as partes assim o preferirem, frustradas as consultas, pode-se passar aos bons ofícios, conciliação ou mediação, dentro do prazo de 60 dias. [14] O diretor-geral da OMC poderá oferecer seus bons ofícios. [15] Na prática, todavia, passa-se das consultas diretamente para a formação de um painel.

3.3.– No sistema de resolução de disputas da OMC, o direito de ação cabe apenas ao estado soberano, membro da Organização, excluídos, portanto, os estados não membros e seus nacionais. Desta forma, uma empresa prejudicada por uma medida de um estado soberano não poderá recorrer ao sistema de resolução de disputas da OMC. Para tanto, tal empresa deverá convencer o seu governo a iniciar o processo em nome do estado soberano, tarefa sempre árdua e laboriosa. Isto faz com que os estados ajam por conta de suas empresas, o que ocorreu, por exemplo, no recente caso Brasil vs. Canadá, em que os interesses em jogo são, em princípio, os da empresa brasileira, Embraer, e da canadense, Bombardier. A representação do estado soberano fica a cargo de sua missão junto à OMC, mas é permitida a contratação e a representação por advogados independentes. Durante a gestão do Emb. Celso Lafer à frente da missão brasileira na OMC, o Brasil valeu-se de advogados norte-americanos para defender seus interesses. Os resultados de tais esforços serão analisados mais adiante.

3.4.– O pedido de instalação de um painel deverá ser formulado por escrito ao ORD e deverá ser formado na primeira reunião do ORD seguinte à respectiva petição. [16] O painel deverá ser composto de 3 ou, no máximo, de 5 árbitros, independentes, a serem indicados pelas partes na disputa. [17] Se, todavia, não houver acordo quanto aos árbitros dentro do prazo de 20 dias, então o diretor-geral fará a respectiva nomeação. [18] O secretariado da OMC tem uma lista de árbitros composta de indivíduos com notória especialização na área do comércio internacional e que tenham sido árbitros ou advogados em um painel do GATT, representantes ou oficiais de governo, membros do secretariado ou professores ou autores na área de direito do comércio internacional.[19] Nada obsta, todavia, que um indivíduo devidamente qualificado, cujo nome não esteja na lista de árbitros, venha a ser como tal indicado. De qualquer forma, os países em desenvolvimento podem solicitar que seja indicado um árbitro de um país nas mesmas condições. [20] Não é permitido que um nacional de um estado que esteja na disputa seja nomeado como árbitro, a menos que haja a expressa concordância da outra parte. [21] É de se mencionar que, na experiência de quatro anos do sistema de resolução de disputas da OMC, ficou marcada a tendência do insucesso na indicação consensual dos árbitros pelas partes, o que tem levado à sua indicação pelo diretor-geral, após um processo interno de consultas de pouca transparência. Note-se, ainda, que dentre os requisitos para a posição de árbitro da OMC não está o de notório saber legal.

3.5.– A sistemática de resolução de conflitos da OMC admite o litisconsórcio ativo sempre que possível. [22] As regras processuais serão as mesmas para todas as partes envolvidas. O DSU admite também a participação de terceiros interessados nos trabalhos de um painel, sem direitos processuais plenos, mas com a faculdade de apresentar sua posição e de tê-la levada em consideração no laudo arbitral. [23]
O terceiro, se assim o desejar, poderá peticionar pela instalação de um painel próprio, de acordo com seus interesses, caso em que terá plenos direitos processuais. [24] Este esdrúxulo conceito de participação limitada de terceiros, existente ao lado do litisconsórcio ativo, é altamente comprometido do ponto de vista jurídico e somente pode ser explicado pelo gosto diplomático pela intriga e não pela vontade em se estabelecer o devido processo legal. Da mesma forma, a não permissibilidade da recovenção traz o potencial risco que dois painéis, formados para decidir sobre uma questão conexa envolvendo as mesmas partes, possam decidir de forma diversa e até mesmo contraditória.

3.6.– Muito importante para o sistema de resolução de disputas da OMC é a questão dos chamados “termos de referência”, que na realidade é o pedido substantivo formulado pela parte prejudicada ao ORD para a instalação do painel de arbitragem. [25]Os painéis não poderão decidir “ultra-petita”, isto é para além do que constou nos termos de referência. Ao contrário do que se dá em tribunais e sistemas judiciários com certa substância jurídica [26] , na OMC o argumento da lei necessariamente compõe o pedido em acréscimo às razões decorrentes da descrição dos fatos. [27] Assim, uma disparatada apreciação da lei, ou dos dispositivos legais aplicáveis a um determinado caso, pode na realidade prejudicar irremediavelmente uma pretensão fundada em motivos fáticos ponderáveis com lastro em outros fundamentos legais. O mesmo pode ocorrer para uma defesa. Há ainda a possibilidade de se chegar a termos especiais de referência, a serem redigidos pelo coordenador do ORD, expediente que não tem sido utilizado. [28]

3.7.– Os laudos arbitrais serão o resultado de deliberações confidenciais do árbitros, de forma anônima, e redigidos sem a presença dos representantes das partes, de acordo com o constante nos autos. [29] Não há deliberações sem a oitiva da parte contrária. [30] Na prática, o secretariado da OMC, em geral, e sua divisão de assuntos jurídicos, em particular, tem um papel importante e pouco transparente na condução dos painéis. [31] Os árbitros não tem nenhuma infra-estrutura própria e, por conseguinte, dependem para apoio legal, procedimental e jurisprudencial, do suporte da divisão de assuntos jurídicos. Desta forma, freqüentemente, os árbitros são apoiados e conduzidos por seus assessores que operam na penumbra dos vastos corredores e amplos átrios sombrios da OMC. Sabedores da importância fundamental da função de assessoria legal no desenrolar dos trabalhos do sistema de resolução de disputas, países como os EUA, Canadá e a UE controlam seus trabalhos e dominam as posições técnicas. A participação dos países em desenvolvimento é marginal e não há nacionais do Brasil. Instado pela Associação Mercosul pelo Estado de Direito nas Relações Internacionais, uma organização não governamental que tenho a honra de presidir e que é devidamente cadastrada na OMC, a informar o organograma funcional e a nacionalidade dos integrantes da sua divisão jurídica, o secretariado da OMC optou por silenciar.

3.8.– O painel arbitral apresentará, então, um laudo preliminar às partes, para comentários por escrito, após o que o laudo final será comunicado às partes e enviado ao ORD para adoção. [32] O relatório permanecerá confidencial por 20 dias, cabendo comentários das partes para a reunião do ORD que o adotará dentro de 60 dias da data de sua lavra. [33] A publicidade do laudo, uma vez adotado pelo ORD, só será dada após a tradução do mesmo para as demais línguas oficiais da OMC, o que normalmente leva mais de um mês. Isto importa em pouca transparência e prejudica a sociedade civil dos países membros, que não tem condição tempestiva de apreciar o desempenho de seus representantes e avaliar as conseqüências de seus atos, afetando adversamente o estado de direito na ordem interna.

3.9.– A apelação tem o efeito suspensivo na implementação do laudo arbitral de primeira instância. A criação do grau recursal foi uma boa novidade do DSU. [34]
Ele tem 7 árbitros e cada painel terá necessariamente 3. O prazo máximo de decisão será de 60 dias e o órgão de apelação deverá levar em consideração todos os pontos levantados pela parte recorrente. O laudo de apelação, que deverá manter, modificar ou reverter a decisão recorrida, será adotado pelo ORD e aceito incondicionalmente pelas partes envolvidas. Uma vez adotado o laudo do painel de apelação, a parte culpada deverá notificar suas intenções sobre a respectiva implementação. Se for impraticável o cumprimento imediato, a parte culpada terá um prazo razoável para tanto. O prazo razoável será o sugerido pela parte culpada, desde que aceito. Caso contrário, será o prazo aceito de comum acordo entre as partes envolvidas dentro do período de 45 dias. Se tal não for possível, o prazo será determinado pelos árbitros dentro de 90 dias da data de adoção do laudo e não deverá exceder o período de 15 meses. [35]

3.10.– Na eventualidade de negativa ou omissão na implementação do laudo arbitral pela parte vencida, a parte prejudicada poderá iniciar um procedimento de compensação e de suspensão de concessões por parte da parte vencedora à parte sucumbida, de tal forma a contrabalançar as perdas estimadas por tal inadimplemento. [36] Tais medidas podem, por exemplo, tomar a forma de suspensão da cláusula NMF para aumento de tarifas sobre determinados produtos de interesse do país vencido como exportador ao país vencedor [37] Este mecanismo é acionado de conformidade com regras específicas previstas pelo DSU, tendo ocorrido, recentemente, pela primeira vez na história do comércio multilateral, quando a OMC autorizou os EUA a estabelecer sanções contra a UE no valor de US$ 191 milhões, por falta de implementação por parte da UE do laudo arbitral sobre regras de importação de bananas. [38]

3.11.– Abaixo segue o quadro sinóptico de resolução de disputas na OMC [39] :

QUADRO SOBRE AS RESOLUÇÕES DE DISPUTAS NA OMC.
4.1.– As regras processuais do sistema de resolução de disputas da OMC são aquelas objeto dos “procedimentos de trabalho”, objeto do anexo 3 do DSU e dos “procedimentos de trabalho do grau recursal”, também anexo ao DSU. Como a pobreza léxica veementemente denota, tais normas processuais não foram feitas por juristas e apresentam sérios problemas, que se comentará oportunamente no curso desta apresentação. A tradução dos textos será por mim feita literalmente para que se possa ter uma idéia precisa da confusão terminológica instaurada por escassez de maior rigor científico e abundância da menor cultura jurídica. Devo adiantar que a mesma estupefação causada pela mediocridade e imprecisão dos atabalhoados textos, na tradução, é igualmente constatada pelo exame do original, de vez que a língua inglesa tem vocabulário adequado para expressar conceitos jurídicos de há muito consagrados no direito.

4.2.– Os trechos a seguir citados são as normas processuais de primeira instância. “O painel reunir-se-á em sessão fechada. As partes da disputa, e as partes interessadas, deverão estar presentes nos encontros somente quando convidadas pelo painel.” [40]
“As deliberações do painel e os documentos submetidos a ele deverão ser mantidas confidenciais.” [41] “Antes do primeiro encontro substantivo do painel com as partes, as partes da disputa deverão transmitir ao painel submissões por escrito nas quais elas apresentam os fatos do caso e seus argumentos.” [42] “Na primeira reunião substantiva com as partes, o painel pedirá à parte que moveu a ação [43] que apresente o seu caso. Subseqüentemente, e ainda no mesmo encontro, a parte contra a qual a reclamação foi movida [44] deverá ser solicitada a apresentar o seu ponto de vista.” [45] “Todas as terceiras partes que tiverem notificado seu interesse na disputa ao ORD serão convidadas por escrito a apresentar suas visões durante uma sessão do primeiro encontro substantivo do painel separada [46] para tal propósito. Todas tais terceiras partes poderão estar presentes durante toda esta sessão.” [47]
“Respostas formais serão feitas no segundo encontro substantivo do painel. A parte reclamada [48] falará em primeiro lugar seguida da reclamante. [49] As partes submeterão, antes desse encontro, respostas escritas ao painel.” [50] “O painel poderá a qualquer momento colocar questões às partes e pedir a elas explicações ou no curso do encontro com as partes ou por escrito.” [51] “As partes da disputa e qualquer terceira parte convidada a apresentar suas visões de acordo com o Artigo 10 deverá tornar disponível ao painel uma versão por escrito de suas declarações orais.” [52] “No interesse da transparência, as apresentações, respostas e declarações?serão feitas na presença das partes?” [53]

4.3.– A cronologia dos trabalhos do painel de arbitragem é demonstrada pelo seguinte quadro [54]:

QUADRO DA PROPOSTA CRONOLOGIA PARA O
TRABALHO DO PAINEL


a) Recebimento das primeiras submissões escritas das partes:

(1) parte reclamante………………………………………….3 a 6 semanas

(2) parte reclamada…………………………………………..2 a 3 semanas

b) Dia, hora e lugar do primeiro encontro substantivo com as partes;
sessão do terceiro interessado……………………………1 a 2 semanas

c) Recebimento dos rebotes [55] escritos das partes………………. 2 a 3 semanas

d) Dia, hora e lugar do segundo encontro substantivo com as partes………1 a 2 semanas

e) Emissão da parte descritiva do laudo às partes…………………………2 a 4 semanas

f) Recebimento dos comentários das partes à parte descritiva do laudo
às partes………………………………………..2 semanas

g) Emissão do laudo preliminar, incluindo razões e
conclusões
às partes………………………………………….2 a 4 semanas

h) Prazo final para a parte requerer revisão de parte(s) do
laudo…………………………………………………1 semana

i) Período de revisão pelo painel, incluindo possível encontro

adicional com as partes………………………………………………..2 semanas

j) Emissão de laudo final às partes da disputa……………………………….2 semanas

l) Circulação do laudo final aos Membros………………………………………..3 semanas.

4.4.– No grau recursal, o cronograma [56]
apresenta-se da seguinte forma:

QUADRO DO CRONOGRAMA DAS APELAÇÕES

Dia Notificação de Apelação…………………………….0
Submissão do Apelante…………………………………..10
Submissão de outros apelantes…………………………15
Submissão do Apelado…………………………………….25
Audiência Oral (sic)………………………………………..30
Circulação do Laudo de Apelação…………………….60 a 90
Encontro do ORD para adoção………………………. 90 a 120
5.1.– Com a criação da OMC em 1995, iniciou-se, como já vimos, um novo capítulo na sistemática da resolução de disputas do sistema multilateral de comércio, achando-se o Brasil no centro de algumas importantes controvérsias. Representados os interesses brasileiros pela Missão em Genebra ( liderada pelo Emb. Celso Lafer [57] ) e por advogados norte-americanos, os resultados foram, em sua maior parte, adversos, incluindo o mais importante contencioso comercial da história do Brasil [58] , os casos contra o Canadá envolvendo o PROEX [59] e a indústria aeronáutica brasileira. Estes casos, na realidade, representam até o momento, pois encontram-se em grau de apelação, uma contundente e significativa derrota de enormes proporções e com ramificações ainda não bem dimensionadas para a economia brasileira.



5.2.– Conforme o quadro abaixo, de 7 casos já decididos, o Brasil sofreu derrotas em 5 deles. Todas as derrotas foram em casos de grande importância econômica, como no dos frangos contra a UE;do leite, também contra a UE; do regime automotivo, contra a UE, os EUA e o Japão; e os do PROEX, contra o Canadá.
As duas vitórias foram obtidas em casos de pouco significado econômico, uma aproveitando-se de iniciativa da Venezuela na questão da gasolina contra os EUA e outra no caso do coco contra as Filipinas.



QUADRO DO DESEMPENHO DO BRASIL NO SISTEMA
DE RESOLUÇÃO DE DISPUTAS DA OMC.































VITÓRIAS



 


DERROTAS



 


POSICÃO



 


ASSUNTO



CONTRA/

PAÍS



 


POSICÃO



ASSUNTO



CONTRA/

PAÍS



Autor



 


Gasolina



EUA



Autor



Frango



UE



Réu



 


Coco



Filipinas



Autor



Leite



UE























     

 


Réu



 


Regime

Automotivo



 


EU/EUA/

Japão

     


Autor



(subsidios)



aviacão



regional



 


Canadá



(em apelação)

     


Réu



 


PROEX



Canadá



(em apelação)



6.1.– Apesar de todas as esperanças nele depositadas quando do fechamento da Rodada Uruguai em 1994, o sistema de resolução de disputas da OMC representou um grande e amplo desapontamento, o que levou à generalizada percepção de que a Organização está falhando em sua missão. [60] Tais falhas decorrem muito mais de deficiências sistêmicas da estrutura de resolução de disputas, advindas da simplória e inadequada formatação jurídica material e processual, do que má gestão do ORD [61] e da inobservância das decisões do órgão de resolução de disputas da OMC pelas partes envolvidas, que parece estar circunscrita à UE, nos casos da carne e das bananas. De fato, não se pode alegar surpresa pela falência orgânica de um sistema criado para a prestação jurisdicional no direito do comércio internacional sem pagar a menor atenção às estruturas legais e à experiência do direito na processualística, por milhares de anos. Produto de um devaneio tresloucado da diplomacia nefelibata, segundo o qual se pode promover a resolução de conflitos sem um sistema contencioso, não é de surpreender que o sistema tenha se revelado impotente de, com eficiência e rigor científico, cumprir seus objetivos.

6.2.– Mais ainda, a tragédia da falência orgânica do sistema de resolução de disputas da OMC apresenta-se ainda maior quando se recorda que os países em desenvolvimento seriam grandes beneficiados por um aumento da juridicidade do sistema multilateral de comércio. A frustração é ainda mais sentida quando se constata que, a par das múltiplas falhas sistêmicas, materiais e processuais, a administração do procedimento arbitral é deficiente e, principalmente, não transparente, de modo que o resultado, se não é, nos bastidores, claramente dirigido pelos burocratas da divisão jurídica do secretariado, certamente é influenciado [62] pelo marcante etnocentrismo dos nacionais da UE e EUA, que dominam tal repartição.

6.3.– Um dos principais defeitos do DSU é a não admissão do instituto da reconvenção. Isto faz com que se instale um painel para a reclamação de uma parte e um outro, com árbitros distintos, para a reclamação da outra, em uma matéria conexa e, obviamente, com as mesmas partes. Tal situação possibilita, em tese, que os laudos dos dois painéis sejam diversos e até contraditórios, promovendo o desequilíbrio. A possibilidade da ocorrência de tal insólita e injusta situação não é remota, já que, no curto período de quatro anos de existência da OMC, tivemos um exemplo contundente no caso Brasil vs. Canadá, sobre incentivos às respectivas indústrias aeronáuticas, quando dois painéis distintos foram formados e as respectivas decisões foram, em princípio, conflitantes, pois deliberaram pela ilegalidade do programa de financiamento às exportações brasileiras, enquanto foi reconhecida a licitude de programas análogos do Canadá. Tal decisão fez com que o Brasil seja o único país exportador do mundo de alguma monta sem um programa lícito de financiamento às exportações, com a agravante de que é um país em desenvolvimento.

6.4.– Uma situação análoga de decisões díspares ou conflitantes sobre o mesmo caso pode ocorrer em circunstâncias de litisconsórcio ativo quando são formados painéis distintos para os litisconsortes ou grupos deles. Por outro lado, a questão de normas variáveis para os prazos e fonte de instabilidade processual, podendo trazer sérias injustiças. De fato, o painel tem discricionariedade para estabelecer um prazo dentro dos parâmetros facultados pela programação de funcionamento. [63] Este prazo pode ser diferente para as partes e variar de caso a caso, circunstância que, por motivos óbvios foi banida de todos ordenamentos jurídicos civilizados. Da mesma forma, a definição dos chamados “termos de referência” preocupa pela capacidade de potencialmente agravar as falhas do sistema. Como já vimos[64] , ao contrário dos regimes legais tradicionalmente estabelecidos, na OMC é imperativo que se explicite a base legal do pedido. Assim, a probabilidade é grande que um mesmo caso possa ter dois ou mais painéis diferentes, dois ou mais termos de referência distintos e duas ou mais decisões divergentes.

6.5.– Outra falha latente do sistema, desgraçadamente já confirmada na prática, diz respeito à sua omissão no tratamento das questões preliminares, como por exemplo as pertinentes aos conflitos entre tratados. Este foi um problema antevisto pelo maior especialista inglês em direito internacional, o juiz da Suprema Corte, John Toulmin CMG QC, ex-presidente do Conselho de Ordens de Advogados da União Européia, quando indagou em memorável palestra proferida na cidade de São Paulo, em abril de 1997, “Existem circunstâncias onde um painel deveria ser capaz de resolver as disputas resolvendo os casos preliminarmente “. [65] De fato, há questões como a de conflito entre tratados internacionais que justificam a decisão preliminar. Tais conflitos ocorrem, por exemplo, entre os direitos assegurados a países em desenvolvimento signatários da cláusula transitória do tratado do FMI e as obrigações decorrentes dos tratados da Rodada Uruguai.

6.6..- Na mesma ocasião supra referida, John Toulmin CMG QC chamou a atenção para a inconsistência do sistema ao diferenciar “terceiro interessado” de litisconsorte. [66] De fato, juridicamente, o interesse é materializado pelo litisconsórcio, o que torna perfeitamente inútil, irrelevante e, por conseguinte, dispensável, a grotesca figura de “terceiro interessado”. Neste ponto, há de se comentar que, como os interesses em disputa no sistema multilateral são eminentemente privados, não se justifica o não reconhecimento do direito de ação das partes privadas. O direito internacional tem evoluído para aceitar pessoas físicas e jurídicas como sujeitos de obrigações, bem como sua capacidade de agir, e a OMC deveria legitimá-la, preservando sempre o direito de ação concorrente dos estados membros, de modo a preservar seus interesses. [67]

6.7.– Tal como na Corte Internacional de Justiça, no sistema de resolução de disputas da OMC não vigora o princípio do “stare decisis” [68] , valendo as decisões apenas entre as partes. Os precedentes jurisprudenciais, todavia, poderão ou não servir como referência para casos futuros. Todavia, dado o grau de confusão processual reinante nas regras adjetivas e a pouca confiabilidade do sistema, a tendência marcante é a de que cada caso seja analisado por seus próprios méritos, independentemente de decisões análogas no passado. Tal situação é reforçada pela tradição estéril do sistema de resolução de disputas do GATT, originadas nas tergiversações sopitadas da diplomacia de salão, mantida viva pela assessoria da divisão jurídica da OMC, no sentido de que os painéis “notam”, “relembram” e “reconhecem” [69] casos e circunstâncias anteriores, como se seus membros estivessem a evocar eventos pitorescos e patranhas diversas para combater o tédio de uma folgança primaveril à beira lago.

6.8.– Já observei anteriormente que as línguas oficiais da OMC são o inglês, o francês e o espanhol, mas que para todos os efeitos práticos não só as negociações, mas também os trabalhos dos painéis de arbitragem são conduzidos em inglês. Isto prejudica sobremaneira os países que não falam o inglês como língua nativa, já que a desenvoltura de seus representantes é naturalmente menor. Esta relativa desvantagem é agravada pelo uso potencial dos argumentos semânticos, terreno incerto e perigoso devido às escabrosas omissões de léxicos jurídicos apropriados no DSU, e ao uso idiossincrático de patoás e jargões imprecisos, freqüentemente, contraditórios. Certo é que se torna absolutamente indispensável uma revisão do DSU de tal forma que possa ser dotado de institutos jurídicos adequados e apósita terminologia jurídica. Seria importante também que cada país pudesse peticionar em sua própria língua.

6.9.– A questão semântica tornou-se tão importante a ponto de um painel de apelação haver decidido recentemente que uma “decisão” não é uma “decisão” (sic). [70] Já vimos também que as regras de apelação criaram uma “audiência oral”[71] , talvez porque uma audiência escrita fosse muito impessoal. Para a primeira instância valem os “encontros substantivos”. Felizmente, não há, por ora, a previsão para os “encontros adjetivos”, enquanto os encontros furtivos encontram-se, de há muito, consagrados na prática consuetudinária do sistema multilateral. O termo “revisão” [72] é utilizado igualmente tanto para a “reconsideração” da primeira instância como para a apreciação do grau recursal. O substantivo “submissão” [73] é utilizado indistintamente no lugar de petição inicial; contestação, réplica, tréplica, petição interlocutória, razões de apelação e contra-razões de apelação, sem falar, é claro, nas “submissões” de terceiros. Já tivemos o prazer de discorrer sobre o léxico “rebuttal”, de nobres raízes futebolísticas, e portanto valendo para os rebotes de parte a parte. Também já comentamos os termos “as partes da disputa” e “as partes interessadas”, mas ainda gostaríamos de mencionar que, para evitar as horrorosas e abrasivas expressões “autor” e “réu”, as quais certamente não podem ter lugar em um conflito comercial, são utilizados eufemismos trôpegos como “a parte que fez a reclamação” [74] e “a parte contra quem foi feita a reclamação”[75] .7.1.– Durante a conferência ministerial da OMC a tomar lugar em Seattle, Washington, EUA, de 29 de novembro a 3 de dezembro de 1999, espera-se seja lançada nova rodada de negociações do sistema multilateral de comércio, a chamada Rodada do Milênio. [76] Desta vez, a iniciativa partiu da UE, mas foi prontamente apoiada pelos EUA. Querem as grandes potências econômicas ampliar suas já expressivas vantagens comerciais. Para os países em desenvolvimento, todavia, é certamente mais importante tratar de corrigir os erros e inconsistências do sistema multilateral resultante da Rodada Uruguai do que se lançar nas águas gélidas e incertas de uma nova rodada de negociações, de onde, como sempre, sairão inexoravelmente perdedores. Dentro desta perspectiva, a completa reformulação do sistema de resolução de disputas da OMC é um imperativo para que possa prevalecer o estado de direito nas relações econômicas internacionais e para a própria credibilidade do sistema. Para tanto, é forçoso reconhecer-se que um sistema de resolução de disputas é necessariamente contencioso e que deve ser estruturado dentro do rigor das ciências jurídicas, tanto nos aspectos de direito material como de processo.