Já no final da Rodada Uruguai, em 1993, uma ominosa análise do Banco Mundial já previa que os países desenvolvidos ficariam com 64% dos benefícios da ronda multilateral, contra 36% para os países em desenvolvimento. A realidade provou-se muito pior.
De acordo com um estudo do FMI, nos seis anos seguintes à assinatura dos chamados Tratados de Marrakech, os países desenvolvidos ficaram com 73% dos benefícios, contra apenas 27% para os países em desenvolvimento. Assim, na década de 90, os países desenvolvidos aumentaram o valor de suas exportações per capita em U$ 1.938, enquanto os países em desenvolvimento incrementaram o valor em apenas U$ 98 e os países menos desenvolvidos em somente U$ 51.
Igualmente, mais de dez anos após a assinatura dos Tratados de Marrakech, os países desenvolvidos, com somente 14% da população global, mantém uma participação de 75% na renda mundial, o que é a mesma participação de 1990.
Um observador tanto atento quanto insuspeito, Henry Kissinger, afirmou num de seus últimos livros que “os líderes mundiais, especialmente nas democracias industrializadas, não podem ignorar o fato que, em muitos respeitos, a lacuna entre os beneficiários da globalização e o resto do mundo está crescendo, tanto internamente, quanto dentre países”.
Um exemplo dramático deste fenômeno pode ser verificado no setor de serviços. Conforme dados da UNCTAD, os EUA passaram de uma participação de apenas 2.2% no comércio internacional em serviços em 1985, um ano antes do lançamento da Rodada Uruguai, para cerca de 21% em 1999. Hoje, este número supera os 25%. Mais ainda, hoje, enquanto as exportações de serviços do Brasil crescem a aproximadamente 1% ao ano, as dos EUA crescem a 10% e as do Reino Unido a 5.7%.
Desta maneira, apenas os países membros do cartel denominado QUAD (EUA, União Européia, Canadá e Japão) detém cerca de 80% das exportações mundiais de serviços.
Não se diga que os países em desenvolvimento não têm o que exportar na área de serviços. Ao contrário. O potencial é enorme. Países como o Brasil, a África do Sul e a Índia, têm uma participação do setor de serviços no PIB superior a 50%. Ocorre que a formatação da definição dos serviços exportáveis, e dos módulos de prestação, é seletiva em favor dos países desenvolvidos.
Mais ainda, abundam barreiras horizontais contra os prestadores de serviços dos países em desenvolvimento, como na questão da adoção, pelos países do QUAD da legislação de imigração americana, altamente restritiva, para fins e efeitos do Acordo Geral de Comércio em Serviços (GATS), o tratado de regência da matéria.
Por outro lado, no setor agrícola, persiste a praga dos subsídios agrícolas, hoje estimados numa escala mundial em nada menos do que U$ 1 bilhão por dia. Estes subsídios hoje representam cerca de 40% da produção agrícola nos EUA e na União Européia e 60% do Japão. Por conseguinte, nenhum desses parceiros comerciais pode alegar economia de mercado no setor.
No ramo de algodão, nos EUA, o valor dos subsídios já ultrapassou o valor da própria produção. Estes subsídios deprimem os preços internacionais das mercadorias agrícolas e alijam os produtores corretos e competitivos dos mercados. Mais ainda, os subsídios oneram o contribuinte do país que os praticam e, quando aliados a barreiras tarifárias e não tarifárias, o que freqüentemente ocorre, também penalizam os seus consumidores.
O efeito da depressão dos preços internacionais das mercadorias agrícolas como corolário direto da prática dos subsídios, é em particular, muito grave. De fato, segundo a própria OMC, a África e a América Latina dependem, respectivamente, em 19% e 25% do setor agrícola para suas exportações. No Brasil, o setor do agro-negócio representa 25% do PIB, 37% do total de empregos e 40% das exportações.
A questão dos subsídios agrícolas é uma das muitas que separam os países em desenvolvimento, organizados no chamado Grupo dos 20, novamente liderados pelo Brasil, Índia e, agora também pela África do Sul democrática, dos países desenvolvidos, no âmbito da Rodada Doha, que está penosamente em andamento desde 2001.
O impasse nas tratativas do tema levou à suspensão das negociações substantivas da Rodada. O impasse foi recentemente superado com a obtenção de um consenso para a eliminação de todos os subsídios agrícolas e melhorias para acesso a mercado dos produtos do campo.
Contudo, a questão não é tão simples como se apresenta, já que, no tenebroso mundo da OMC, a expressão “todos os subsídios agrícolas” tem que ser lida com cautela, já que os países desenvolvidos negociarão com o objetivo de manter a vasta maioria dos subsídios existentes sob vários outros eufemismos e diversos programas paralelos.
Outro sério problema no regime multilateral do comércio é a questão das barreiras. Em princípio, todas as barreiras comerciais deveriam estar incorporadas nas tarifas, como corolário direto do disposto no GATT. Todavia, a maior parte delas está legitimada pelos próprios Tratados de Marrakech, pelo tratamento assimétrico, pelas definições e pelas exclusões seletivas de normas destinadas a manter a eqüidade do sistema. Assim, não somente subsídios são permitidos, mas também, na área de investimentos, a atividade por parte dos agentes financeiros internacionais de promoção da fuga de capitais e auxílio à fraude fiscal não é vedada.
Na área de dumping, o crédito barato para os agentes privados dos países desenvolvidos não pode ser compensado pelos países em desenvolvimento.
Da mesma forma, o Acordo Trips trata das patentes, marcas e direitos autorais como valores absolutos, sem as adequadas exceções em matéria de saúde pública, desenvolvimento econômico e social e direitos humanos. O insuspeito Jagdish Bhagwati comentou a respeito: “Os grupos de pressão ligados aos interesses empresariais do setor farmacêutico e de computação distorceram e deformaram uma importante instituição multilateral, afastando-a de sua missão comercial e razão de ser e transformando-a em agência de cobrança de royalties”.
Ao lado do regime tanto distorcido como iníquo do tratamento da propriedade intelectual no âmbito multilateral da OMC, os países desenvolvidos mantiveram uma enorme estrutura de subsídios públicos cuidadosamente excluídos do elenco daqueles considerados ilegais no âmbito do Acordo Subsídios do regime multilateral. Com tal manobra, asseguram-se tanto do monopólio de desenvolvimento de tecnologias, bem como de seu licenciamento. De outra forma, impedem que políticas públicas sejam exercidas pelos países em desenvolvimento em atenção às demandas decorrentes dos direitos humanos.
Por sua vez, o sistema de resuloção de disputas da OMC é ineficaz e sua reforma ensejou sugestões em todos os artigos e anexos de sua regulamentação, sem que consenso tenha sido obtido.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).