Dentre as maiores dez economias mundiais, a Rússia é a única ainda a não fazer parte da Organização Mundial do Comércio (OMC), a entidade multilateral tanto regula as atividades do comércio internacional, por meio de uma rede de apósitos tratados, como serve de foro para a resolução de disputas entre os Estados membros. A rigor, pelo tamanho, características e desempenho de sua economia, a Rússia não poderia estar alienada do sistema multilateral de comércio. Como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, com direito a veto, a exclusão da Rússia da OMC é mais uma das graves contradições da ordem jurídica internacional.
De fato, hoje o comércio internacional russo brinda ao país um saldo comercial acumulado nos últimos 12 meses da ordem de US$ 132 bilhões (dólares norte-americanos), quase 20% superior àquele acumulado pela China em igual período. As reservas do país em moeda estrangeira estão na casa dos US$ 240 bilhões, aproximadamente quatro vezes superiores às do Brasil, e seu saldo acumulado em conta corrente no último ano é de US$ 94 bilhões, o que preconiza seu aumento continuado.
Embora desmoralizada pela manipulação sofrida por conta da ação dos países desenvolvidos, que buscam transformá-la num agente de sua prosperidade seletiva, a OMC é um organismo internacional muito importante, porque juridicamente evita a discriminação do país não membro, devido ao seu princípio fundamental assentado na chamada cláusula da nação mais favorecida.
Pois bem, a Rússia candidatou-se originalmente à acessão à OMC em 1993, portanto já há 13 anos. Na sistemática do sistema multilateral, um Estado candidato deve fazer acordos bilaterais com todos os já quase 190 membros da OMC, de maneira a viabilizar sua acessão. Desgraçadamente, contudo, tais acordos bilaterais nada têm a ver com os interesses do sistema multilateral de comércio, mas tem, ao contrário, sido utilizados notadamente pelos Estados hegemônicos para a promoção de seus próprios interesses, às vezes comerciais, às vezes políticos.
Tal qual já ocorrera com a China, o maior obstáculo à acessão da Rússia é os EUA, o país que mais tem contribuído para a desmoralização do sistema multilateral do comércio em geral e da OMC, em particular. Tradicionalmente, os EUA vêem a OMC como um instrumento para a promoção de sua prosperidade, em detrimento daquela dos demais países, bem como um meio de impor os seus valores à comunidade internacional.
No caso da China, o acordo bilateral com os EUA, com milhares de páginas, compreendeu, dentro do universo geral, a vasta maioria das concessões feitas por aquele país para aceder à OMC, um preço altíssimo jamais pago por um Estado para aceder ao sistema multilateral de comércio. À guisa de comparação, o acordo da China com o Brasil, com o mesmo propósito, não teve mais do que quatro páginas.
A situação da Rússia apresenta-se quase tão complexa quanto aquela da China, enquanto candidata, já que os EUA ainda têm em vigor medidas legais discriminatórias ao comércio com aquele país originárias de 1974, período da guerra fria, e denominadas de Emenda Jackson-Vanik, impostas na época da então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Com o Tratado de Alma Ata, de 1991, a URSS deixou de existir, mas a emenda discriminatória americana não foi revogada, o que é certamente imoral, mas permitido pela ordem jurídica multilateral do comércio, já que a Rússia não fazia parte do GATT, nem integra ainda a OMC.
O quadro é agravado pela promoção, através dos negociadores americanos, de interesses privados de agentes econômicos daquele país, notadamente na área do petróleo, mercadoria que representa mais da metade das exportações da Rússia. Com as recentes crises internacionais e com os decorrentes substanciais aumentos de preço da mercadoria e a disputa por fontes de fornecimento com a Europa e com a China, a questão tornou-se ainda mais dramática.
Se a exclusão da Rússia do sistema multilateral do comércio já é uma aberração em si, as dificuldades artificiais impostas pelos EUA para a acessão daquele país à OMC são tanto impróprias quanto inaceitáveis. No momento em que naufraga a Rodada Doha da OMC, aquela que deveria promover o desenvolvimento e que, ao invés procura ainda alavancar a prosperidade de uns poucos em detrimento dos muitos, a questão da acessão Rússia serve como mais um alerta da falência do sistema multilateral de comércio.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).