1.1.- Ao término da Rodada Uruguai do Acordo Geral de Tarifas e Comércio[1] em 1993, um trabalho bastante ameaçador[2] realizado pelo Banco Mundial indicava que 64% dos benefícios da Rodada favoreceriam os países desenvolvidos contra apenas 36% de proveito por parte dos países em desenvolvimento. De fato, durante os últimos dois anos de negociações, os países em desenvolvimento praticamente cessaram de pleitear concessões de seus parceiros de comércio desenvolvidos e prosseguiram freneticamente rumo à liberalização unilateral, priorizando a ideologia da globalização. Países desenvolvidos, com a devida alegria, embolsaram os lucros. Eles haviam assegurado maiores reduções tarifárias por parte dos países em desenvolvimento, bem como a liberalização do setor de serviços, que representava seu maior objetivo estratégico, juntamente com a inclusão de novos tratados reguladores de temas como investimentos e propriedade intelectual. Enquanto estas grandes concessões eram realizadas, os países desenvolvidos esqueceram-se de conceder concessões nas áreas mais tradicionais do comércio: agricultura e têxteis.[3]
1.2.- A conclusão da Rodada Uruguai trouxe possibilitou, através da execução dos chamados tratados da Rodada Uruguai, “inter alia” a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1995. O período subseqüente foi caracterizado pela crescente prosperidade dos países desenvolvidos e por uma extensa crise e diminuição da participação de países em desenvolvimento no comércio internacional. O volume de subsídios praticados pelos países desenvolvidos aumentou substancialmente, assegurando a disseminação da miséria para muitos e da prosperidade para muito poucos. A criação do sistema de resolução de disputas da OMC, instituído para promover maior juridicidade e o estado de direito nas relações econômicas internacionais, e aceito pelas nações em desenvolvimento como a esperança de neutralizar as medidas unilaterais dirigidas contra eles, principalmente por parte dos Estados Unidos da América (EUA), provou tratar-se de apenas mais um instrumento para a plena realização dos desejos hegemônicos dos países desenvolvidos.
1.3.- Hoje, eu me proponho a analisar como o sistema de resolução de disputas da OMC, o qual em seis anos de operações distorceu a justiça e transformou-se em um meio eficaz de subjugação dos países em desenvolvimento, contra os quais o sistema provou-se ser dirigido. A percepção de tal fato pela opinião pública internacional, contribuiu enormemente para a dramática erosão de credibilidade da OMC. Ademais, eu gostaria de rever os defeitos operacionais do sistema de resolução de disputas da OMC e como eles foram utilizados para assegurar a prevalência dos interesses dos países desenvolvidos contra os países em desenvolvimento. Após este exame, eu gostaria de prover-lhes um panorama do sistema em operação, e demonstrar como os países em desenvolvimento perderam aproximadamente 90% dos casos que disputou contra os países desenvolvidos. Ainda, eu gostaria de mostrar-lhes como o sistema foi utilizado com sucesso pelos países desenvolvidos para derrogar direitos derivados de outros tratados internacionais, como forma de usurpar os direitos de membros e criar novos precedentes e obrigações não permitidos pela lei internacional.
1.4.- Assim sendo, a apresentação foi dividida da seguinte forma:
i. Esta Introdução;
ii. Defeitos Operacionais do Sistema de Resolução de Disputas da OMC;
iii. Panorama do Sistema em Operação sob a Perspectiva de um País em Desenvolvimento;
iv. O Sistema como Instrumento de Usurpação dos Direitos de Países em Desenvolvimento; e
v. Conclusões. 2.1.- O passo inicial do sistema de resolução de disputas (SRD) da OMC é dado pela requisição formal de consultas de um membro a outro[4]. Este pedido deve ser endereçado ao Órgão de Resolução de Disputas (ORD) da OMC. Se as consultas não obtiverem sucesso na resolução da disputa em 60 dias, a parte requerente pode requisitar o estabelecimento de um painel. O direito de ação é reservado aos estados soberanos membros da OMC. Sendo assim, pessoas físicas ou jurídicas de direito privado não estão sujeitas à jurisdição do ORD. Uma vez requerido, o ORD deve automaticamente estabelecer um painel arbitral[5], a menos que haja um consenso contra tal situação, decorrente de violação das regras aplicáveis ao GATT.
2.2.- Qualquer estado membro que caracterizar terceiro interessado pode ser ouvido no painel, sem que, contudo, torne-se parte da disputa[6], tornando portanto impossível a formação de litisconsórcio ativo, o qual somente é possível quando o pedido for conjunto. O litisconsórcio passivo é absolutamente proibido. Esta é a maior falha do sistema pois permite que painéis diferentes analisem assuntos relacionados propiciando a existência de decisões diferentes sobre temas conexos. Esta imperfeição pode ser inclusive agravada já que no ORD, os mandatos[7] referentes a uma disputa não são concedidos pela parte, mas sim pela secretaria da OMC, através de sua divisão jurídica. Sendo assim, pode ocorrer que casos idênticos que envolvam estados membros diferentes contra um só país sejam tratados como questões diferentes que levados a painéis diferentes terminem com sentenças distintas.[8]
2.3.- Da mesma forma, o sistema não prevê os institutos da reconvenção ou da denunciação a lide, que podem acarretar a existência de painéis diferentes, com as mesmas partes e mandatos diferentes para o mesmo tema propiciando a existência de decisões distintas. As probabilidades de que tal situação concretize-se não são remotas, como pode comprovar o ocorrido na disputa envolvendo Brasil e Canadá sobre os subsídios concedidos às respectivas indústrias aeronáuticas: os resultados da disputa acarretaram resultados desastrosos para o Brasil e para o sistema. Para complicar ainda mais, a semântica caracteriza um enorme problema do sistema, já que são utilizados termos muito imprecisos em detrimento de termos jurídicos precisos. Por exemplo: prática significa jurisprudência, submissão significa petição; reclamação e resposta; recomendação significa decisão, relatório significa sentença, encontro substantivo significa tanto audiência quanto sessão, são algumas das aberrações do sistema.
2.4.- Já que todas as deliberações do painel são confidenciais[9], assim como as petições e demais peças redigidas pelas partes, o sistema é dramaticamente falho no que concerne transparência e apresenta obstáculos sérios ao controle democrático, no âmbito dos países membros, das ações tomadas por seus representantes junto à OMC. Sendo assim, erros e omissões de tais representantes não são facilmente identificáveis, o que prejudica o controle democrático e impede a avaliação da responsabilidade jurídica sob a legislação pátria. Para complicar ainda mais, os procedimentos da OMC não têm um arquivo físico, como ocorre em qualquer procedimento judiciário ou arbitral em qualquer parte do mundo.
2.5.- Os painéis estabelecem prazos para a distribuição das petições e demais peças, de acordo com o caso[10]. Isso permite tratamento diferente para as partes envolvidas em uma disputa, bem como diante de situações similares aplicáveis a outras partes[11]. As sentenças são determinadas sem a presença das partes. Opiniões individuais dos árbitros são anônimas e quando discordantes são excluídas da sentença[12]. Esta situação acaba por mascarara verdade e as corretas deliberações do painel e apresentam uma desvantagem injusta para a parte vencida, com relação aos méritos e modificações de uma eventual apelação.
2.6.- Outra imperfeição do sistema, que inclusive é muito explorada pelos países desenvolvidos, ocasionando sérias conseqüências aos países em desenvolvimento é a não aceitação de deliberações em entendimentos preliminares. O mais comum ato preliminar que contraria a jurisdição do ORD envolve conflitos de tratados, como os próprios países em desenvolvimento alegaram, com êxito eu devo adicionar, refere-se ao fato que para derrogar direitos de nações em desenvolvimento derivados de outros órgãos de direito internacional, como a Carta das Nações Unidas, por exemplo, o Acordo do Fundo Monetário Internacional (FMI); e vários tratados que envolvem direitos humanos e saúde. O primeiro caso levado à OMC que renegou direitos derivados de outro tratado foi pleiteado pelos EUA contra a Índia na questão das restrições quantitativas de importação. Uma vez firmada a jurisprudência, os direitos garantidos pelo FMI foram negados ao Brasil no painel contra o Canadá relativo às taxas de equalização para a indústria aeronáutica. O próximo caso que envolverá conflitos de tratados tratará da proteção de patentes norte americanas, que poderá inclusive demolir todo o programa de combate à AIDS brasileiro, criado e desenvolvido com tanto êxito.
2.7.- Os painéis são formados por três ou cinco membros[13]. Os árbitros devem ser indivíduos qualificados, membros de instituições governamentais ou não[14], que devem ser selecionados com vistas a assegurar a independências dos membros[15]. Cidadãos naturais dos países membros envolvidos em disputas não podem ser designados árbitros[16]. A secretaria da OMC mantém um rol de árbitros[17]. Quando uma disputa envolver um país desenvolvido e outro país em desenvolvimento em condições antagônicas, se o país em desenvolvimento assim requerer, deve ser incluído ao menos um panelista natural de um país em desenvolvimento[18]. Na prática, no entanto, os árbitros são escolhidos pela divisão jurídica da secretaria da OMC de acordo com critérios não transparentes, e usualmente em contradição às exigências diversas do tratado.
2.8.- Existe um requerimento de automaticidade para a adoção da sentença[19], salvo se uma ou ambas as partes apelarem da decisão. O ORD tem um órgão de apelação fixo (OA), com 7 árbitros e cada painel de apelação em 3 panelistas, que são denominados como uma divisão. Não há previsão legal sobre sessões “en banc” do OA. O período máximo para uma decisão é 60 dias, o qual na prática implica em grandes constrangimentos ao sistema. De acordo com o tratado[20], o OA deve considerar cada um dos itens levantados na apelação. A sentença de apelação também está sujeita à adoção automática[21].
2.9.- Os árbitros da OMC de todas as instâncias e graus de apelação em base “ad hoc”, não são permanentes. Freqüentemente eles não residem em Genebra, Suíça, onde a sede da OMC é localizada, eles não tem independência ou infra estrutura próprias para sustentar suas atividades. Sendo assim, eles não contam com apoio técnico e assistência nos aspectos legais, históricos e procedimentais relacionados às questões tratadas[22], pela secretaria da OMC. Esta situação tem causado sérias distorções do ORD e graves acusações sobre o papel desempenhado atualmente pela secretaria, tema o qual será abordado ao longo desta apresentação.3.1.- Nos seis anos subseqüentes à criação da OMC, em 1 de Janeiro de 1995, 220 reclamações [23] foram notificadas pelos estados membros à secretaria, sendo que a maioria, 116 delas, foram resolvidas de uma forma ou de outra na fase de consultas; 51 foram objeto de decisões definitivas pelo ORD; 39 foram resolvidas pelas partes ou estão inativas; e 14 casos estão presumivelmente em curso na primeira instância ou no grau de apelação. De acordo com o relatório anual da OMC do ano 2000, “Os países desenvolvidos foram responsáveis por três quartos das reclamações sob o Compromisso de Resolução de Disputas (CRD) e réus no mesmo número de ações. Países em Desenvolvimento foram autores do restante um quarto das ações, contra os países desenvolvidos em mais de 50% das reclamações e o resto contra outros países em desenvolvimento. Os EUA e a União Européia (UE) são os mais freqüentes reclamantes na OMC…”[24].
3.2.- O relatório anual da OMC infelizmente e injustificadamente é falho na análise dos resultados dos casos sujeitos às sentenças do ORD e no relato da situação dos países em desenvolvimento no sistema. Dos 51 relatórios emitidos ou adotados pelo ORD apenas 3 envolveram países em desenvolvimento contra outros países em desenvolvimento; 17 foram requeridos por países desenvolvidos contra países em desenvolvimento; 8 foram requeridos por países em desenvolvimento contra países desenvolvidos; e 23 foram requeridos por países desenvolvidos contra países em desenvolvimento. Sendo assim, a maioria dos conflitos deu-se entre países desenvolvidos contra países em desenvolvimento.
3.3.- Dos 8 casos pleiteados por países em desenvolvimento contra países desenvolvidos, os países em desenvolvimento ganharam 3 e perderam 5. Quando, contudo, países em desenvolvimento foram réus em disputas cujos autores eram países desenvolvidos, países em desenvolvimento perderam 16 casos e ganharam somente um caso. Assim, países em desenvolvimento perderam 21 dos 25 casos contra países desenvolvidos, o que representa quase 90% de causas perdidas! Ambos EUA e UE, e coincidentemente, também Japão e Canadá, chamados países QUAD, foram os maiores beneficiários do sistema. Mas os maiores beneficiários foram os EUA. DE acordo com o testemunho da Embaixadora Charlene Barshefsky, chefe do United States Trade Representative (USTR) do Congresso Norte-Americano, os EUA ganharam quase todas as disputas nas quais se envolveram. Ainda, em quase todos os casos, a vitória ocorreu na fase de consultas da disputa, particularmente contra países em desenvolvimento. A Sra. Barshefsky, permaneceu no Congresso por ter defendido os interesses negociais norte americanos no sistema de resolução de disputas do GATT.[25]
3.4.- Os países em desenvolvimento que mais se envolveram nas disputas contra países desenvolvidos foram Brasil, Índia, e Coréia. A Índia sempre e o Brasil ocasionalmente foram os líderes do mundo em desenvolvimento nas negociações comerciais multilaterais e sofreu o maior número de derrotas e os maiores erros estratégicos do ORD. A Índia perdeu 5 painéis contra países desenvolvidos, vencendo somente uma vez contra outro país em desenvolvimento, a Turquia, na questão relativa a produtos têxteis. Suas derrotas incluíram o caso estratégico das restrições quantitativas contra os EUA, camarões contra os EUA, patentes contra a UE ; farmacêuticos contra os EUA e têxteis contra os EUA.
3.5.- Por outro lado, o Brasil foi prejudicado em dois painéis contra o Canadá, sobre incentivos à indústria aeronáutica, um problema de grande relevância estratégica, uma vez como autor e outra como réu. O Brasil também perdeu dois casos contra a UE em questões relativas a farináceos e laticínios e venceu um deles, juntamente com a Venezuela, contra os EUA na questão relativa à padrões ambientais para a gasolina. O Brasil também sucumbiu na fase consultiva, a saber na questão da política automotiva dos EUA, UE e Japão; e em licenças de importação com a UE e restrições de importação com os EUA.
3.6.- A Coréia esteve envolvida em 7 painéis. Requereu um contra os EUA relacionado a semicondutores, no qual os americanos alegaram terem vencido. Nos outros seis, a Coréia perdeu na questão das bebidas alcoólicas contra os EUA e contra os UE. A Coréia também perdeu a questão relacionada a laticínios contra a UE e painéis relativos à carne conta os EUA e a Austrália. A Coréia venceu um Painel contra os EUA relativo a compras governamentais, embora os EUA não tenham implementado a sentença. Indonésia envolveu-se em três painéis no na questão estratégica de sua política automotiva e perdeu todos para os EUA; UE e Japão. A Argentina perdeu o dois painéis em que se envolveu ambos referentes a calçados, contra a UE e os EUA.
3.7.- Em relação a painéis em curso, sem sentença definitiva, a disparidade de tratamento às partes, presente nos conflitos entre nações desenvolvidas e em desenvolvimento é ainda mais pronunciada. De 14 casos, 10 envolvem conflitos entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, das quais 7 têm países desenvolvidos como autores. Das restantes, 3 referem-se a conflitos entre países desenvolvidos e uma entre países em desenvolvimento. O país em desenvolvimento mais envolvido em painéis em curso são Argentina, Brasil e Índia com dois painéis cada. Os painéis que envolvem Brasil e Argentina têm grande importância estratégica. As Filipinas compõe o polo passivo em uma disputa estratégica, requerida pelos EUA sobre veículos a motor.
3.8.- Se os painéis decididos e não decididos forem computados, haverá um total de 65 casos, dos quais 51 estão conclusos e 14 em curso. Do total, 35 casos (25 conclusos e 1 em curso), ou a maioria, referem-se a conflitos entre nações desenvolvidas contra países em desenvolvimento. Por outro lado, 26 casos (23 conclusos e 3 em curso) têm como partes países desenvolvidos. Ainda, há 4 casos (3 conclusos e um em curso) entre países em desenvolvimento. Assim, com menos que 25% do comércio mundial os países em desenvolvimento estão envolvidos em aproximadamente 54% dos litígios comerciais, normalmente como réus! Se as consultas forem adicionadas a tal número, a percentagem poderia ser maior! O Brasil, um país em desenvolvimento que responde por menos que 5% do volume do comércio internacional da UE e dos EUA atualmente está envolvido em mais consultas que seus parceiros comerciais! Assim, o ORD da OMC, depois de 6 anos está majoritariamente direcionado aos países em desenvolvimento.4.1.- Nós vimos as graves imperfeições da estrutura legal do ORD, e como o sistema vem sendo utilizado pelos países desenvolvidos contra as nações em desenvolvimento com efeitos devastadores permitindo um recorde de vitórias de aproximadamente 90%. Se a estrutura é falha, também é parcial favorecendo os países desenvolvidos na composição da divisão legal da secretaria, a localidade da sede da OMC e também a língua oficial do ORD, é o Inglês, língua nativa da maioria dos parceiros comerciais desenvolvidos.
4.2.- A falta de transparência na composição da divisão legal da secretaria, cercada de poderes garantidos por sua burocracia, faz do ORD o inverso da juridicidade. Desta forma a secretaria usurpou os direitos dos estados membros, impondo as condições da disputa; na prática, a secretaria seleciona os árbitros de todas as disputas; a secretaria apoia os trabalhos dos painéis de um modo que nenhuma outra estrutura administrativa apoiou a administração da justiça, sempre elaborando as sentenças e na prática, conduzindo “de facto” o processo das disputas.
4.3.- Com todas as sistêmicas e idiossincráticas vantagens, os países desenvolvidos não perderam tempo na utilização do ORD da OMC para prejudicar e na prática, derrogar direitos garantidos às nações em desenvolvimento através de alguns acordos internacionais de longa duração, que foram revogados com o final da guerra fria e com a prevalência das ideologias do liberalismo e da globalização. Tais “vergonhosos” tratados compreendem o Acordo do FMI; acordos no âmbito da Organização Mundial da Propriedade Intelectual; Organização Mundial da Saúde (OMS); Organização Internacional do Trabalho (ITO); Conferência Norte Americana em Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD); entre outros.
4.4.- O ORD da OMC atendeu de pronto e com eficácia aos desejos de seus idealizadores, os países desenvolvidos, em várias ocasiões nos últimos 6 anos. Em pelo menos duas instâncias diferentes, o OA do ORD decidiu “ultra vires”, criando novas obrigações para os países membros, que não aviam sido contempladas nos tratados da Rodada Uruguai. A primeira de tais instâncias ocorreu no caso Canadá contra a UE , na questão do amianto, quando o OA permitiu o “amicus curiae” estabelecendo procedimentos diferentes para o caso[26]. No questão dos têxteis, levada pelos EUA contra a Índia, o OA resolveu que contrariamente à específica disposição constante do acordo[27], que dispõe que um painel somente deve deliberar sobre as questões que necessitam ser resolvidas para que o objeto da disputa seja solucionado.
4.5.- Aberrações semelhantes ocorreram no caso levado pelos EUA contra a Austrália no assunto das cadeiras de couro, quando o ORD decidiu que a companhia beneficiária dos subsídios declarados ilegais deveria devolver os mesmos ao seu governo nacional[28]. Se as companhias privadas e/ou indivíduos não são admitidos como partes do ORD do OMC, como eles podem estar sujeitos à sua jurisdição? Como o governo Australiano poderia homologar tal decisão contra uma companhia doméstica em um tribunal nacional? Em outra escandalosa decisão em favor dos EUA, em caso requerido pela UE, o OA decidiu favoravelmente aos EUA baseado-se em uma promessa de não aplicar as medidas unilaterais permitidas pela notoriamente ilegal seção numero 301 do Ato de Comércio (Trade and Commerce Act).[29]
No caso requerido pela Coréia contra os EUA, referente à questão de compras governamentais, vencido pelos EUA, o OA decidiu que era competente para decidir sobre erros na negociação de tratados internacionais[30]. Além disso, no caso dos bananas contra a UE, os EUA, um país que não produz, e nem ao menos exporta bananas, teve o seu direito de ação reconhecido[31] tendo prosseguido e vencido a disputa. No caso iniciado pelos EUA contra a UE no assunto dos hormônios, o OA decidiu que “tinha, de fato, um caso “prima facie” valido na questão do risco central”[32] (sic)!
4.6.- Dois casos, sobre tudo, marcaram não só uma relevante derrota estratégica para os países em desenvolvimento, mas também a derrogação ilegal dos direitos derivados do concordo IMF, gerando conseqüências econômicas e sociais com de potencial devastador. O acordo IMF permite as restrições financiais e comerciais resultantes da crise na balança de pagamentos. Tais restrições foram expressivamente reconhecidas pelo Entendimento sobre as Provisões da Balança do Pagamento do GATT 1994. No dois casos o ORD derrogou esses direitos; a primeira das questões inclui o caso iniciado pelos EUA contra a Índia no assunto de restrições quantitativas; a segunda refere-se à disputa aeronáutica iniciado pelo Canada contra o Brasil. Não está claro porque a Índia e o Brasil aceitaram a jurisdição do OMC nesses assuntos, que obviamente implica em conflito de acordos.
4.7.- O caso pleiteado pelos EUA contra a Índia refere-se às restrições quantitativas aplicadas pelo acusado na importação de aproximadamente 2.700 produtos agrícolas, industriais e têxteis que, segundo o autor, eram ilegais à luz das disposições dos Acordos sobre o Licenciamento da Agricultura e Importações. Em sua defesa, a Índia explicou que administrava controle de seu câmbio devido à crítica situação de sua balança de pagamentos, fato que acarretara no âmbito comercial a imposição de restrições quantitativas às importações. O painel, que foi presidido pelo embaixador brasileiro ao OMC, Celso Lafer, decidiu, inesperadamente, “contra-legem” a favor dos EUA. A decisão foi confirmada pelo OA.
4.8.- O segundo caso refere-se aos supostos subsídios ilegais conferidos à indústria aeronáutica brasileira, com base no programa de financiamento dos exportações mantido pelo Brasil (PROEX). O autor, Canadá, contestou a equalização das taxas de juros do PROEX, através da qual o Governo Brasileiro arcava com os custos do chamado “risco Brasil”, pagando a diferença entre os custos de empréstimo cobrados de empresas brasileiras, e aqueles cobrados de empresas de países desenvolvidos. Esta situação reconhece o Acordo do FMI, já que o Brasil era na ocasião signatário da cláusula transitória, e administrava o controle de seu câmbio. A decisão do painel foi favorável ao Canadá, e devido ao precedente do caso contra a Índia, o Brasil foi condenado a retaliar ao Canadá US$ 1,7 bilhões. Ainda pior e mais devastador: o Brasil não mais conta com um programa de financiamento às exportações legalmente constituído antes do regime multilateral, caracterizando-se como o único país, dentre os 8 mais industrializados, em tal situação de desamparo.
4.9.- A mais nova tentativa de derrogação de acordos internacionais, além do acordo constitutivo da OMC é o recentemente formado painel levado pelos EUA contra o Brasil, quanto à questão da proteção de patentes da indústria farmacêutica. O Brasil tem um programa altamente eficiente de produção de drogas antiretrovirais, manufaturadas em laboratórios estatais para distribuição gratuita à população infectada. Este programa reduziu em 50% o número de mortes relacionadas à AIDS e gerou economia de aproximadamente US$ 500 milhões para o país em hospitalização e outros custos médicos. O programa foi elogiado internacionalmente e está baseado na Lei 1996 sobre Direitos de Propriedade Intelectual que incorporou os termos do Acordo de Aspectos Relacionados aos Direitos de Propriedade Intelectual, incluindo o artigo 31 do mesmo. Os EUA querem prevenir que tal programa torne-se modelo para outros países em desenvolvimento, assegurando assim o altíssimo lucro de seus laboratórios. Se os EUA vencerem , a secretaria pode determinar que a prática seja extendida a outros membros da OMC.
5.1.- Vimos como a atuação da OMC é voltada à prevalência dos interesses hegemônicos dos países desenvolvidos sobre as nações em desenvolvimento. Analisamos agira, sob o especioso manto da juridicidade retórica, os autos-de-fé do ORD da OMC levaram as nações em desenvolvimento, inexoravelmente à derrota, derrogação dos direitos, exclusão comercial, desastre e miséria. Vimos como o insólito Relatório Anual da OMC fecha os olhos à esta triste realidade. Contudo, o Diretor Gral da OMC não esqueceu-se da triste e desanimadora situação das nações ricas e poderosas: “Não podemos nos esquecer que se os grandes não estão bem, os pequenos também não estarão. Precisamos que os EUA, o Japão e a Europa permaneçam fortes… os grandes também necessitam de novos mercados para evitar pressões em casa.”
5.2.- Se os países em desenvolvimento não podem reagir às pressões neo colonialistas, devem agir em conjunto, com determinação e eficiência.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).